Os dias foram passando e nada mudou para mim e Rafael: nossos apoiadores eram o mesmo na faculdade, minha mãe ainda me ignorava e meus sogros ainda não gostavam de mim. Carolina ainda não tinha aparecido na aula, e isso era uma fonte de preocupação para Rafael. Aliás, mais uma, porque ele continuava sendo atingido pela indiferença e afastamento dos nossos colegas. Eu até entendia que a questão da traição à Carolina era até maior que a questão da homossexualidade em si, mas o mínimo que Rafael merecia deles era uma boa conversa. Eu engolia as críticas porque nunca passaram de colegas de sala para mim, mas Rafa sempre saía com eles e tinha uma relação muito mais próxima. Bom, é nessas horas que a gente conhece os amigos de verdade.
O semestre mal havia começado e eu já estava louco por um descanso. E ele veio a cavalo: no dia 15, uma sexta-feira, foi feriado municipal em Belo Horizonte. Um feriado prolongado era tudo o que eu precisava no momento, uma breve pausa nos meus problemas. Eu adoraria passar esse feriado coladinho ao meu namorado, sem fazer absolutamente nada, mas não era isso que ele precisava no momento. Rafael precisava se sentir querido novamente. Não tive dúvidas antes de convidar Alice, Pedro, Paulinho, Bruno e Mariana para passarem o feriado conosco.
_Pai? A casa de Macacos vai tá livre no feriado?_ perguntei pro meu pai um dia pela manhã.
O meu avô paterno tinha construído uma casa em Macacos, um pequeno distrito próximo a Belo Horizonte, para poderem passar o fim de semana de vez em quando. Meu avô havia morrido e minha avó nunca fora muito fã daquela casa, de modo que ela acabou ficando para os filhos. Ela sempre acabava estando cheia, pois meus tios ou primos sempre iam para lá.
_Acho que sim, por que?_ ele respondeu sem me dar muita atenção.
_Tô querendo levar uma turma de amigos para passar o fim de semana lá.
_Deixa eu confirmar com seus tios e te falo.
_Obrigado!
E realmente estava vazia. Na quinta-feira à noite, eu estava arrumando minhas coisas no quarto quando meu irmão mais velho entrou.
_Você tá indo pra Macacos?
_Sim, amanhã cedinho.
_Beleza, você me dá carona, então.
_Pra onde?
_Pra Macacos, ora!
Cocei a cabeça olhando para Tiago. Eu não sabia se ainda era a hora de apresenta-lo a Rafael. Afinal, a ideia da viagem era fazer Rafael esquecer nossos problemas, e isso incluía a minha família.
_A casa tá cheia, Tiago._ falei tentando escapar.
_Seus colegas dormem nos colchonetes, ninguém liga pra essas coisas.
_Mas você não tinha planos pro feriado?
_Não tô afim de viajar pra longe, nem passar em branco. Sua ideia veio a calhar.
_Mas Tiago..._ falei pensando numa desculpa.
_O que? Não quer que eu vá?_ perguntou meio brincando, meio ofendido.
Ele estava forçando uma reaproximação entre nós quatro, e eu apreciava muito a iniciativa, mas não era a ideia do fim de semana. Com medo de magoá-lo, decidi abrir o jogo com ele.
_É porque Rafael vai.
Ele sabia que eu tinha voltado a namorar Rafael, mas não pediu para eu apresenta-los imediato. Ele ainda estava se acostumando com a ideia, então não forcei nada. Até porque, dentro de casa, Tiago era o menor dos meus problemas.
_Ahh...
Ele falou como se agora entendesse o que estava acontecendo.
_É um fim de semana romântico, então?_ perguntou fingindo mal que estava levando na boa.
_Não exatamente. Realmente vai uma turma, mas todos lá já sabem sobre a gente, então não vamos ficar escondendo.
_Então, não tem problema eu ir, né?_ ele respondeu sorrindo.
_Você vai ficar desconfortável, Tiago.
_Lógico que não, já te falei que eu tenho um passado._ ele respondeu abaixando o tom de voz para ninguém nos ouvir.
_É diferente. Eu e ele não somos parceiros de cama, somos namorados. A gente vai se tratar como namorados na frente dos outros.
_E eu vou trata-lo como seu namorado, sem problema.
_Tiago...
_A gente sai de manhã!_ falou saindo do quarto antes que eu pudesse argumentar.
Cocei a cabeça e liguei para Rafael avisando. Ele achou que não faria mal, até gostou da presença de Tiago. Falou que faria ele se sentir mais meu namorado ainda, pois estaria sendo oficialmente apresentado à minha família. Ri do seu pensamento, mas fui deitar tenso. Eu sabia que Tiago nunca brigaria com Rafael, mas eu tinha medo de rolar um constrangimento entre eles, fazendo com que nenhum de nós três aproveitássemos o fim de semana. Quando me acostumei com a ideia, tive uma outra surpresa pela manhã:
_E ele vai ficar aqui sozinho, pai?_ falava Tiago.
_Eu já tenho quase 18 anos!_ respondeu Caio raivoso.
_Quase!_ rebateu meu irmão mais velho.
_Eu não quero ir e pronto!
_Caio, coopera._ respondeu meu pai sem alterar a voz _Laura e Tiago estão indo. E eu e sua mãe estamos indo pro sítio.
_Mas pai!_ Caio respondeu quase entrando em desespero.
Eu entendi o que estava acontecendo, mas torcia para estar entendendo errado.
_O que está acontecendo?_ perguntei temoroso.
_Caio e Laura vão com a gente também!_ respondeu Tiago eufórico.
Deixei os ombros caírem de desânimo. E eu não podia nem argumentar, porque chamaria a atenção do meu pai e da minha mãe (que estava em algum lugar da casa).
_Vai indo, Bernardo._ completou Tiago _O Caio vai demorar a se arrumar. Nós três vamos no meu carro.
Peguei minha bagagem, a chave da casa e saí rumo à casa de Rafael busca-lo. No caminho, ele ficava me falando que ia dar tudo certo. Mas meu fim de semana já tinha ido por água abaixo. Se Tiago não criasse nenhum desconforto, Caio com certeza iria. Não consegui me animar nem quando paramos no supermercado e Pedro e Paulinho ficavam fazendo palhaçadas enquanto compravam bebida.
A casa da minha família era grande e espaçosa, apesar de não ter nenhum luxo. Eram quatro suítes, mas pequenas, feitas somente para as finalidades básicas mesmo. A decoração e o acabamento eram simples também. Vovô decidiu gastar mais com as áreas comuns: uma grande cozinha, uma sala enorme que ocupava quase que o primeiro andar inteiro da casa, uma convidativa área de churrasqueira, piscina e quadra de vôlei, além do enorme gramado.
Eu fiquei com um suíte e deixei outra para Pedro e Alice. Tiago dividiria uma com Caio (eles que se entendessem depois) e Mariana ficaria com Laura. Paulinho e Bruno dormiriam na sala. Tudo acertado, fomos acender a churrasqueira e colocar as bebidas para gelar. Aliás, eles foram fazer isso, porque eu fiquei sentado na varanda esperando meus irmãos chegarem. Eu estava preocupado.
_Seus irmãos vão tratar bem Rafael._ disse Alice se sentando ao meu lado.
_Tiago e Laura eu sei, mas tenho medo do que o Caio vai aprontar.
_Acho que ele não vai aprontar nada, não vai ter coragem com todos nós aqui.
_Ele não liga pra essas coisas. Se tiver que brigar, vai fazer na frente de todos vocês. Acho até que ele prefere uma plateia.
_A cada coisa que você me conta do seu irmão, fico mais apaixonada por ele._ ela respondeu irônica.
_Minha esperança é que ele esteja revoltado o bastante para se trancar no quarto durante o fim de semana todo
A grande questão aqui é que Caio não sabia que Rafael era meu namorado. Tiago sabia e Laura adivinharia ao nos ver juntos novamente. Meu irmão mais novo descobriria ao me ver entrando no quarto com Rafa, afinal, nele só tinha uma cama de casal. Eu me perguntava se deveria tentar conversar com ele antes, alertá-lo.
_Eles chegaram._ avisou Alice.
O carro de Tiago vinha fazendo a curva. Caio saiu pela porta de trás e passou por mim e Alice sem nos olhar ou cumprimentar. Ouvi seus passos subindo a escada apressado e a porta do único quarto vazio, o que ele dividiria com Tiago, bater forte.
_Encantador!_ comentou Alice ao meu lado.
Laura e Tiago sorriam, mas para Alice, não para mim. A gente vivia junto, não precisávamos ser cordiais um com o outro também.
_Oi, Alice._ falou Laura cumprimento-a.
_Oi, Laura. Tiago.
_Oi, Alice, tudo bem?
_Tudo.
_Laura._ falei _Tudo bem para você dividir o quarto com uma colega nossa? Ela é super tranquila.
_Claro, sem problema._ e foi entrando na casa.
Assim que ela entrou ouvi seu grito.
_Rafael?! Você por aqui? Que tudo!
Ri acompanhado de Tiago e Alice. Era a primeira vez que vi Laura em seu estado normal de humor desde aquele dia no hospital. Fiquei feliz por minha irmã estar conseguindo seguir em frente.
_Já que a ideia de trazer o Caio foi ideia sua._ falei olhando para Tiago _É você que vai dividir o quarto com ele.
O sorriso de Tiago murchou.
_O que? Não..._ respondeu desanimado _Ele dorme na sala.
_Já tem gente lá, não vou deixar ele incomodar meus amigos. Ele é sua responsabilidade.
Ele balançou a cabeça conformado e me acompanhou com Alice para dentro da casa. Alice e Rafael trocavam figurinhas em pé na sala. Os dois tinham ficado próximos quando nós namorávamos, mas tinham perdido contato depois que terminamos. Agora estavam se colocando a par das novidades. Assim que entramos, Rafael e Tiago se encararam. Eles sorriam um para o outro, mas, para mim que os conhecia tão bem, estava bem claro que os dois estavam desconfortáveis com a situação.
_Rafael, Tiago. Tiago, Rafael._ falei quando nos aproximamos.
Os dois já se conheciam. Depois da morte de Eric, Rafa passou algumas semanas visitando minha casa com frequência. Naquela época, nos consolávamos e tentávamos lidar com a culpa que sentíamos pelo modo como tudo terminou para Eric.
_Oi._ os dois disseram sem graça enquanto se cumprimentavam.
_Já podem se chamar de “cunha”._ falou Alice para quebrar o gelo.
_Alice!_ falei.
_Sem problemas para mim._ respondeu Tiago rindo daquilo _Cunhadinho.
_Tá vendo, Bê?_ falou Rafa _Não te falei que ninguém consegue não gostar de mim?
Eu ri da brincadeira e Tiago me acompanhou. Meu irmão colocou a mão no ombro de Rafael e disse:
_Bernardo me contou toda a história de vocês. Se antes não deu certo pelos motivos que fossem, torço para que vocês façam dar certo agora. Acho o meu irmão um cara incrível e, através dos relatos dele, passei a te ver como um cara muito legal também. O mundo precisa de mais casais como vocês, casais que nos fazem acreditar que realmente há uma pessoa certa para a cada um de nós por aí, que só nos cabe procurar bem. Eu espero ter a mesma sorte que vocês tiveram.
Rafael sorriu com o discurso de Tiago. Alice e Laura assistiam sorrindo também.
_Você deve saber que a minha mãe não encarou muito bem a situação
Rafa fez que sim com a cabeça.
_Te peço para ter toda a paciência do mundo com ela. Ela é uma boa pessoa, só precisa de tempo para se acostumar com a ideia. Mas saiba que você já tem dois aliados dentro de casa._ falou apontando para Laura, que confirmou com a cabeça _Fiz questão de vir nesta viagem para mostrar pra você e pro Bernardo que está tudo bem para mim, e que estou do lado de vocês. O Bernardo não queria que eu viesse, mas mesmo assim...
_Não é isso..._ tentei argumentar.
_Você só faltou me proibir de vir!
_Verdade, amor._ respondeu Rafael.
_Além do mais, eu vim para te conhecer direito e saber quais suas intenções com meu irmãozinho.
_Tiago!_ ralhei.
Todos riram, menos eu. O Tiago nunca me chamou de “irmãozinho”, ele estava querendo bancar o irmão perigoso, marcar território. Eu não fiquei bravo, mas acho que aquele tipo de constrangimento era desnecessário.
_O Bernardo parece ser muito centrado e esperto, mas não é._ continuou Tiago me ignorando _Ele é frágil como uma flor, por isso tenho que saber se você tem a intenção de magoá-lo.
_Ih, chora por qualquer coisa!_ completou Alice.
_E eu não sei?_ respondeu meu irmão _Enfim, quais são suas intenções com ele?
Eu queria abrir um buraco e me enterrar ali. Rafael riu e levou na esportiva. Ele chegou ao meu lado e me abraçou de lado pela cintura.
_Eu amo o seu irmão mais do que amei qualquer outra pessoa na minha vida. E eu pretendo fazer dele o cara mais feliz do mundo. Se eu errar no caminho, será totalmente sem intenção, e pode acreditar que eu vou me ferir muito mais que ele se acontecer. Eu te prometo lutar todos os dias para não dar ao Bernardo nada menos do que ele merece: ser o cara mais feliz do mundo.
_Sendo assim, bem-vindo à família._ respondeu Tiago.
Rafael riu e me deu um beijo na bochecha. Fiquei rindo como um retardado. Eu esperava que Rafael e Tiago fossem se dar bem, só não imaginava que fosse tão rápido. E o discurso de Rafael me emocionou sim. Tínhamos passado por tanta coisa naqueles últimos dias, que um vozinha lá no fundo da minha consciência perguntava se Rafa não acabaria por desistir de nós. Após aquela declaração, eu tive mais certeza do que nunca que estávamos juntos naquela. Rafael iria me fazer feliz.
_Que porra é essa?!
Todos nós nos viramos para ver o dono da voz: Caio estava parado na escada nos encarando com um expressão de nojo. Vi o meu fim de semana perfeito se desmanchar em frente aos meus olhos.