Era sexta-feira e eu e Rafael almoçávamos juntos num restaurante próximo à universidade. Para quem nos olhasse de fora, provavelmente parecíamos apenas dois amigos conversando animadamente. Mas não, eu estava cada vez mais apaixonado por ele. Aquela tinha sido uma semana maravilhosa e estávamos cada vez mais próximos, apesar de não termos passados de beijos ainda. Estávamos indo com calma, e estava gostando assim. Mas uma coisa ainda estava me incomodando muito: Eric. Ele ainda não tinha aparecido, tinha faltado uma semana de aula. Tentei tocar no assunto com Rafael, mas ele não foi muito receptivo:
_Deixa esse cara pra lá, Bernardo! A gente não deve nada pra ele, nem mesmo pena. Foda-se se ele quer tomar pau por frequência, não é problema nosso.
_Claro que é, Rafa. Nós fizemos isso. Um erro não justifica o outro.
_Pode até ser, mas isso não significa que devemos passar a nos preocupar e zelar pelo bem estar dele. Você esqueceu como ele tentou te atingir naquele dia no banheiro? Você realmente acha que uma pessoa assim merece nossa preocupação?
_Ele estava magoado e ferido, não dá pra levar aquilo em consideração.
_Por que você defende tanto ele?_ perguntou começando a perder a calma da sua voz.
_Por você o odeia tanto? Ok, ele errou com a gente, mas achei que já tivéssemos seguido em frente com isso.
_E seguimos! Eric não é mais nada para mim._ vi seus olhos brilharem estranhamente _É alguma coisa para você?
Rafael estava com ciúme de Eric. Eu não tirava a razão dele, eu batia muito na tecla e, para todos os efeitos, Eric era meu ex. Ninguém se sentiria confortável nessa situação, mas eu também não conseguia me sentir confortável deixando as coisas como estavam. Eu não ia deixar as coisas como estavam, só precisava fazer Rafael entender isso.
_Ele é uma pedra no meu sapato. Eu posso continuar seguindo em frente deixando as coisas como estão, mas seria doloroso e desconfortável, algo estaria sempre errado. Você não tem porquê ter ciúme dele. Não tem a mínima chance de voltar acontecer algo entre nós dois._ respondi olhando dentro dos seus olhos.
Ele sorriu satisfeito com a resposta e roçou a perna carinhosamente na minha embaixo da mesa, já que não podíamos trocar carícias em público. O assunto morreu ali, mas não saiu da minha cabeça. Rafael me deixou em casa e prometeu me ligar mais tarde para combinarmos de sairmos juntos. Ele até queria que passássemos a tarde juntos, fossemos ao shopping, talvez pegar um cinema, mas menti que tinha consulta no dentista. Eu tinha outros planos para a minha tarde.
[...]
Lá estava eu, em frente ao prédio de Eric batendo campainha. Eu sabia que durante a tarde ele ficava sozinho em casa, então pensei ser essa uma boa hora para conversar com ele. Logicamente, Rafael nem sonhava com o que eu estava fazendo no momento, mas eu pretendia contar. Algum dia...
O porteiro me anunciou no interfone e pude notar que a resposta demorou um pouco. O portão se abriu e eu subi para o apartamento de Eric. Bati na porta. Os passos do lado dentro eram calmos, como se não tivessem a mínima pressa em me atender. Eric abriu a porta e nos encaramos. Ele estava uma bagunça. Só de cueca, suado, o cabelo todo atrapalhado e a cara amassada. Me perguntei se ele estava dormindo e eu o acordei.
_O que você quer?_ perguntou seco sem me convidar para entrar.
_Conversar com você. Podemos?
Ele me olhava muito intensamente, enquanto eu admirava aquela tristeza misteriosa contida em seus olhos. Ele hesitou por um momento antes de me dar passagem para entrar. Sentei num sofá na sua sala de estar e esperei que ele se sentasse também para conversarmos, mas ele preferiu permanecer de pé. Eu não estava nem um pouco confortável em ficar sozinho com ele de cueca, era quase uma traição a Rafael.
_Te acordei?
_Não._ respondeu seco sem tirar os olhos de mim.
Ouvi um barulho vindo de dentro da casa. Me perguntei se havia mais alguém ali além de nós dois, e fui logo respondido. Um rapaz moreno, alto, forte, muito bonito, aparentando alguns vinte e tantos anos apareceu acabando de vestir a camiseta. Fiquei ainda mais desconfortável ao perceber que escolhi uma péssima hora para visitá-lo. Mais desconfortável ainda foi o que veio em seguida.
_Já estou indo._ anunciou o rapaz com uma voz de trovão.
Eric se dirigiu a uma mesinha de centro, pegou sua carteira, tirou de lá algumas notas de cinquenta reais e entregou ao rapaz, que as contou e depois colocou no bolso.
_Quando precisar é só chamar.
_Pode deixar.
E o cara passou pela porta. Meus olhos estavam parados, tentando digerir o que tinha acabado de ver. Contratar garotos de programa, mais uma pra lista de excentricidades de Eric.
_Então, qual o assunto?_ falou ignorando minha surpresa.
_É... Eu..._ demorou um tempo até eu reaprender a falar _Por que você não foi à aula essa semana?
_Por que quer saber, sentiu a minha falta?_ perguntou ironicamente.
_Eu fiquei preocupado, você sumiu depois daquele incidente no banheiro.
_Incidente? É assim que vocês chamam aquilo?
Não gostei do tom que ele usou para se referir à minha relação com Rafael, mas relevei, não tinha ido lá para brigar.
_Sim, foi um incidente. Não era para você ter visto aquilo.
_Não importa, um dia eu ficaria sabendo, não?
_Sim, mas poderíamos ter preparado o terreno antes.
Ele me olhou intrigado.
_Por que você se preocupa comigo?_ percebi que ele estava deixando de lado o tom agressivo.
_Porque, apesar de tudo, eu ainda acho que você é uma boa pessoa. Você errou, mas eu também errei com você. Você estava certo quando falou que eu nunca tentei fazer com que nós déssemos certo.
_Eu me apaixonei por você...
Seus olhos estavam cheios de lágrimas e meu peito doeu com aquilo. Eu não conseguia ver aquilo sem fazer nada. Qualquer pessoa racional não teria feito isso, mas eu sentei ao seu lado e o abracei. Ele pousou a cabeça no meu ombro e ficou chorando.
_Me desculpe, Eric, eu não devia ter te enganado com fiz. Minha cabeça ainda está muito confusa com essa coisa toda de ser gay. Eu não estava pronto para me relacionar mais seriamente com outro cara.
_E o Rafael?_ respondeu sem levantar a cabeça.
_Com ele foi diferente... Não teve como segurar nada, foi uma coisa muito forte. E ele tomou as rédeas, me deixou sem escapatória, quando vi já estávamos namorando.
Ele deu uma fungada alta.
_Você o ama?_perguntou.
_Amo._ respondi sem coragem de negar.
Ele se levantou com o rosto já vermelho de choro.
_Eu te amo mais que ele, me dê uma chance!
_Não é assim que funciona, Eric.
Ele avançou para cima de mim para roubar um beijo, mas fui mais rápido e me afastei.
_Não foi para isso que vim aqui.
_E foi para o que, então?!_ falou gritando comigo _Para esfregar na minha cara que vocês dois estão muito mais felizes sem mim?
_Não, claro que não. Vim aqui para que todos nós pudéssemos seguir em frente sem mágoas.
_Eu não vou limpar a sua consciência, Bernardo.
_Então, você nunca terá a sua limpa também.
Não queria partir para aquele discurso agressivo, mas já tinha perdido o controle daquela conversa há muito tempo.
_Pode ficar tranquilo, com minha consciência me preocupo eu.
_Pra quê que vim aqui?!_ explodi _Eu devia ter escutado Alice e Rafael. Me preocupar com você é uma tremenda perda de tempo.
_Você veio aqui por se preocupar comigo ou simplesmente para tirar esse peso das suas costas?!
_Um pouco dos dois, sabe, porque nem todo mundo é capaz de seguir em frente depois de machucar alguém.
_Como Rafael faz?
Eu me detive e o silêncio foi como uma vitória para Eric, que abriu um sorriso ao perceber isso. Eu não tinha como contra-argumentar. Eu estava apaixonado por Rafael, mas não podia ignorar o fato de que algumas de suas atitudes me assustavam.
_Tá vendo?_ Eric voltou a acalmar a voz e se aproximar de mim _Como você pode ter certeza que quer ficar uma pessoa como ele? Com todos os meus defeitos, eu ainda devo ser uma pessoa melhor que ele.
_Não é uma questão de quem é melhor ou pior._ falei decidido a terminar aquele papo de uma vez por todas _A questão é que eu me apaixonei por ele e não por você.
E saí andando em direção a saída sem esperar por uma resposta. Ter ido ver Eric foi um erro. Ele não queria seguir em frente, ele gostava de viver abraçado ao que poderia ter sido. Ele simplesmente não queria ser ajudado, então eu deveria lavar as minhas mãos. Chegava a dar raiva em pensar que ao ter ido lá, eu poderia ter machucado Rafael em troco de nada.
_Bernardo! Espera!
Me detive na porta e pensei por alguns segundos antes de me virar de novo para dentro do apartamento para ouvir o que ele ainda tinha por dizer.
_Me desculpe._ ele falava com os olhos cheios de lágrimas _Eu não tenho o direito de criticar você ou ele. É só raiva, sabe? Eu perdi vocês de uma só vez. Eu perdi meu chão. Olha para esse apartamento! Está vazio! Cadê meus pais? Eu não sei! Por aí sem nem se importar em como eu estou. Eu acabei de chegar aqui, não conheço ninguém nessa maldita cidade. As pessoas da faculdade não querem ser meus amigos por terem medo de, sei lá, que os contagie com uma doença terrível. Eu estou sozinho, Bernardo.
Eric chorava e eu estava prestes a começar também. Eu sentia um aperto muito forte no coração ao ouvir aquilo.
_Você e Rafael eram tudo o que eu tinha, e de repente eu não tinha mais. Eu sei que errei ao enganar vocês dois, mas foi um erro inocente, como uma criança que passa mal ao comer muito doce. Vocês dois surgiram com todo o sexo, os carinhos, as companhias para a tarde e eu me afoguei nelas. Eu não conseguia me livrar de nenhum de vocês. Me desculpe.
Ele se deixou cair sentado no sofá com as mãos na cabeça e ainda chorava.
_Eu sei que Rafael não vai me perdoar. Mas você pode. Você é uma boa pessoa, eu sei.
Eu me segurava para não chorar também.
_Eu já te perdoei, Eric. Nós dois erramos muito. Só que não tem mais como termos mais nada, muita água passou por baixo dessa ponte. Agora existe o Rafael.
_Nós podemos ser amigos!
_Eu não sei...
_Rafael não precisa saber! Digo, não precisa saber agora, a gente deixa ele superar um pouco isso tudo e aí eu volto a me aproximar dele. Só não me abandone, Bernardo.
_Não é o Rafael, Eric. Aliás, é, mas não só ele. Você me assusta Eric. Num momento você está me falando palavras doces e no outros está me atacando. Eu não sei se consigo ser amigo de alguém tão volátil, que você não sabe se é confiável, se no segundo seguinte vai estar contra você.
_Foi tudo num momento de raiva! Eu não sou assim, eu juro! É o desespero pela situação.
_Eric...
_Por favor, Bernardo, não me deixe sozinho._ falou segurando minhas mãos.
Eu ia me arrepender daquilo, eu sabia, mas não podia ir embora e deixá-lo naquele estado miserável. Não era do meu caráter virar a cara para alguém tão necessitado.
_Ok, Eric._ falei enquanto ele me abraçava.
_Obrigado!
_Mas Rafael não pode saber por enquanto. Me dá um tempo para contá-lo. Até lá, continue mantendo uma distância segura de nós dois.
_Tá..._ ele falou se recompondo.
Eu com certeza viria a me arrepender daquilo. Como eu faria Rafael aceitar minha amizade com Eric? Estávamos juntos há uma semana e eu já estava mentindo para ele.
_Agora eu tenho que ir, Eric. Te vejo na aula segunda-feira, ok?
_Ok._ respondeu me abraçando novamente _Muito obrigado.
Quando eu já estava cruzando a porta, Eric me chamou mais uma vez.
_Sim?
_Me liga de vez em quando, Bernardo? Só para saber se eu estou bem...
_Eu ligo, pode deixar._ respondi com dificuldade.
Só quando fechei a porta atrás de mim, eu me permiti deixar que as lágrimas caíssem.