Por alguns minutos, me esqueci do mundo lá fora. Eu estava nos braços de Rafael novamente, de onde eu nunca deveria ter saído. Ele me beijava muito lentamente, num gesto extremamente carinhoso. Suas mãos caminhavam pelos meus braços, pelo meu rosto, pelos meus cabelos. Às vezes, ele parava o beijo e ficava me encarando com um sorriso infantil no rosto. Seus olhos brilhavam, como se lágrimas estivessem prestes a escorrer. E a cada vez que ele voltava a me beijar, o seus lábios e suas mãos ganhavam pressa. Ele arranhava de leve as laterais do meu tronco e suas mãos se aproximavam perigosamente do cós da minha cueca. Há muito eu já sentia o seu pau muito duro relar no meu em igual estado, me fazendo soltar pequenos e abafados gemidos. Ele começou a descer beijando meu pescoço e eu abri os olhos por um segundo.
“Esse teto não é meu!” pensei ao recobrar os sentidos.
O empurrei com delicadeza e ele me olhou confuso.
_Não na cama do Pedro._ expliquei.
Ele sorriu e concordou.
_E agora?_ ele perguntou.
Nesta sua simples perguntas estavam embutidas muitas outras perguntas. Como eu tinha decidido na noite passado, eu daria um passo de cada vez. Eu não tinha condições de apagar todos os incêndios que me cercavam de uma só vez. O próximo passo era tomar meu café da manhã.
_Que tal ficarmos descentes e descermos pra tomar café?
Ele concordou e levantamos, ainda claramente excitados, e fomos para o banheiro de Pedro escovarmos os dentes. Escovamos com os dedos enquanto ríamos um para o outro pelo nosso reflexo no espelho. Parecíamos dois idiotas, mas era aquela idiotice do amor, aquela coisa gostosa de se sentir. Éramos bobos apaixonados, como dois adolescentes descobrindo o amor.
Sem trocar uma palavra sequer, descemos as escadas rumo à cozinha praticamente saltitando de felicidade. Ouvimos as vozes de Pedro e Alice lá e, antes de cruzarmos a porta, fiz questão de pegar na mão de Rafael. Ele sorriu e me deu um selinho. Foi neste clima que entramos na cozinha, mal prestando atenção no que víamos. Se não fosse assim, teríamos visto que, além de Alice e Pedro, estavam sentados à mesa da cozinha mais três colegas nossos: Paulinho, Bruno e Mariana. Eu e Rafael paralisamos pelo susto, tanto é que nem soltamos nossas mãos.
Deixe-me apresentá-los. Os três eram nossos colegas de faculdade. Paulinho era o porra-louca da turma: sempre animado pra qualquer coisa que a gente chamasse ele, o primeiro a ficar terrivelmente bêbado, o que sempre dizia a coisa errada na hora errada. Inclusive, foi ele que me jogou no lago. Mas ele era um cara legal, eu gostava dele. Bruno era mais retraído, apesar de não ser tímido. Ele fazia mais o tipo misterioso. Ele não tinha nenhum beleza muito óbvia, ou um corpo espetacular, era até bem normal, mas ele tinha um ar sedutor que deixava todos caidinhos por ele. Sempre ostentou as maiores notas da turma, e era o nosso grande salvador no final de todo semestre. Mariana era “um dos meninos”. Bebia muito, falava muito palavrão, e era geralmente a idealizadora de brincadeiras de gosto duvidoso (que eram colocadas em prática por Paulinho, normalmente), mas sem nunca deixar de ser feminina. Metade dos meninos da turma era apaixonada por ela.
Enfim, eles eram a “turma do fundão”, com quem Pedro sempre andou. Dentre todos os grupos que havia na nossa turma, aquele sempre foi aquele com quem eu e Alice, um grupo a parte, mais nos identificamos. Ficávamos com um pé atrás porque sempre rolava umas piadas homofóbicas e machistas, então nunca nos consideramos realmente parte do grupo deles. Mas sempre fizemos trabalhos de faculdade juntos e tal. Nunca me pareceram o tipo de gente com a cabeça mais aberta em relação a homossexualidade, até porque sempre partiu deles algumas piadas em relação a Eric, por isso nunca me passou pela cabeça me abrir com eles. Lógico que eu sabia que, dado os últimos eventos, uma hora eles saberiam, mas não teriam sido minha primeira escolha. Eu teria escolhido gente com cabeça mais aberta, ainda que não tão próxima.
Espero não encontrar porra seca na minha cama._ falou Pedro sentado.
Não entendi se ele tentava quebrar o clima estranho na cozinha ou se realmente não percebeu o clima estranho. Bruno deu um sorrisinho maldoso e se concentrou em beber seu café. Mariana riu e deu um tapa no braço de Pedro. Paulinho não conseguia parar de olhar para a minha mão que ainda apertava a de Rafael. Quando me dei conta, soltei e me dirigi ao fogão para me servir.
_Eu devia ter colocado pó de mico na sua cama, ou você acha que eu esqueci o que você me aprontou ontem?_ falei relembrando o incentivo que ele tinha dado a Ricardo.
Ele abaixou a cabeça envergonhado, mas ainda rindo. Eu tinha que rebater a sua piada ou aquele clima só ficaria pior.
_Bom dia._ falei enfim, virado pro fogão em servindo de um copo de leite.
_Bom dia._ todos responderam.
_Melhor, Rafa?_ perguntou Alice, também sentada à mesa.
_Um pouco._ ele respondeu tímido.
Se fosse só a questão de homossexualidade, sem dúvidas Rafael chegaria ali com o peito estufado e me assumindo com o maior orgulho do mundo. O problema era que ele tinha vergonha do vexame da noite anterior. Com razão.
_Toma, vai ajudar.
Me virei e vi Alice entregando a Rafael uma cartela de comprimidos, que eu imaginei ser pra ressaca que ele devia estar sentindo. Me sentei juntos com eles e comecei a beber meu leite. Ninguém falou nada por um bom tempo.
Ninguém vai falar?_ falou Mariana _Ok, então eu falo: nunca gostei da Carolina.
Pedro riu com vontade. Alice e Bruno seguraram para não rir também. Paulinho deu um riso desajeitado, como se estivesse um tanto quanto desconfortável com aquele papo. Eu não me permiti comentar nada.
_Não é assim, gente._ falou Rafael _Eu gosto dela. Ela é uma boa menina.
_Sempre achei sem sal._ falou Mariana ignorando Rafael _Não é à toa que foi trocada por um cara.
Engasguei e saiu leite pelo meu nariz. Bruno, Pedro e Paulinho riram.
_Mariana!_ ralhou Alice.
_O que? Vamos fingir que não vimos ou ouvimos nada ontem?
_Esperem pelo menos o Rafa melhorar da ressaca antes de sabatinar ele._ respondei Alice.
_Então, vamos sabatinar o Bernardo._ falou Mariana olhando para mim _Ele quase não bebeu ontem.
Pousei meu copo na mesa com cuidado, respirei fundo e encarei com um sorriso torto. Era tudo muito desconfortável.
_Não tem muito o que contar. Eu e Rafael namorávamos. Terminamos e ele começou a namorar Carolina. Ontem ele terminou com ela, como todos vocês presenciaram. Ninguém nunca traiu ninguém. E Carolina sempre soube de tudo. Ninguém foi enganado nesta história.
_Só a gente, né?_ ela me respondeu.
_Eu sempre soube de tudo._ falou Alice para provocar.
_Eu também._ completou Pedro levantando a mão como uma criança, por pura gozação.
_E me arrependo muito de ter contado alguma coisa a vocês dois, tendo em vista a frequência com que vocês entram na minha vida pessoal sem eu pedir._ falei.
Dei mais um longo suspiro e voltei a encarar Mariana, que me olhava de braços cruzados.
_O assunto era muito delicado. Ainda é. Não ia sair falando com todo mundo sobre a minha vida amorosa. Não tem necessidade disso.
_Mas Alice e Pedro sabiam?_ respondeu irônica.
_Eu sou muito mais próximo a eles do que de vocês, vocês sabem.
_Não precisa de muita proximidade pra contar que você está namorando um outro colega nosso de turma.
_Um colega do mesmo sexo._ respondi.
Voltei a beber meu leite, mas vi que ela continuava a me encarar de braços cruzados. O fato de Rafael e eu sermos homens era a questão central do problema. Todos ficaram calados por um instante.
_Você achou o que? Que a gente ia rir de vocês?
_Sinceramente? Sim.
_Como você pôde achar que a gente faria alguma coisa assim?!
_Você fizeram com o Eric, não?
Não pretendia ir por aquela direção, saiu sem querer. Sempre tive aquilo entalado na garganta. Era uma coisa que me marcava, até porque eu ri das dessas piadas muitas vezes por medo de desconfiarem de mim.
_Bernardo..._ falou Alice como se me pedisse calma.
Em nenhum momento eu quis começar uma briga ali, até me arrependi do que disse. Mas Mariana não era o tipo de pessoa que deixa esse tipo de acusação passar em branco.
_O que esse menino tem a ver com a história?
_Tudo._ respondi tomando mais gole de leite _Ele foi meu primeiro cara.
Paulinho começou a engasgar com o pão que comia e Bruno de lhe dava alguns tapas nas costas para ajudar. Mariana me encarava com os olhos cerrados. Eu não olhava para Alice, Pedro ou Rafael, mas sentia que eles me encaravam com apreensão.
_Você não queria saber de tudo? Então..._ completei.
Nem sei bem porque estava respondendo daquele jeito, quase que brigando com ela. Eu realmente gostava dela, nunca tinha me feito mal nenhum. Acho que toda a história de Eric me deixou marcas que até hoje eu desconheço, vou descobrindo aos poucos. Mas eu não queria ir por aquela direção, decidi amenizar um pouco o discurso.
_Não estou acusando vocês de nada._ falei deixando meu copo de lado _Eric tinha problemas muito maiores do que as pessoas rindo dele pelas costas. O que aconteceu com ele foi... Uma fatalidade. Enfim, o meu ponto é: visto como vocês riam de Eric, eu tinha medo de contar e receber o mesmo tratamento.
_Não seja um imbecil! Nunca teríamos feito isso._ Mariana falou com raiva.
_Não?
_Não, porque de você a gente sempre gostou. Não me venha bancar o santo. Nunca falou de ninguém por trás? Nunca riu de um coleguinha gordo? De um coleguinha feio? Do coleguinha que vestia roupas estranhas? Você acha que as pessoas nunca me chamaram de vadia pelas costas? Ou a Alice de lésbica? Ou o Paulinho de cachaceiro? Foda-se quem acha isso! Acorda, Bernardo, as pessoas fazem isso o tempo todo, e você não é diferente. O que pega aqui é que você tomou as dores do Eric. Mas não me lembro de você defendendo ele, né?
Me calei envergonhado. Não tinha o que responder.
_Pois é! Nunca falamos mal de quem gostávamos e nós gostávamos de você. Então, não me venha com essa. Nada mudaria pra mim. Aliás, nada mudou.
Eu não tirava a razão dela. Quantas vezes não rimos de um defeito ou de uma característica de uma pessoa? E quantas vezes paramos para pensar que as pessoas se ferem com isso? Até onde o meu discurso não virava pura hipocrisia?
_Deixa ele, Mari._ interviu Alice _O Bernardo sempre teve problemas para se aceitar. Mesmo se ele confiasse que você não riria ou espalharia, ele não contaria, pois a cada pessoa que ele contasse, a coisa se tornaria mais e mais real.
Todos nos calamos. Ficou aquele clima estranho na cozinha.
_Você e Eric, hein?_ falou Bruno, enfim _Quanta coisa anda rolando por aí que a gente não tá sabendo?
_O Eric transava com o Bernardo e Rafael ao mesmo tempo, sem os dois saberem. Quando descobriram, se fingiram de namorados como forma de vingança. Só que a coisa ficou muita séria e a brincadeira virou realidade._ respondeu Pedro.
Todos olhamos atônitos para ele.
_Qual a necessidade de dar detalhes, seu imbecil?!_ ralhei com ele.
_Uai, o Bruno perguntou.
_Meu Deus!_ exclamou Mariana olhando pra mim e Rafael incrédula.
As próximas horas foram contando para Mariana detalhes do que tinha acontecido com a gente nos últimos meses, mas sem revelar nada muito mais grave. Não contamos sobre minha tentativa de suicídio, ou sobre Tom, ou sobre o beijo que eu e Rafael trocamos antes dele terminar com Carolina na noite anterior. No meio da tarde, enquanto nos despedíamos na porta de Pedro, Mariana me abraçou.
_Seu panaca, eu tô do seu lado. Para de esconder as coisas de mim!_ falou me dando um soco no braço _Vocês são lindos juntos.
Eu ri dela. O próximo foi Bruno.
_Não tenho problemas nenhum cara, cada um sabe de si. Só te desejo boa sorte com o que vem por aí.
_Obrigado._ respondi nervoso.
O último foi Paulinho. Eu quase não tinha ouvido sua voz durante todo aquele dia. Ele estava claramente desconfortável com tudo aquilo.
_Olha, é tudo muito estranho pra mim._ ele falou olhando pro chão _Mas não vou rir de você ou te bater, ou sei lá o quê. Tamo de boa.
Ele concluiu com dois tapinhas rápidos no meu ombro. Eu ri do seu jeito. Eu consegui meus primeiro aliados na longa batalha naquela eu previa para aquele semestre. Eu só precisa me entender com mais trinta pessoas agora...
Rafael ficou calado o tempo todo, ainda sob o forte efeito da ressaca. Desconfio também que as coisas que ele falou e fez na noite anterior estavam atormentando ele.
_Como vai ser?_ ele perguntou já no carro enquanto eu dirigia para sua casa.
_Não sei. Vamos enfrentar com a cara e a coragem, não tem outro jeito.
_Mas não amanhã.
_Não?
_Não. Tenho planos para nós dois._ ele respondeu com um sorriso sacana.