Não sei nem como explicar a natureza do ciúme que eu sentia vendo Rafael e Eric ali, daquela maneira tão explícita, pelo menos aos meus olhos. Eu não podia cobrar nada de Eric, nunca estabelecemos uma relação séria, e sempre que ele ia por esse caminho eu fugia. Eu não tinha direito de cobrar fidelidade dele, não éramos namorados nem nada, nem amá-lo eu amava! Foi como se todo o tempo que compartilhamos, começando da nossa primeira troca de olhares, tivesse estabelecido em mim uma sensação de posse. Eric era meu, ninguém mais podia ter. Era meu direito usá-lo como quisesse e depois deixá-lo guardado esperando por mim, e mais ninguém tinha o direito de brincar com meu melhor brinquedo. Claro que hoje eu enxergo a crueldade do que eu estava sentindo, eu percebo como fui mesquinho, injusto e mau com Eric. Mas naquele momento a única coisa que eu conseguia enxergar na minha frente era ciúme.
Alguém avisou ao “casal” da minha presença, então eles se viraram e vieram me dar parabéns. Os dois sorriam cínicos, como se ninguém ali soubesse que eles estavam juntos, que estavam fudendo por aí na calada da noite como dois animais no cio. Eles achavam que ninguém percebia os olhares de desejo que trocavam, nem como se tocavam “acidentalmente” a todo momento? Eu também percebia claro, mas deixava passar pensando “é um flerte bobo, um brincadeira de amigos, Eric é só meu”. Mas agora eles estavam ali, na minha festa de aniversário, entre meus entes queridos, esfregando na minha cara que eram um casal. Vocês podem pensar “ah, mas você não tem garantias que eles eram um casal”. Garantias eu não tinha mesmo, mas eu sabia, lá no fundo eu sabia que eles estavam juntos.
E como era falso o sorriso de Eric quando me abraçou desejando feliz aniversário. Mal retribuí seu abraço, foi mais um tapinha frio nas suas costas enquanto ele apertava com força as minhas costas. Foi impossível não me sentir mal e deixar aquilo transparecer numa careta. Pedro, que ainda estava ao meu lado, riu interpretando aquilo como uma atitude homofóbica, passando longe da natureza do meu desconforto.
_O aniversariante resolveu aparecer, hein?_ falou Rafael _Tava se escondendo da Taís? Ouvi que ela tá louca periquita atrás de você, já que não é mais pedofilia.
Eu ri da brincadeira de Rafael. Era estranho, eu tinha inúmeras razões para não gostar dele, e em alguns momentos até cheguei a não gostar, mas no fundo eu gostava dele. Ele era daquele tipo de pessoa que te envolve com sua personalidade e seu carisma de tal modo que torna impossível que você não goste dele. Eu queria odiá-lo com todas as minhas forças, fazer dele o vilão da história, mas não conseguia. Dizem que é um mal dos nascidos sob o signo de Áries, não conseguimos guardar rancor de ninguém. Não sei é verdade, acho que aquilo tem muito mais a ver com o jeito de ser de Rafael do que com astrologia.
Pedro já havia voltado para a mesa, deixando nós três sozinhos. Eric levantou a sacola que trazia para mim.
_Seu presente!_ falou sorrindo me entregando.
_Obrigado._ respondi frio.
O sorriso dele desapareceu instantaneamente quando ele percebeu o clima ali. Não tive coragem de olhar para Rafael, mas com certeza ele tinha percebido que havia algo de errado ali, até um cego perceberia.
_Não vai abrir?_ perguntou Eric tentando melhorar o clima.
_Agora não, mais tarde._ e seu sorriso novamente se perdeu _Fiquem à vontade, vou ali receber os convidados que chegaram.
Me virei e saí sem olhá-lo. Eu não estava com cabeça para lidar com aquilo. Todos à minha volta me conheciam, por isso eu não podia levantar a mínima suspeita. E se eu ficasse perto deles, com certeza eu acabaria explodindo todo o ciúme que sentia, e aí nem Deus me salvaria das conseqüências. Era melhor me distanciar e ignorar.
O problema é que eu simplesmente não consegui mais relaxar e aproveitar a festa. Eu tentava me distrair com algum convidado ou entrando numa roda de conversa, mas meus olhos sempre acabam desviando sua atenção para Eric e Rafael, que não raro retribuíam o olhar. E cada vez que aquilo acontecia, eu ficava mais tenso, de modo que a certa altura da festa todos os músculos do meu corpo estavam doloridos. Era visível para todos que eu não estava no meu melhor estado, mas ninguém veio falar comigo sobre isso. Lógico que esse “ninguém” exclui Alice:
_Eu não tenho nada Alice._ respondi quando ela me levou pra um canto isolado do clube.
_Lógico que tem! Você está todo tenso, suas veias parecem que estão para estourar a qualquer momento.
_É essa festa, tá grande demais. Odeio ser o centro das atenções assim.
_Ah, Bernardo!_ falou mostrando que sabe que é mentira.
_Ai, Alice, deixa eu voltar pra lá.
Eu ia saindo, mas ela me segurou.
_Alguma vez eu te deixei na mão? Contei algum segredo seu? Não quero saber o que está acontecendo por curiosidade, eu quero que você desabafe, relaxe e aproveite um pouco da sua festa.
Eu queria muito desabafar com ela, mas para isso eu teria que contar de todas as minhas fugas com Eric durante as últimas semanas e teria que explicar porque não tinha lhe contado antes. Eu realmente não estava no clima para aquele tipo de conversa no momento.
_Eu sei e agradeço muito a boa amiga que você é._ falei tentando parecer o mais gentil possível _Mas eu não preciso e não posso te contar tudo que acontece comigo. Tem coisas que eu tenho que resolver sozinho.
Ela me olhou por algum tempo, depois jogou os braços para cima como se dissesse “desisto”, sem argumentos para rebater o que eu havia dito. Agradeci e voltei para a festa. Algumas vezes eu passava na mesa do pessoal da faculdade, aquela em que estavam Eric e Rafael, mas ali eu evitava olhá-los, tratando-os como se não existissem. Se Rafael tivesse alguma suspeita, agora já devia ser certeza. Alice também percebeu o clima estranho entre nós três. Ela me deu um olhar significativo, mas decidi ignorá-la.
Quando a festa já ia chegando à metade, eu fui para um lugar isolado do clube para respirar um pouco. Eu precisava de alguns minutos de paz e descansar meu sorriso falso um pouco. Aparentemente isso era pedir demais, pois logo ouvi os passos de alguém se aproximando. Me virei para ver quem era, e, adivinhem, era Eric. Ele vinha com a cabeça baixa, como se já estivesse pedindo desculpas antecipadamente. Toda aquela tensão que eu estava sentindo voltou a se transformar em ódio. Eu chegava a bufar de raiva. Ele parou em frente a mim e levantou a cabeça me encarando. Seus olhos, sempre tristes, estavam ainda mais tristes naquele dia. Ele já previa que as coisas que seriam ditas por nós dois ali não seriam nada bonitas.
_Eu acho que a gente tem que conversar._ falou.
O seu tom de voz denunciava que ele não estava totalmente ciente do motivo da minha raiva. Me soou como falsa inocência e o que alimentou ainda mais minha raiva.
_Você acha?!_ falei num grito contido.
_Por que você está me tratando assim?
_Pensa um pouco Eric, o que você pode ter feito?!
_Eu não faço a mínima idéia.
Eu não sabia se aquilo era cinismo ou inocência, mas não estava me ajudando a acalmar.
_Até ontem estávamos bem._ falou _Aí chego aqui, com o melhor dos humores, seguindo suas exigências de não me aproximar demais e você me trata desse jeito, como lixo.
Ele começava a se alterar também, dava para notar pela voz. Ele continuou:
_Anda me tratando como aqueles seus amiguinhos homofóbicos. Fica me olhando como seu eu fosse uma atração de circo, mas é medroso demais para sustentar o olhar. E a expressão de incômodo, de nojo no rosto, como se eu tivesse alguma doença contagiosa. Como você consegue se olhar no espelho sabendo que é o que mais odeia?
Ele parecia estar despejando em mim tudo aquilo que vinha guardando por semanas. Eu me surpreendi com sua agressividade, mas suas palavras não me atingiram tanto, já que eu sabia que não eram verdadeiras.
_Você realmente acha que o que está acontecendo aqui é homofobia?!
_E não é?
_Não! Eu posso ter todos os defeitos do mundo, mas não sou homofóbico!
_Você é! Você é homofóbico com você mesmo!
_Não! Sempre te respeitei, pedi que me desse espaço, mas te respeitei!
_Jura?!_ perguntou irônico.
_É verdade!
_Então quer dizer que você nunca riu de mim com seus amiguinhos homofóbicos?!
Imediatamente me relembrei daquela tarde na casa de Pedro que veio a desencadear uma briga com Alice.
_Tá vendo? Você não nega!_ seus olhos estava cheios de lágrimas _Não sei como eu pude ter qualquer tipo de sentimentos por você!
_Você realmente acha que a minha expressão de nojo, de incômodo eram dirigidos especialmente a você?!
Tive que me segurar para não gritar com ele. Estávamos num lugar isolado, mas era melhor não arriscar.
_Se não, a quem eram dirigidos então?!
_Pra você e seu namoradinho!
Ele parou e ficou me olhando por um tempo, digerindo o que eu havia dito. Então ele caiu na gargalhada, a ponto de se sentar no chão e colocar a mão na barriga:
_Quer dizer que isso tudo é sobre ciúme? Meu Deus!
Eu fiquei o olhando. Ele ainda ria muito e eu bufava de raiva. Ele estava encarando aquilo como se fosse uma daquelas crises bonitinhas de ciúmes, mas não era. Aquilo que eu estava sentindo não tinha nada de fofo, era venenoso. Ele se levantou se aproximou de mim.
_Bernardo...
Ele foi pegar na minha cintura na intenção de me abraçar, mas o empurrei e ele cambaleou para trás, quase caindo. Ele me olhou assustado.
_Você acha isso bonitinho, acha que eu estou sendo fofo?_ perguntei irônico _Pois não, Eric, não é. Você não faz idéia do quanto eu o estou odiando agora. Você estava certo quando disse que eu o estava vendo como um lixo. Você não presta.
_Bernardo..._ seus olhos voltaram a se encher de lágrimas.
_Negue! Negue pra mim que você anda transando com o Rafael!
Acho que no fundo eu ainda esperava que ele negasse, que dissesse que ainda era só meu, mas tudo que tive em resposta foi o silêncio. O silêncio só confirmou aquilo tudo que eu já imaginado: Eric e Rafael eram amantes. Ou pior, eram namorados e EU era o amante! A raiva queimou meu peito, como uma maneira de superar a dor da traição. Minha mão se levantou como se estivesse preste a descrever um arco no ar e acertar o rosto de Eric. Ele apenas fechou os olhos esperando o golpe, como se me dissesse “eu mereço, bata”. Mas não tive coragem. Minha mão ficou travada naquela posição. Ele abriu os olhos e então ficamos nos encarando. Nos seus olhos eu podia ver, ainda mais nítido do que normalmente era, toda a dor do mundo. Minha mão caiu para junto do meu corpo, que também se relaxou, como se estivesse muito cansado para manter aquela posição de guarda.
Ele podia me dar tudo aquilo que você não pode._ falou enfim _Não tem a ver com assumir ou não uma relação de fidelidade. Nunca a estabeleci com ele também. O problema é que aconteceu tudo de uma vez. Num momento eu estava apaixonado pela tua falta de jeito e inocência, e no seguinte eu estava apaixonado por ele e por sua alegria, sua vontade viver a vida custe o que custar aos outros. Eu não queria te machucar, Bernardo. Machucar vocês dois é a última coisa que eu poderia querer na vida. Meu único erro foi me apaixonar por vocês dois.
Eu ouvia aquilo tudo de olhos fechados. Eu não conseguia mais sentir raiva ou dor, nem mesmo pena dele. Eu não estava sentindo nada. Apenas me deixei cair no chão abraçando meus joelhos. Ele continuou:
_Eu tentei escolher um de vocês, mas foi impossível. Sempre que tentava me afastar de um, eu morria de saudade e sucumbia aos meus sentimentos. Lógico que sou culpado aqui por não ter administrado bem meus sentimentos, mas você também tem sua parcela de culpa, Bernardo.
Levantei minha cabeça e o encarei, agora realmente curioso pelo que ele iria falar.
_Por que você não pode me amar?_ perguntou com lágrimas correndo pelo seu rosto _Eu entendo que você tem medo do que possa te acontecer, do que possam pensar de você. Não é esse nosso maior problema. O problema é que eu via nos seus olhos que você não me amava. Eu sei que você gosta de mim, mas amar não, nunca amou. Não sei nem mesmo se você tentou. Se eu soubesse que você me amava, eu teria te dado a mão e enfrentado o mundo com você. Eu teria de dado todo o tempo do mundo para lidar com isso. Se você me amasse eu ficaria do seu lado não importasse o que acontecesse, e que se danasse o resto do mundo, só nós importaríamos. Se você tivesse me amado, eu teria te escolhido. Não sei se Rafael me ama, mas ele tem um jeito de agir sem medo das conseqüências. De uma certa maneira, eu sabia que ele me protegeria de qualquer coisa, que ele era meu porto seguro e eu precisava desse porto seguro, desse refúgio. Você nunca pôde me dar o que eu queria, você nunca pôde me dar amor.
_Vai embora daqui, Eric._ falei novamente abaixando a cabeça e fechando os olhos.
_Bernardo...
_Vai embora, eu não quero mais te ver aqui. Você já conseguiu estragar meu aniversário.
E ele foi. Foi embora da festa. Era tudo verdade, eu não o amava, nunca o amei, nem mesmo tentei. Eric foi uma coisa ótima que me aconteceu, por mais que negasse, e eu o deixei escapar. Ele era apaixonado por mim, mas eu não conseguia amá-lo, talvez por medo. Rafael não tinha medo, ele era o homem certo para Eric.
Ouvi passos voltando, mas eu ainda não estava bem para retomar a conversa.
_Já pedi para você ir embora._ falei sem levantar a cabeça.
_Quer dizer que você anda dormindo com meu namorado?!
Levantei a cabeça e lá estava: Rafael de braços cruzados e com olhos pegando fogo.