_Pra onde você está me levando? Deixou de ser romântico a dois quilômetros atrás.
_Para de reclamar, Bernardo. Juro que vai valer a pena.
Rafael tinha conseguido me arrancar da cama cedo no domingo com a promessa de um programa muito romântico. Mas fez segredo, só falou para eu colocar uma roupa leve e tênis. Juro que tentei conter minha cara de decepção quando percebi que ele tinha me levado para fazer trilha no parque do Rola Moça, ao sul de Belo Horizonte.
Eu não era uma pessoa muito afeita a esportes, nunca fui, só mesmo natação. Abdicar da minha cama num domingo de manhã pra subir e descer montanhas de mato fechado não era o que eu chamaria de programa romântico. Até tentava disfarçar para não estragar o prazer de Rafael, que parecia gostar muito daquele tipo de coisa, mas chegou um ponto que o cansaço falou mais alto.
_Rafael... Sério..._ eu me segurava ofegante numa árvore _Acho muito legal sua intenção, mas eu não to curtindo não.
_Você é um sedentário mesmo._ falou se virando para mim rindo _Mas aguenta uma caminhadinha.
_Caminhadinha? Estamos caminhando há quase uma hora!
_Pois é, e ainda tem a volta.
_Puta que pariu!_ falei ao lembrar daquele detalhe.
Ele riu parecendo se divertir muito com aquela situação.
_Vem._ falou me dando o braço e me puxando _Estamos quase chegando a onde eu queria.
Andamos mais uns dez minutos, ao que parecia ser o ponto mais alto do lugar. Um pouco mais a frente havia uma clareira. Rafael olhou pra mim com seu lindo e travesso sorriso me oferecendo a mão. Sorri de volta sem jeito, fascinado com sua beleza, seu jeito, seu carinho. Lhe dei a mão e fomos caminhando de mãos dadas até a clareira.
_Olha._ ele falou apontando pra frente.
Era de tirar o fôlego. Parecíamos estar no alto do parque. De lá se via um sem fim de montanhas cercando a parte mais sul de Belo Horizonte. Era um lugar que trazia tanta calma. Nada poderia nos atingir enquanto estivéssemos ali. Rafael chegou por trás e me abraçou, pousando seu queixo no meu ombro. Ambos estávamos suados e ofegantes, mas não importava. Eu simplesmente desliguei todas as minhas defesas, tirei tudo da cabeça, relaxei os músculos e deixei que o ar saísse lentamente. Nada mais importava, só eu e Rafael.
_Valeu a pena?_ perguntou.
_Sim... Obrigado por me trazer aqui.
_Obrigado por estar aqui comigo.
Nos viramos de frente um para o outros e nos beijamos. Foi um beijo bem calmo e suave, como se para que cada milésimo segundo fosse sentido e aproveitado completamente. Não havia nenhum outro lugar do mundo onde eu gostaria de estar. O abraço de Rafael era tudo o que precisava.
_Então, vamos almoçar?_ perguntou depois de um longo beijo.
_Almoçar aonde? Estamos no meio do nada.
_Não exatamente._ ele fez uma cara de travesso _Tem um restaurante há dez minutos daqui. Depois a gente pega uma carona até onde está o meu carro.
_Senhor Rafael, quer dizer que você poderia ter deixado o carro há dez minutos daqui e evitar essa caminhada?!
_Sim, mas qual seria graça?_ respondeu rindo.
Lhe respondi com um soco no braço. Ele reagiu rindo mais alto ainda e me roubando um beijo.
Era tão bom o clima romântico que estávamos que eu não conseguia contar-lhe nada sobre Eric. Viraria uma briga com certeza. Eu tinha consciência que não podia esconder aquilo dele e que quanto mais eu adiava, maior ia ficando aquela bola de neve. Mas eu disse para mim mesmo, “hoje não, amanhã eu conto”. Só que nessa brincadeira, já tinha se passado uma semana, Eric já havia voltado às aulas e sempre me chamava no MSN para conversar. Eu não tinha coragem de contar sobre isso nem para Alice. Eu me envergonhava porque não deixava de estar traindo a confiança de Rafael ao lhe esconder algo desse tipo. Mas naquele domingo, eu não pensava em nada disso, eu estava muito bem.
Eu estava tão feliz, tão em paz e apaixonado por Rafael, que eu nem me importava com o que as pessoas pensariam de ver dois caras almoçando sozinhos em um restaurante tão caro. Possivelmente, não pensariam nada, não veriam nada demais, mas minha paranoia estava sempre lá. Só que naquele dia ela tinha dado uma folga. Nada poderia nos atrapalhar. Era o que eu achava.
_Então, eu queria marcar um programa para nós dois na sexta, o que você acha?_ ele falou.
Ainda estávamos almoçando. Eu vi que ele estava falando com um ar mais tímido, diferente do jeito brincalhão costumeiro e presente momentos antes, mas não percebi de imediato o rumo da conversa.
_Claro! O que você quer fazer?
_Sei lá, alguma coisa mais... Íntima. Quero dizer, só nós dois, e tal..._ ele estava nervoso.
_Sair pra jantar? Eu não sei, Rafa, você sabe o que eu penso de dois caras jantando sozinho.
_Tá, eu sei, mas não tava falando disso.
_Então? Você planejou alguma coisa?
Ele estava vermelho, o que era muito incomum para ele.
_É que... Olha vou falar de uma vez: meus pais vão viajar e eu quero que você venha dormir comigo lá em casa.
Ele olhava pra mesa, não para mim, ainda envergonhado. Eu me assustei e pousei no prato a colher que eu ia levar a boca. Achei muito fofo sua timidez com o assunto, mas realmente me assustei com sua proposta. Lógico que eu já tinha pensado no assunto, eu desejava Rafael de um jeito que eu não havia desejado ninguém. Eu era atraído pela beleza do seu rosto, do seu corpo, do seu jeito de ser. Ele me seduzia apenas sendo ele mesmo. Se ainda nada havia acontecido foi por falta de oportunidade e pela correria que nós vivíamos com a proximidade do final do período.
_Eu aceito._ falei também envergonhado e enchendo a boca de comida para disfarçar.
Ele levantou a cabeça já com um sorriso enorme. Como não podíamos demonstrar carinho assim em público, ele roçou sua perna na minha por debaixo da mesa. Estávamos tão perdidos nos olhos um do outro, que nem notamos a aproximação de Pedro.
_Uai, o que vocês estão fazendo aqui?_ falou colocando a mão em nossos ombros.
Ao mesmo tempo que ouvi sua voz, senti um arrepio gelado descendo pelas minhas costas. Imediatamente afastei minha perna da de Rafael. Vi o seu sorriso se perder no seu rosto, e desconfio que fosse mais pela minha reação do que pela presença de Pedro em si.
_Nós... Nós...
Eu tentava falar alguma coisa, mas não saía. Um desespero silencioso foi tomando conta de mim e a paranoia voltou a me atacar. Eu senti que estava realmente perdido, que era agora que eu veria toda a imagem que eu lutei em construir derreter.
_Nós viemos fazer trilha e paramos aqui para almoçar._ falou Rafael em meu socorro.
_Trilha? O Bernardo? Mentira!
_Sério, consegui convencer ele, sou muito bom em convencer as pessoas.
E, ainda bem, também era muito bom em contornar situações como aquela. Eu estava semi-paralizado, só sorria para os dois. Não conseguia pensar em nada. Só ao me dar conta que Rafael conseguiria nos livrar daquela situação, comecei a relaxar e interagir.
_Mas já sabe que não vai conseguir me trazer de novo._ falei rindo nervoso.
_Uma pena, achei que ele tivesse gostado do passeio._ respondeu Rafael com uma tristeza na voz que só eu percebi.
_Sim, gostei, mas acharia melhor se tivéssemos vindo de carro.
Eu sabia que estava magoando Rafael daquele jeito, mas eu não conseguia me controlar. Meu senso de autoproteção era tão forte que era capaz de me levar àquilo, magoar as pessoas que eu amo. Eu estava sendo egoísta, e tinha consciência disso, mas era mais forte que eu.
Pedro ria sem nem imaginar o que estava acontecendo ali.
_E a Alice, não quis vir?_ perguntou tentando, sem sucesso, introduzir Alice na conversa de uma forma natural.
_Não, ela gosta menos do que eu desse tipo de programa.
_Seria legal se ela tivesse vindo, né.
_Ah, cara, já te falei. Dá um tempo a ela. Não vai conseguir nada forçando.
_É, fazer o que?
Nitidamente, o assunto mexia com ele e o deixava para baixo, mas eu não tinha o que fazer. Já tinha me envolvido até demais naquela história.
_Vocês vão ficar muito tempo por aqui ainda?
_Não, já estávamos indo pedir a conta. Viemos só almoçar mesmo._ falei antes de Rafael com medo de prolongar demais aquela situação.
_Ah, beleza. Tô ali com minha família. A gente se vê amanhã. Falou aí.
_Tchau._ respondemos juntos a Pedro.
Um silêncio constrangedor pairava sobre a mesa. Rafael estava visivelmente magoado com meu comportamento e eu estava envergonhado, apesar de não arrependido. Era uma situação que continuava a se repetir na minha vida. Ainda sem falar nada, ele fez sinal para que o garçom trouxesse a conta.
_Me desculpa, Rafa, mas eu...
_Não podia se arriscar, eu sei, você já disse. Mas isso cansa, Bernardo.
_Eu sei, me desculpa.
Era tudo o que eu podia fazer, me desculpar.
Na saída do restaurante, pedimos uma carona até onde estava o carro e seguimos num incômodo silêncio no caminho para casa. Ele estava calado, mas não parecia estar com raiva, mas magoado, o que era muito pior. Preferiria que ele gritasse de uma vez tudo o que tinha para gritar comigo do que me deixar daquele jeito remoendo tudo.
_Rafa, eu já pedi desculpa.
_E eu já te desculpei.
_Mas não está falando comigo.
_Lógico. Te desculpar não significa que esqueci. Eu planejo um passeio romântico para nós dois e olha como termina? Você com essa mania de se esconder do mundo e me esconder do mundo... Sabe, eu fico ansioso procurando por programas em lugares mais afastados, ou onde só tenha nós dois, por causa disso, mas é cansativo.
_Me desc...
_Já falei que desculpei!
_Se fosse outra pessoa, eu não agiria daquela maneira, mas era o Pedro e você sabe como ele é.
_Sei. E me surpreende você também saber e continuar preocupado com a opinião dele.
_Alice já reclamou disso comigo e eu reconheço que pode parecer loucura, mas eu vejo nele uma pessoa boa.
_Uma pessoa que te viraria às costas caso soubesse que você gosta de pessoas do mesmo sexo não pode ser considerada uma boa pessoa.
Ele estava bem nervoso e desabafando comigo. Parece que ele já tinha aquilo entalado dentro dele há muito tempo.
_Você não gosta do Pedro?_ perguntei tentando entender a discussão que estávamos tendo.
_Não! E você não devia gostar também!
_Por que?
_Porque isso é uma burrice. Sem contar que é ofensivo, não só a você, mas a mim ou a qualquer outro gay. Você está abaixando a cabeça para o que gente como ele pensa, gente que nos impede de ser quem nós somos, de demonstrar o que sentimos.
E voltávamos à discussão da qual nem tínhamos saído.
_E é errado eu tentar me preservar desse mundo louco que vivemos? Não é tudo cor de rosa, Rafael. O Pedro pode só virar a cara para mim, mas e o resto do mundo? Quantas pessoas não são agredidas e mortas todos os dias assim? Eu tenho medo!
_Certo, mas você não vê que você alimenta esse sistema se escondendo e fingindo ser o que não é. Você tem que se mostrar, falar “olha, to aqui, não vou a lugar nenhum e não tenho medo”.
_Pode ser, mas eu não sou forte o suficiente. Eu não nasci para ser Joana D’Arc.
Ele riu uma risada sem graça antes de continuar.
_O que você tem medo é de que as pessoas não gostem de você. E posso te falar? Não vale a pena.
Eu não tinha resposta para aquilo. Eu realmente tinha medo das pessoas não gostarem de mim. Mas isso é uma coisa muito maior do que se pode supor. Não se pode simplesmente viver ignorando a opinião alheia, eu, pelo menos, não conseguiria. Eu era assim e esse medo era minha prisão.
Ninguém falou mais nada no caminho. Do mesmo jeito que aquele assunto ficava rondando minha cabeça, aconteceu também com Rafael, eu imagino. Quando chegamos na porta do meu prédio, ele acariciou de leve minha mão, bem mais manso, e me avisou que mais tarde me ligaria, o que de fato fez:
_Me desculpe, eu me excedi hoje. Acabei ficando nervoso com a situação e descontando em você._ falou com uma voz doce.
_A culpa é minha. Eu sei que eu dificulto tudo com meus medos, mas eu vou tentar melhorar. Você vai ter que ter paciência comigo.
_Eu vou. Toda a paciência do mundo com você._ sua voz denunciava um sorriso.
_Boa noite.
_Boa noite, Bernardo.
E era por ele que eu devia lutar, porque agora era bem claro para mim: eu teria que escolher entre Rafael e a prisão que construí para mim.