O que fazer agora? Estava acontecendo tudo o que eu não queria: eu estava envolvido sentimentalmente com outra cara novamente. E desta vez era diferente. Não era aquele simples tesão combinado com o sentimento de fuga da realidade que eu sentia ao estar com Eric. Com Rafael era uma coisa maior. Quando estávamos separados eu só tinha pensamentos para ele, sentia saudade sua de um jeito quase doloroso, eu não tinha paz. Quando estávamos juntos eu me sentia mais leve que ar, capaz até de voar, eu ria sem motivos e era feliz com a muito não lembrava de ter sido. Eu estava apaixonado por Rafael.
Não sei como isso aconteceu. Talvez tenha sido quando passamos a tarde toda juntos fazendo um trabalho de faculdade. Nos reunimos na minha casa, e resolvemos tudo o que tinha para ser resolvido em meia hora. Mas quando terminamos, ele não tinha vontade de ir embora, nem eu de que ele se fosse. Eu queria continuar conversando bobagens com ele para sempre, fosse trocando memórias ou discutindo sobre nossos gostos musicais.
Ou talvez eu tenha me apaixonado por ele naquele fim de aula onde ele me ofereceu carona para fugir da chuva torrencial que caía sobre Belo Horizonte. Ficamos presos num engarrafamento terrível, e como não tínhamos mais nada para fazer, decidimos relaxar e conversar tentando conhecer e entender melhor um ao outro.
Uma outra hipótese é que eu estivesse apaixonado por Rafael desde sempre. Sim, Eric chamou primeiro minha atenção, mas por ser tão bonito que atrai todos os olhares. Rafael não. Ele é sim muito bonito, atlético, pele muito levemente morena, olhos marcantes, mas talvez passasse despercebido na multidão. Isso, claro, até que ele abrisse a boca. Dali em diante ele se tornou o astro da turma, em torno do qual todos gravitávamos. Eu acho que nunca tive ciúme de Eric. Eu tinha ciúme de Rafael. Acho que me apaixonei por ele no primeiro comentário seu a arrancar risos da turma, só não percebi. O ardor do ciúme apareceu primeiro (mesmo que eu pensasse ser por Eric) e disfarçou meus verdadeiros sentimentos.
E agora lá estava eu, conscientemente apaixonado por Rafael e indo com ele num encontro de casais. Em poucas horas em eu me sentaria com ele, Alice e Pedro e caminharia sobre a corda bamba quando o papo virasse para a homossexualidade de Eric, como era o plano de Rafael. Lógico que Alice desconfiou quando a convidei para sair.
_O que você está me escondendo, Bernardo?
Ela conseguia perceber leves oscilações na minha voz identificando uma mentira.
_Nada, uai. É um programa de amigos, eu, você, Rafael e Pedro.
_Eu não sou amiga de Rafael ou de Pedro.
_Mas eles são meus amigos, assim como você, e eu gostaria de todos reunidos hoje à noite._ falei meio bravo para ver se conseguia atingi-la.
O telefone ficou mudo por alguns instantes, como se ela estivesse pensando no que eu falei.
_Ok, eu vou, mas saiba que eu entendo muito bem o que está acontecendo.
_O que é que está acontecendo?_ perguntei com medo dela ter desconfiado.
_Nada, deixa pra lá._ respondeu depois de mais alguns segundos de silêncio _Até de noite.
_Até.
Só quando ela desligou é que percebi que ela não se referia a ela e Pedro, e sim a mim e Rafael. Ela estava pensando que eu estava armando aquilo para sair com ele. Alice sabia o que estava acontecendo comigo. Aliás, ela percebeu antes de mim.
“...em resumo, se você machucar o Bernardo, você vai se ver comigo, entendeu?”
Aquela ameaça dela a Rafael fazia muito mais sentido agora. Alice sabia.
_Será que vai dar certo?_perguntou Pedro preocupado ao telefone quando lhe contei do nosso novo plano.
_Existe grandes chances de dar certo.
_E esse Rafael? Ele é mesmo confiável?
_É sim, Pedro, foi dele a idéia.
_Hum... Sempre achei que ele tivesse alguma coisa com aquele Eric.
_É, aparentemente não._ tive que jogar o Rafael para dentro do armário sem nem perguntar isso antes para ele, Pedro não poderia ficar desconfiado.
_Estranho isso.
_Ele vai te contar a história toda, mas pelo o que eu entendi, Rafael ofereceu sua amizade, mas Eric queria mais.
_Erghh!_ resmungou demonstrando nojo. Tive que fechar os olhos e contar até três para engolir aquilo.
_Então, vou pedir para ele te ligar e passar os detalhes, certo?
_Certo.
_Então, até de noite.
_Bernardo?
_Oi?
_Obrigado, cara.
_De nada, você faria o mesmo por mim._ (Não, não faria.)
_Faria mesmo. Até de noite.
_Até.
Desliguei já meio desacreditando que aquilo tudo daria certo. Mas ainda me restava alguma esperança. E agora vinha a parte mais difícil, falar com Rafael. Nada tinha mudado em relação a nós dois, só que agora eu sabia o que estava acontecendo comigo e isso não me deixava mais agir naturalmente com ele. Eu estava aterrorizado com a simples idéia de ouvir a voz dele. Depois de dez tentativas mal-sucedidas, onde eu discava os números e tornava a apagá-los, deixei o telefone chamar. Rafael atendeu no segundo toque:
_Alô?
Só a voz dele foi o bastante para aquecer meu corpo e me fazer esquecer todo o medo e terror que eu sentia. Sorri só de ouvir aquela sua levemente rouca voz.
_Oi, Rafael, sou eu... Bernardo.
Me peguei falando assim, em pedaços. Eu estava nervoso, muito nervoso.
_Oi!_ eu podia estar ficando louco, ou simplesmente inventando coisas na minha cabeça, mas pensei que a voz dele se iluminou quando falei que era eu, como se ele também estivesse feliz por estar falando comigo.
_Então, er..._ tentei me lembrar o motivo pelo qual eu tinha ligado _Eu falei com Pedro e Alice.
_Hã? Ahh, sim, claro. E como foi?
_Eles toparam sair com a gente.
_Ótimo! Até aqui tudo bem então.
_Sim, aproveitei e contei para Pedro do nosso plano. Falei também que Eric tentou algo a mais com você e você não deixou. Pedro não pode saber da verdade, que você é... que você é também.
Fechei os olhos quando falei aquilo esperando uma negativa por colocá-lo no meio da mentira. Ele ficou alguns segundos em silêncio, mas eu podia ouvir sua respiração no outro lado da linha.
_Foi o mais certo a se fazer mesmo._ falou por fim tirando um peso das minhas costas.
_Você pode ligar para ele e combinar os detalhes?
_Claro, tenho o telefone aqui.
_E você tem algum restaurante em mente? Não pode ser nada muito romântico. Alice notaria na hora.
_Pensei num barzinho que conheço no Santo Antônio.
_Eu confio no seu bom gosto.
Ele riu e só o som da sua risada foi suficiente para deixar minhas pernas bambas. Tentei recobrar meus sentidos e retomar minha velha máxima: não deixar espaço para coisas que eu não quero acontecerem. Por mais doloroso que fosse, eu precisava manter uma distância segura de Rafael. Eu precisava fazer isso enquanto ainda estava no controle da situação.
_Acho melhor você levar a Alice no seu carro e eu ir com Pedro. Vai dar menos na cara._ sugeri.
Senti sua voz ficar alguns tons mais tristes, mas tentei ignorar aquilo e o quanto me afetava.
_Claro, é melhor assim mesmo.
_Então... Nos vemos à noite?
_Sim, nos vemos à noite._ respondeu um pouco mais alegre.
_Até mais, então.
_Até!
Assim que desliguei o telefone me deixei cair na cama. Fazia frio naquela tarde de sábado, mas eu suava. Suava de nervosismo com a noite que me aguardava. Tentei me sentir melhor pensando que seria uma ótima noite na companhia de três pessoas que eu gostava muito. Tudo sairia como planejado. Pedro e Alice se entenderiam, e eu e Rafael os deixaríamos a sós. Isso significava que eu voltaria com Rafael para casa? Nós dois um pouco bêbados, de madrugada sozinhos num carro? Como eu não tinha pensado nisso antes? Talvez eu voltasse de táxi. Imagina só, nós dois naquela situação. Um de nós faria algum comentário bobo sobre o novo casal, e o outro riria. Quando fosse trocar de marcha, sua mão esbarraria propositalmente na minha perna, e eu deixaria. O silêncio criaria um clima. Ele deixaria a mão sobre o câmbio encostando-a na minha coxa. Eu tomaria coragem e colocaria minha mão sobre seu joelho. Ele sorriria para mim e seguraria minha perna com firmeza. Eu subiria minha mão suavemente pela sua calça e... Chega! Eu precisava de um banho frio!
[...]
Eu e Pedro estávamos parados na porta do restaurante. Ele criando coragem para entrar e ver Alice, e eu... Bom, e eu criando coragem para ver Rafael.
_Tá na hora, vamos lá?_ falei enfim.
_Vamos.
Entramos e rapidamente localizamos os dois sentados numa mesa num canto mais isolado. Era um lugar bonito, parecia um legítimo pub inglês. A música ambiente era baixa, favorecendo assim as conversas nas mesas. Rafael tinha escolhido bem o lugar. Fomos em direção à mesa. Alice e Rafael estavam sentados um de frente para outro, de forma que Pedro foi obrigado a sentar ao lado de Alice e eu ao lado de Rafael. Não sei se aquilo foi combinado, mas eu não duvidava de nada.
_Demoramos muito?_ perguntei.
_Não, chegamos não faz nem dez minutos._ respondeu um sorridente Rafael.
Ele estava tão lindo... Usava uma calça jeans escura e uma camisa vermelha. A barba tinha sido feita recentemente e os cabelos estavam curtos, quase em estilo militar. Alice também estava bem arrumada de saltos discretos, um vestido preto solto um pouco acima dos joelhos, maquiagem discreta e os cabelos soltos. Estava claro que ela não tinha esforçado para ficar bonita, que se arrumou para uma noite qualquer, ao contrário de Pedro. Ele estava bem arrumado demais, até um pouco mais do que deveria para aquele ambiente, com um visual mais sério.
Pedimos bebidas e tira-gostos e começamos a conversar. Pedro demorou a se soltar, mas com ajuda do álcool conseguiu. Eu estava me controlando, já que queria estar em pleno estado de consciência para não fazer nada de que me arrependeria depois. Alice, basicamente, conversava comigo e com Rafael. Ela não estava sendo fria com Pedro, respondia quando ele lhe perguntava algo, mas não puxava papo com ele. Em certa hora da noite ela se levantou para ir ao banheiro.
_Bom, acho que é hora de colocar o plano em ação._ falei.
_Certo._ responderam Pedro e Rafael, o primeiro visivelmente nervoso.
_Relaxa, Pedro, ou vai dar tudo errado.
_Ok, ok...
Alice voltou e continuamos a conversar. Eu não conhecia os detalhes que Pedro e Rafael haviam combinado ao telefone, então não sabia muito bem como o assunto surgiria. Não demorou.
_E aquele Eric, hein?_ falou Pedro _Está estranho, né, quieto, calado...
Eu arregalei os olhos e Rafael tomou um grande gole de cerveja. A diferença é que minha reação foi genuína e a dele foi milimetricamente ensaiada.
_Pois é..._ Rafael respondeu.
_Vocês andavam muito juntos, o que aconteceu?_ falou Pedro.
Eu e Alice trocamos um olhar rápido e ela entendeu como um pedido de intervenção.
_Viramos marias-futriqueiras agora? Vamos parar de falar dos outros, né minha gente?
_Tudo bem, Alice._ interviu Rafael. Era perceptível que ele estava um pouco bêbado. Ou melhor fingindo-se de bêbado _O Pedro é da turma, já está na hora dele saber.
_Mas...
_Não, Alice, vou falar sim. O caso é o seguinte, Pedro, eu e ele éramos amigos sim. Ele que se aproximou de mim, sabe, foi puxando papo. Eu não estranhei nada a princípio. Ele era excessivamente carinhoso e isso me incomodava, mas relevei. Até que um dia ele tentou me beijar e eu fui obrigado a me afastar dele. Aquela bicha! Se fazendo de amigo só pra dar em cima de mim. Viado nojento! É melhor ele não chegar mais perto de mim depois disso, porque eu nem sei do que sou capaz de fazer!
Alice ouvia tudo calada não olhando para ninguém em particular. Eu a analisava. Será que ela tinha comprado a idéia que Rafael estava disfarçando sua homossexualidade para Pedro? Era o que uma pessoa que sabia o que ela sabia pensaria, mas Alice é uma pouco mais esperta do que a média. Ela estava indecifrável.
_Calma, cara, não é assim._ falou Pedro.
Alice levantou os olhos para ele intrigada. Eu olhava para ela disfarçadamente tentando entender o que se passava em sua cabeça.
_Por que não foi com você, né?_ revidou Rafael.
_Tá, mas não precisa xingar assim. O cara deve ter se enganado, um erro bobo.
_O que ele fez me dá nojo!
Rafael estava interpretando bem demais. Desconfio que ele usava a memória da traição de Eric para criar aquela raiva na voz. Ele realmente não gostava de Eric e estava extravasando isso.
_Para com isso, cara. Ele merece respeito. Você não pode discriminar uma pessoa só por ser diferente de você. Tenta entender o cara.
_Quem te viu, quem te vê, senhor Pedro._ falou Alice.
Era a primeira vez que ela se dirigia diretamente a ele naquela noite. Vi os olhos dele se iluminarem.
_Como assim?_ perguntou com um certo nervosismo na voz.
_Ora, poucos meses atrás eu presenciei você falando tão mal de Eric...
_Ah, isso...
Como aquilo não estava no roteiro, ele teve que improvisar.
_Bom, você sabe, tava a galera toda reunida, a gente tava se conhecendo ainda, então quis tirar sarro de um colega para fazer todos rirem. Eu sei, eu fui meio babaca, mas todo mundo é meio babaca de vez em quando, então releve.
Ele foi muito bem, eu mesmo quase acreditei nele. Alice sorriu discretamente e se voltou a atenção para mim. Tentei parecer impassível, para que ela não pudesse ler.
_Tudo bem, Rafael?_ falou Pedro, chamando nossa atenção para Rafael.
As veias do pescoço dele estava aparentes, ele tava um dois tons de vermelho acima do normal, e com os dentes trincados. Eu sabia o que estava acontecendo, ele estava sentindo realmente toda aquela raiva de Eric. Eu sentia uma vontade inexplicável de acabar com sua dor. Foi a mesma sensação que senti quando topei participar de uma vingança contra Eric ainda sem conhecer o plano. Eu agi impulsivamente e fiz uma coisa que não achei que seria capaz de fazer: eu encostei minha perna na perna de Rafael sob a mesa, como uma forma de despertá-lo daquele transe, como se eu dissesse “ei, eu estou aqui”. Deu certo. Ele pareceu ter acordado, olhei para mim rapidamente e deu um sorriso discreto, mas sincero. Então se virou para Pedro e respondeu:
_Tudo, é que esse assunto me deixa tenso.
_Ah, sim.
_Bernardo, posso falar com você por um instante?_ falou Alice.
Ela nem esperou minha resposta, já se levantou e fui saindo em direção ao bar no local. Rafael e Pedro me olharam como se pedissem uma explicação, e respondi com gestos que também não fazia menor idéia do que estava acontecendo. Alice me esperava escorada no balcão de braços cruzados.
_O que diabos está acontecendo aqui?_ perguntou.
_Não sei... Por um momento eu achei que Rafael contaria tudo a Pedro. Ele já bebeu um pouco.
_E essa repentina redenção de Pedro?
_Ah, sei lá. Sempre te disse que o achava um cara legal. Você que implica com ele.
_Bernardo...
_O que?
Ela estava muito desconfiada e eu estava andando na corda bamba com ela. Eu precisava fazê-la acreditar em Pedro pelo bem de todos.
_Por que eu desconfio que estou caindo numa armadilha?
_Porque você sempre desconfia de tudo e todos. Para com isso! O cara gosta de você. Viu como ele está todo arrumado, sério?! É pra você! E você devolve com frieza, mal falou com ele a noite toda. Custa dar uma chance a ele? Ao menos conversar amigavelmente com ele?
Ela olhava nervosa de um lado para outro, tentando decidir o que fazer. Eu torcia para ela ter se comovido com meu discurso. Ela então sorriu sacana e voltou sua atenção para mim:
_Certo, então vou dar uma chance a ele, mas antes preciso fazer mais um teste.
_Que teste?
_Você vai ver. E se prepare, como eu desconfio que você e Rafael estão envolvidos nisso, vai sobrar para vocês.
_Como assim?
Mas ela já tinha voltado para mesa e não me respondeu. Voltei também e me sentei. Pedro e Rafael nos olhavam curiosos. Alice sorria e eu olhava para ela tentando prever seu próximo movimento. Então ela fez o inesperado, colocou a mão sobre o braço de Pedro e se dirigiu a ele com um enorme sorriso no rosto:
_Então meninos, aqui está muito bom, mas o que vocês acham de a gente dar uma esticada?
Pedro sorria como bobo, hipnotizado por ela.
_Em que você está pensando?_ perguntou Rafael.
_Que tal irmos àquela famosa boate gay que tem no próximo quarteirão?
Nós três arregalamos os olhos assustados com a proposta. Pedro e Rafael trocaram olhares cúmplices, enquanto eu queimava Alice com meu olhar. Ela ainda sorria.
_E então? Vamos! Vai ser super divertido.
_Você está esquecendo de que ninguém nessa mesa é gay._ falei entre os dentes com raiva, mas ela ainda sorria.
_E daí? Ninguém vai te atacar lá, não, gostosão. Além do que, você e Rafael podem fingir que são um casal. Eu finjo ser namorada de Pedro e ninguém é atacado por essas criaturas devassas e guiadas somente por hormônios que são os gays._ respondeu irônica.
Ela ganhou Pedro no momento em que propôs fingir ser sua namorada.
_É gente, vamos, vai ser legal!_ falou Pedro suplicando com os olhos para que aceitássemos. Ele estava tão apaixonado que teria concordado em ir até para o inferno com Alice.
Eu olhei para Rafael em busca de socorro, mas ele não teve coragem de dizer não, ou estava querendo curtir uma com minha cara:
_Mal não vai fazer, uai.
_Oba! Vamos, vamos!_ falou Alice ainda me olhando sorrindo.
Eu e Rafael fingindo ser um casal numa boate gay aos olhos de Pedro. Minha noite poderia ficar melhor do que aquilo? Aquela foi uma daquelas noites pela qual eu me lembraria pelo resto da vida...