Tão logo Alice foi embora da minha casa naquele sábado de manhã, me coloquei a refletir sobre a situação em que eu me encontrava. Alice estava certa ao pontuar meu problema: minha dúvida era em ir pro Canadá ou não. Ricardo representava para mim um motivo para ficar. Não que eu subestimasse meu amor por ele, de jeito nenhum. No fim, todos os caminhos voltavam para Rafael. O tamanho do meu amor por ele era a resposta para tudo.
_Alô?
_Oi, Rafa, sou eu._ falei atendendo seu telefonema.
_Tudo bem com você?
_Tudo, e com você?
_Bem também, apesar de um pouco carente.
Eu ri da sua manha. Depois do beijo de Ricardo, quase toda a mágoa que eu senti por Rafa tinha passado. Minha culpa era tanta que superava qualquer outra coisa.
_O que nós vamos fazer hoje?_ perguntei.
_Bom, meus pais foram passar o fim de semana na nossa casa de campo. Não tá afim de vir pra cá dormir comigo?_ perguntou todo doce.
_Claro, seria ótimo.
_Vem agora?_ pediu.
_Acho que não vai ser possível._ respondi rindo _Não acredito que minha mãe vá me deixar passar pela porta sem uma conversa séria.
_Por que? O que foi que aconteceu?
_Ontem chegou a carta com o meu visto aprovado e ela abriu.
_Nossa! E como foi?
_Nada bom. A família toda estava reunida me esperando chegar.
_E o que aconteceu?
_Tentei explicar meus motivos, mas eu tinha tido um dia turbulento e não estava em condição de dar as melhores explicações. Pedi pra deixar a conversa pra hoje. Não acho que vou escapar.
_Quer que eu vou para aí te ajudar?
_Melhor não. Acho até que poderia ser pior.
_Por que?
_Porque eles acham que eu só estou indo pra te seguir.
_Não é verdade!
_É um pouco verdade, Rafa..._ falei cuidadoso.
_Mas..._ ele pensou por um tempo _A gente não quer se separar.
_Eu sei, e tentei explicar isso. Mas falar que estou indo porque amo meu namorado e vou seguir ele aonde quer que ele for soou muito adolescente apaixonado, o que não ajudou em nada. Por isso pedi pra deixar a conversa pra hoje.
_Vocês acham que eles vão ser contra?
_Contra eles são, mas não acho que eles me proibiriam de ir.
_Bom, me conta depois no que deu, certo?
_Certo. Beijo, até à noite.
_Até! Beijo.
Era o tipo de conversa que me deixava em dúvida. Não que o diálogo por si só tivesse alguma coisa de relevante, mas o tom com que Rafael falava comigo. Por mais que às vezes tivesse seus ataques, Rafael era um menino super doce e me amava. Ele expressava preocupação com meu bem estar em cada sílaba, em cada suspiro, em cada silêncio. Eu tinha medo de não ir e perder isso.
E não tinha mais como fugir, naquela noite eu contaria pra Rafael sobre o beijo. Esconder dele nunca foi uma opção, pois eu sei que nunca conseguiria. Eu sabia o quanto essa informação o machucaria, e eu sofria por antecedência por causa disso.
Aquele seria um longo dia. Eu não tinha nem me levantado da cama ainda quando meu telefone voltou a tocar. Meu coração se acelerou quando li o nome de Ricardo no visor.
_Oi. Te acordei?_ ele perguntou.
_Não. A Alice acabou de sair daqui, ela já tinha me acordado.
_Melhor assim._ ele riu _Como você está?
_Bem.
Eu estava constrangido de conversar com ele, uma coisa que nunca me aconteceu antes. Eu não sabia como conversar com ele sobre o beijo do dia anterior.
_Eu não me arrependo._ ele falou.
_Ricardo...
_Eu não me arrependo de ter te beijado.
_Não devia ter acontecido. Eu realmente amo Rafael, foi um momento de fraqueza.
_Não duvido que você ama ele, mas você me ama também._ seu tom de voz denunciava um sorriso _E eu não pretendo te dar de mão beijado pra ele.
_Não é assim que funciona, Ricardo.
_Bernardo, vamos falar a verdade._ ele falou voltando ao tom de voz sério _Entre todas as suas características, eu destaco a sua tendência à inércia. Você precisa de alguém te empurrando pra frente pra você continuar caminhando. Meu beijo foi exatamente isso.
_Então, talvez Rafael esteja me empurrando pra frente também._ argumentei.
_Sim, só que ele está te empurrando pro caminho errado.
_Não acho que exista caminho certo e errado nessa questão.
_Existe sim. O caminho que vai te fazer infeliz é o caminho errado.
_Não acha que você está sendo um pouco arrogante?
_Não. Talvez, mas eu tenho esse direito, sabe por quê? Porque eu cansei de deixar você escolher. Você faz péssimas escolhas. Eu vou fazer a escolha por você. Ou melhor dizendo, vou te empurrar pra você fazer a escolha certa.
_Que papo de doido é esse, Ricardo?
Ele tomou fôlego e falou com todas as letras:
_Eu te amo. Eu achei que tinha deixado esse sentimento para trás, mas não deixei. Eu vou te fazer feliz, muito mais feliz que ele. Sabe por quê? Porque nós estamos caminhando na mesma direção, ao contrário de vocês. E nem você, nem ele estão dispostos a mudar a rota. Opostos podem até se atrair, Bernardo, mas não ficam juntos. Nós funcionamos muito melhor do que vocês, e você sabe disso._ ele fez um breve silêncio _Mas é muito injusto eu ficar esperando a sua decisão. Eu não vou ser a sua segunda opção, Bernardo. Eu não vou ficar com as sobras dele. Você vai ter que tomar uma decisão e viver com ela. Um mês, Bernardo. Eu te dou um mês para uma decisão. Aliás, quarenta dias, na sua festa de formatura. Nós não vamos nos falar durante esses quarenta dias, você vai usá-los para refletir. Eu vou na festa porque Alice me convidou e encontro com você lá. Ou saímos de lá de mãos dadas, ou nunca mais, você me entendeu?
_Você nem cogitou querer continuar só como meu amigo?_ perguntei ainda atordoado.
_Acho que já passamos desse ponto a muito tempo, Bernardo. Não podemos mais ser amigos depois de tudo que aconteceu entre a gente.
_Ricardo, eu...
_Quarenta dias._ ele me interrompeu _Espero que você tome a decisão certa. Um beijo, meu amor.
E desligou o telefone, me deixando com o olhar perdido encarando a parede. Voltei a cair na cama e me permiti chorar um pouco. Do ponto de vista dele, era muito justo o que ele estava me pedindo. Ele não queria mais conviver com a dúvida se um dia eu largaria Rafael para ficar com ele. Mas a minha natureza é de muita indecisão, e consequentemente de inércia como ele apontou. Rafael sabia disso muito bem e aprendeu a usar isso a seu favor. Praticamente todo o processo de requisição do visto foi guiado por ele, pois ele sabia que eu ainda tinha dúvidas. Mais: ele tomou a dianteira com medo de que eu pensasse demais e desistisse.
Se a balança da minha decisão sempre pesou pro lado de Rafael, agora ela desequilibrou, pois no outro lado entrou a minha família, meus amigos, Ricardo e o meu afilhado. Era uma briga muito injusta, Rafael contra todo mundo. Eu conseguiria viver feliz sem Rafael? Eu conseguiria viver feliz sem todos os outros? Até aqui, posso falar sem medo de exageros, foi a maior decisão da minha vida.
[...]
Vai sair?_ perguntou minha mãe quando passei pela sala.
Minha esperança era que ela não me visse, mas ela parecia ter o superpoder de se materializar de repente em qualquer cômodo da casa.
_Ah, vou almoçar na casa do Pedro._ respondi.
_Não acha que precisamos conversar?_ perguntou em tom de bronca.
_Mãe, podemos deixar isso para outra hora?
Ela bufou.
_Você é inteligente e esclarecido, Bernardo. Nós te criamos muito nem nesse sentido. Eu só espero que você saiba usar isso para dizer a Rafael o que você tem que dizer.
_Como assim?
_Você não vai, Bernardo.
_Você não pode me proibir, mãe. Eu sou maior de idade e em breve financeiramente independente de vocês.
_Não falei em tom de proibição, foi uma afirmação. Você não vai._ ela falou me encarando _Está escrito nos seus olhos que você não vai.
Eu fiquei atordoado pela certeza que ela tinha que eu não ia. Ela me conhecia tão bem assim?
_Você se engana dizendo pra si mesmo que está em dúvida, mas é uma mentira._ ela falou indo pra cozinha _Você está claramente sofrendo. E a dúvida não causa sofrimento, a certeza sim.
[...]
_Vai. Falta você me falar pra não ir._ falei.
_Não vá._ respondeu Pedro _Independente de todos os motivos egoístas que eu tenha pra você ficar, fique por você mesmo. Você não quer ir.
_Eu posso te dar um milhão de exemplos de coisas que eu nunca quis fazer, mas quando eu fiz, agradeci por ter feito!
_Você está tentando convencer a mim ou a você mesmo?_ ele devolveu debochado.
Bufei de raiva. Todos falavam a mesma coisa. Eu queria ter ao menos uma opinião favorável à minha ida pra eu montar um debate mais justo na minha cabeça, mas as pessoas não estavam ajudando.
_Esse medo que eu tenho de não me adaptar à minha nova vida não é pura covardia? Eu não estou desistindo sem nem mesmo tentar?
_Saltar de um penhasco na esperança de milagrosamente aprender a voar não é coragem, é burrice._ ele respondeu _Eu acho nós dois muito parecidos neste aspecto, Bernardo. Nós somos muito apegados à nossa terra e à nossa família. Acho que é por termos crescido em famílias grandes. A gente não consegue viver muito longe daqui, é a nossa sina: nascer e morrer em Belo Horizonte. E não há nada de covardia ou provinciano nisso. É apenas quem nós somos.
Ele fez uma pausa e me encarou, como se para que eu absorvesse com cuidado suas palavras.
_Mas não é definitivo._ argumentei _Rafael disse que serão só dois anos, depois a gente volta.
_Não vão só dois anos, e você sabe disso. Ofereceram a ele dois anos de estabilidade, mas ele vai continuar subindo dentro da empresa por lá. A empresa não investiria nele à toa. Se vocês fossem voltar, seria depois de dez ou quinze anos lá, quando ele pudesse pedir transferência. Mas vamos ser sinceros, Rafael vai adorar o Canadá. É o lugar dos sonhos dele. Ele não vai voltar, Bernardo.
Cada palavra de Pedro soava como uma dolorosa verdade. Não seriam só dois anos, seria uma mudança definitiva.
_Há dois tipos de pessoa._ falou Pedro _Gente que é feliz com um milhão de amigos, festas, viagens para todo lugar do mundo, conhecendo novas culturas. Enfim, gente que só é feliz em movimento. E tem gente que é feliz com sua casinha no campo, seus livros, seus discos, seus filhos. Gente que é feliz na calmaria. Rafael é do primeiro tipo, eu e você somos do segundo. É simples assim. E não acho que nenhum de vocês dois esteja disposto a mudar pelo outro.
_Então eu devo simplesmente desistir de tudo o que eu vivi com Rafael? Jogar toda nossa história fora?_ perguntei quase chorando.
_O que você deve fazer é falar com ele tudo que está passando na sua cabeça. Vocês devem achar a solução juntos.
Abaixei minha cabeça para esconder as lágrimas que teimavam em querer cair numa frequência anormal nos últimos dias.
_Se for para vocês realmente terminarem,_ falou Pedro _melhor que seja aqui com um resto de amor um pelo outro, do que lá fora com vocês se odiando.
Terminar com Rafael? Como eu tinha chegado àquele ponto?
[...]
_Oi._ Rafael falou abrindo a porta com um sorriso no rosto.
_Oi._ respondi sem jeito.
Aquela seria a derradeira noite. Eu contaria a ele tudo que estava na minha cabeça: do beijo de Ricardo à minha resistência quanto a viajar pro Canadá.
_Vem._ ele falou me entendendo a mão.
Eu peguei na sua mão e ele me puxou delicadamente para um beijo. Foi um beijo muito calmo, romântico, amoroso. Ainda consigo lembrar como era forte o cheiro do seu perfume amadeirado, e como era bom suas mãos apertando carinhosamente a minha cintura. Ainda lembro como ele dominava muito bem a mecânica do beijo, e como ele conseguia beijar usando o corpo inteiro, te fazendo sentir como a única coisa que realmente importava no mundo.
Ele me levou até a varanda do apartamento onde ele tinha montado uma pequena mesinha para nós dois jantarmos.
_Eu fui um idiota, Bernardo._ ele falou _Eu tenho plena consciência disso. Não vai mais acontecer, eu juro. Eu confio em você. E ele parece um bom rapaz, não parece alguém capaz de sacanear o namoro dos outros assim. Se você diz que ele é seu amigo, eu não posso julgar, pois só você sabe o quanto ele te ajudou lá na França. Se ele é se amigo, ele é meu amigo também. Eu te prometo que não vamos viajar sem antes eu fazer com que ele me perdoe pelo meu papel de ridículo.
Quando ele terminou, eu já estava chorando, mas ele não percebeu de imediato. Achou que fosse de emoção. Mas não, era medo. Era um medo terrível de que tudo terminava ali. O que foi que fiz? O que eu estava prestes a fazer com ele?
_O que foi?_ ele perguntou preocupado ao ver que tinha alguma coisa de errado.
Eu não pude esconder por mais nenhum segundo.
_Eu beijei Ricardo.
Seus olhos se paralisaram em mim, como se o choque daquela revelação o deixasse até sem saber o que pensar. Totalmente inesperado, ele nunca viu aquilo vindo. Quando Rafael se permitiu piscar, seus olhos já se mostravam vermelhos. Mas o que eu vi no seu olhar não foi raiva. Acho até que seria melhor se fosse. O que eu vi no seu olhar foi uma profunda dor, uma dor que eu nunca tinha visto ele sentir.
Tudo o que conseguia pensar era:
“Aquele beijo a segundos atrás fora nosso último?”