Como a vida nos arma surpresas, não? Se há dois meses alguém me dissesse que eu estaria numa boate gay lado de Alice, Rafael e Pedro, eu riria e o chamaria de louco, mas lá estava eu. Eu não me reconhecia. Eu sempre fui tão racional, e agora estava me deixando ser levado por impulsos. Sim, porque eu poderia ter me recusado a ir, mas não o fiz, e existia um único motivo para isso: Rafael.
Meu inconsciente me jogou numa boate gay, um lugar onde eu teria total liberdade com Rafael. Pensando hoje nisso, desconfio que Rafael tinha plena consciência do que estava acontecendo e de onde nós estávamos. Eu estava caindo no jogo dele. Alice, claro, tinha sua parcela de culpa também. Ela não exigiu que eu e Rafael fôssemos com eles à boate só para fazer companhia, ou de vingança. Me conhecendo como conhecia, ela não seria capaz daquela maldade. Ela percebeu o que estava acontecendo e agora estava me jogando para cima de Rafael. E o pior, mesmo desconfiando disso, eu estava completamente refém dos meus recém-descobertos sentimentos por Rafael.
Eu nunca havia ido a nenhuma boate, nem mesmo a uma boate hétero, então tudo aquilo para mim era muito diferente. A música extremamente alta, os jogos de luzes, o neon, a fumaça, tudo era novidade para mim. Lembro de num primeiro momento eu ter pensado que não tinha nada de gay naquela boate. Essa primeira impressão sumiu quando vi dois caras se beijando bem próximo a mim. Eu nunca tinha visto um beijo gay ao vivo, então, sim, aquilo me impressionou. Eu fiquei paralisado, olhando aquela imagem, analisando o movimento da bochecha e da língua daqueles dois. E eu não estava sozinho, Pedro também os encarava. Alice e Rafael tiveram que nos puxar para longe.
_Vocês dois vão apanhar aqui se fizerem isso de novo!_ avisou Rafael.
_Tô a fim de beber!_ anunciou Alice _Vou no bar. Vem comigo, Rafael.
É lógico que os dois iam falar sobre mim, mas eu não podia fazer nada para impedir. E lá fiquei eu, sozinho com meu amigo homofóbico no meio de uma boate gay. Eu não tenho palavras para descrever o quão desagradável era aquela sensação.
_Você vai me dever isso pelo resto da vida._ falei com Pedro. Era por causa dele que eu estava ali.
_Eu sei… Eu não queria te colocar nessa, mas Alice...
_Acho que ela está te testando.
_Também tô achando.
_Então, se eu fosse você, não bebia. Vai que você perde o controle.
_É, vou me controlar.
Ele olhava em volta com uma expressão de nojo, o que só conseguia aumentar meu desconforto com a situação.
_Cara, tô passando mal aqui._ falou _Olha isso aqui!
_Fica quieto, o seu disfarce não pode cair. Até aqui está indo tudo bem. Lembre de porque você está aqui.
_Eu sei, e é só esse pensamento que não me impede de sair correndo daqui.
_Fica calmo.
Alice e Rafael voltaram com drinks. Nem perguntei o que tinha no meu, virei quase tudo de uma vez, eu precisava me anestesiar, tinha coisa demais acontecendo.
_Vai com calma, amigão, se lembra da última vez, né?_ falou Alice.
_A situação me permite.
_Você que sabe..._ respondeu _Vamos dançar, meninos?
E lá fomos nós para a pista de dança. Eu nunca fui um grande dançarino, então me conformei em ficar pulando e mexendo os braços desengonçadamente de olhos fechados. A bebida já estava começando a fazer efeito em mim, me deixando soltinho. Quando abri os olhos vi Alice e Rafael rindo de mim.
_O que foi?_ perguntei alto para minha voz se sobressair à música.
_Você precisa urgentemente de aulas de dança!_ falou Alice ainda rindo.
_O que tem de errado no jeito que eu danço?!
_Tudo!_ respondeu Rafael _Deixa eu te ensinar.
E antes que eu pudesse entender muito bem o que ele havia dito, Rafael se posicionou na minha frente, colocou as mãos na minha cintura e foi me fazendo mexer em sincronia com a batida da música. O álcool já tinha me deixado bem soltinho, então deixei. Era uma sensação nova para mim, as mãos de Rafael me segurando firme pela cintura me provocavam uma sensação de calor, de segurança, de desejo... E antes que eu pudesse me dar conta de como era boa aquela sensação, ele me soltou e me deixou dançando sozinho. Ele me observava como um pai que havia acabado de soltar a bicicleta do filho que acabara de aprender a andar nela. Rafael sorria para mim e eu sorria para ele, como se só existisse nós dois no mundo e mais ninguém. E então eu sabia que era recíproco. Rafael também estava apaixonado por mim.
Os olhos de Rafael então se desviaram para um ponto qualquer atrás de mim e vi tensão em sua expressão. Olhei para onde seus olhos apontavam e entendi o motivo. Um cara de aproximava de Pedro com um inconfundível olhar de desejo. Não havia como interferirmos, só podíamos torcer para Pedro se controlar. Não conseguíamos ouvir nada devido à música alta, mas os gestos diziam tudo: Pedro dançava alegre com Alice e os dois pareciam estar se entendendo; o cara toca o ombro de Pedro e vira para olhá-lo; o cara fala alguma coisa no seu ouvido e é possível notar o rosto de Pedro se contorcendo de nojo; Alice entendeu o que o cara queria com Pedro e riu maldosamente; Pedro fez que não com a cabeça e disse alguma coisa; o cara insiste e pega em seu braço; e numa incrível provação das minhas habilidades em leitura labial, eu vejo Pedro falar “eu estou acompanhado, não está vendo?” e passar o braço em volta da cintura de Alice puxando-a para mais próximo dele. O cara desiste, Alice sorri, e Pedro então percebe que aquela é uma chance única. Pedro avança sobre Alice e lhe rouba um beijo. Ele se afasta esperando para ver sua reação. Ela lhe puxa de volta e lhe beija. Eu aprecio a cena, muita bonita aos meus olhos: Alice e Pedro, em meio a toda aquelas luzes, toda aquela fumaça, toda aquela gente, se beijando como se não existisse mais nada, em câmera lenta.
_Conseguimos!_ falou Rafael no meu ouvido.
_Nem acredito que todo esse esforço deu certo._ respondi.
Ele sorriu com o canto da boca.
_Bom, nem tanto esforço assim. Vai dizer que não está aproveitando a noite?
Eu tive vontade de dizer sim, que a noite ao seu lado estava sendo maravilhosa, para então pular nele e beijá-lo até meus lábios ficarem dormentes. Mas eu ainda estava sóbrio o bastante. Eu tinha consciência do que podia e do que não podia fazer. Eu não podia cair em tentação novamente, eu tinha que continuar andando na linha.
_Eu vou pegar mais uma bebida para mim.
Vi seu sorriso se desfazer e meu coração se apertou com aquilo, mas eu precisava ser mais forte. Saí da pista de dança em direção ao bar e Rafael veio junto.
_Vou ao banheiro, depois te encontro no bar._ falou.
_Certo.
Tratei logo de conseguir outra bebida. Eu precisava de forças extras para passar por aquela noite. Não vi quando um cara de aproximou de mim no bar.
_Deixa eu adivinhar, primeira vez numa boate gay?
Eu me virei para olhá-lo. Era bonito, normal, mas ele tinha um certo ar sedutor. Tinha algo de James Dean nele. Eu deveria tê-lo cortado já no início, mas eu já estava meio alegre por conta da bebida e dei papo:
_Dá pra perceber só de olhar?
_Nem tanto, é que quando você chegou você ficou olhando tudo em volta com um ar de novidade.
_Isso quer dizer que você está me olhando desde que eu cheguei?
Ele respondeu com um sorriso safado. Eu estava atraído por aquele cara sim, mas não tinha a mínima a intenção de fazer qualquer coisa com ele. Pelo menos, não sóbrio. Num ato falho, sorri de volta.
_Então, posso saber seu nome?
_Acho melhor não..._ falei lutando para deixar meu lado sóbrio falar.
_Por que não?
_Porque o namorado dele não vai gostar._ falou uma voz atrás de mim.
Me virei e vi Rafael nos encarando com uma cara de bravo. Previ problemas.
_Namorado?_ falou o cara, claramente desafiando Rafael.
_Sim, namorado._ ele respondeu passando a mão pela minha cintura.
Os dois se encaravam como se prestes a entrar em confronto.
_Seu namorado?_ o desconhecido perguntou para mim.
_É... Hum... Mais ou menos, eu acho...
_Bom, já vi que a situação aqui é complicada, melhor dar o fora.
_Sim._respondeu Rafael.
O cara pegou seu copo e se misturou na multidão, provavelmente procurando por outro alvo.
_Eu te deixo sozinho por dois minutos e você já sai se assanhando com desconhecidos?
Rafael falou num tom meio irônico, mas eu consegui identificar tons de raiva em sua voz.
_E se estivesse?_ perguntei querendo ver aonde aquilo ia chegar.
_É seu direito, você é livre e desimpedido.
_Sim, eu sou. Então, por que afugentou o cara?
Ele me encarou por alguns segundos. Vi a raiva nos seus olhos aumentar.
_Não sei! Não sei de mais nada! Não sei que diabos eu estou fazendo mais!
_Pois somos dois, Rafael!_ respondi já me inflando também.
_Então por que simplesmente não se deixa levar?
Ele falou isso e me puxou pela cintura deixando nossos corpos colados. Eu conseguia sentir sua respiração quente chegando ao meu nariz. Não desgrudamos nossos olhares nem por um segundo. Eu estava prestes a cometer uma loucura e realmente me deixar levar pela intensidade daquilo que eu estava sentido. Mas eu não podia, eu precisava ser mais forte que isso.
Eu não posso, Rafael..._ falei choramingando _Não faça isso comigo, por favor...
Seus olhos se encheram de lágrimas ao ouvir aquilo, mas ele cedeu ao meu apelo e me soltou. Não dei chance para que eu ou ele mudássemos de idéia. Saí correndo daquele lugar e fui para casa.
[...]
Rafael não saiu da minha cabeça durante todo aquele domingo. Eu estava apaixonado por ele e não sabia como lidar com isso. Era torturante pensar nele e não poder tê-lo. O que eu sentia por Rafael era muito, muito maior do que eu senti por Eric. E se naquela ocasião eu não consegui me segurar, imagina como seria agora... Eu não podia me dar essa liberdade. Eu sabia que no momento em que eu cedesse, toda a minha vida estaria definida em função daquilo. Eu sabia que era um caminho sem volta.
Mas eu não sou uma pessoa completamente racional, o lado emocional pesava muito. E meu lado emocional era uma como uma força da natureza e jogava tudo pelo alto quando passava. Eu tinha uma necessidade inexplicável de amar e ser amado. Eu queria sentir tudo aquilo que sempre vi em filmes e em livros. Eu queria amar Rafael. Eu queria me entregar a ele totalmente desarmado, totalmente desprovido de armaduras e medos. Eu queria ser feliz. Eu queria que Rafael me fizesse feliz.
E aqueles dois lados, o racional e o emocional ficavam brigando dentro da minha cabeça tentando chegar a um acordo. Mas não havia acordo, não havia como conciliar as duas coisas. Ou eu me jogava sem medo naquilo, ou eu me preservava e continuava levando minha vida tranquilamente. Eu precisava fazer uma escolha e eu precisava conviver com ela. Talvez fosse a grande escolha da minha vida, aquela que mudou os rumos da minha vida.
E naquele turbilhão que passava pela minha cabeça, o domingo foi passando sem que eu me desse conta. Quando adormeci àquela noite, nem lembrava mais quais eram os argumentos do lado racional.
[...]
Segunda-feira. Eu estava parado na porta da faculdade esperando Rafael. Eu não tinha um plano. Eu não tinha ensaiado o que falar, nem o que fazer. Eu nem sabia ainda o que queria exatamente com aquilo. Eu não sabia o que esperar. Eu queria ver Rafael e conversar com ele.
Ele não demorou a aparecer. Estava lindo, como sempre, apesar do seu olhar triste. Ele parou ao me ver. Ficamos nos encarando ali, tentando nos entender só no olhar. Eu chegava a tremer de nervosismo. Ele se aproximou de mim até ficarmos bem próximos.
_Oi.
_Oi._ respondi _Podemos conversar?
_Claro._ eu vi algo parecido com um sorriso no seu rosto.
Fomos caminhando lado a lado em silêncio, eu o guiava para aquele isolado banheiro ao qual em sempre recorria nessas situações. Entrei e dei espaço para que ele entrasse também. Me escorei na parede e fiquei o fitando. Ele também me olhava esperando que eu começasse a falar.
_Eu não sei mais o que eu estou sentindo._ falei já com a voz embargada.
_Bernardo...
_É tudo tão confuso e pesado. É difícil, sabe? Ter consciência daquilo que estou sentindo e ao mesmo tempo querer e abominar essa coisa.
_Bernardo..._ ele foi se aproximando de mim.
_Eu estou apaixonado por você e não sei o que fazer com isso.
Ele limpou as lágrimas que teimaram em molhar minhas bochechas.
_Eu também estou apaixonado por você.
E mais nada era preciso ser dito. Por mais que eu já soubesse que o que sentia era recíproco, ouvir aquilo muda tudo. Torna a coisa real. Estávamos irremediavelmente apaixonados um pelo outro.
Rafael se aproximou de mim até que nossos narizes se encontrarem. Uma de suas mãos segurava minha cintura e a outra meu rosto. Eu deixei me levar e segurei sua cintura. A milímetros de distância, nos olhávamos com intensidade. Então eu deixei acontecer. Fechei os olhos como se lhe desse permissão. O beijo foi suave, delicado, sem pressa. Mas o que senti não tinha nada de delicado ou suave. Era uma onda de sentimentos tão forte que parecia querer arrebentar meu peito e tomar vida própria. Era a coisa mais forte que eu já tinha sentido. Aquilo me dominava por inteiro. Ali eu senti, talvez pela primeira vez na minha vida, o que era estar feliz. Tudo se encaixava, tudo era cor de rosa, tudo tinha cheiro de baunilha. Eu havia achado meu lugar no mundo: os braços de Rafael.
E podíamos ter continuado ali o resto da vida se o barulho da porta se abrindo atrás de nós não nos tivesse forçado a nos separarmos. Nossa primeira reação foi olhar assustado um para o outro, e só então para a pessoa que havia nos descoberto. Mas como a vida adora pregar peças, não podia ser outra pessoa: Eric.
Seus olhos estavam cheios de lágrimas e sua boca aberta em razão da surpresa de nos pegar ali juntos. O plano original tinha funcionado: Eric nos flagrou e isso o machucou fundo. Só que eu não me sentia nem um pouco melhor com isso.