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• Capítulo 1 ~ A MISTERIOSA GAROTA COM DISCOS DE VINIL
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Essa história aconteceu há treze anos. Tudo começou naquele ponto de ônibus. Era uma sexta-feira, eu tinha acabado de sair da escola onde eu fazia um curso pré-vestibular. Cheguei no ponto e o ônibus das dezoito horas já tinha passado e eu não tinha outra opção a não ser me sentar na calçada daquela rua coberta por uma quase completa escuridão e esperar por, mais ou menos, uma hora o próximo ônibus passar. Apanhei o meu celular no bolso a fim de escutar algumas músicas, mas ele havia descarregado. Lançava repetidos olhares em direção à pista a cada coletivo que aparecia, com a esperança de que fosse o meu e que ele só tivesse atrasado alguns minutos. No fundo eu sabia que não, pois outras pessoas pegavam ele naquele horário e a parada estava vazia. Aos poucos minha mente sucumbia ao tédio em menos de dez minutos, também sentia uma fome que me deixava inquieto por imaginar que só chegaria em casa, com sorte, em duas horas. Àquela altura já começava a me bater uma impaciência inexplicável, o meu dia havia sido exaustivo, como todos o eram com exceção dos fins de semana. Trabalhava numa loja da família desde às cinco horas da manhã até a hora de sair para o curso, chegava na escola quase às duas da tarde e largava às dezoito. Como o ponto de ônibus era perto da escola, conseguia pegar o das dezoito horas a tempo. Aquela fatídica sexta-feira consagrou-se como a primeira vez que o perdi. Encontrava-me naquele momento em uma realidade intranquila, então decidir desviar meus pensamentos para o dia seguinte: sábado. Acabei me distraindo um pouco e sem perceber já planejava como ia aproveitar aqueles próximos dias de repouso.
Esbouçava um sorriso involuntário enquanto imaginava meus dois dias de glória, quando uma silhueta esbelta surgindo do outro lado da pista vindo em direção ao ponto onde eu estava roubou a minha atenção. Julguei que se tratava de uma garota. Confirmei no momento em que ela parou pra atravessar a rua e os faróis acelerados dos carros a revelaram. Ela devia ter uns vinte anos e pouco mais de um metro e sessenta de altura, tinha a pele cor de caramelo, cabelos negros e levemente ondulados caídos sobre os ombros, usava um cropped preto que realçava grandes seios redondos, uma calça jeans clara — estilo anos noventa — levemente rasgada nos joelhos e nas coxas e calçava um tênis preto surrado. Ela também carregava uns discos de vinil que eu, inconscientemente, tentava a todo custo, oprimido pela curiosidade, saber quais eram. Eu não era um adolescente curioso em relação a muitas coisas, mas desde sempre tive esse costume que beirava intromissão. Sempre que eu avistava alguém lendo, por exemplo, sentia uma impulsiva vontade de saber que tipo de leitura aquela pessoa, estranha para mim, supostamente gostava. Da mesma forma era quando flagrava pessoas comentando sobre séries ou filmes... era uma diversão estranha imaginar como eram as pessoas desconhecidas que eu cruzava no dia a dia. Não foi diferente naquele momento em que percebi os discos nas mãos delicadas daquela garota, estava tão focado na minha curiosa missão que percebi com atraso que ela já me encarava de volta enquanto se aproximava. Sei que ela já havia percebido porque me lançava um olhar quase inquisidor, como se quisesse que eu revelasse a minha curiosidade. Espantei-me quando a vi me olhando daquela forma e, como se ela tivesse descoberto minha auto reprovação, abrandou sua afeição e continuou se dirigindo até mim indicando que iniciaria algum diálogo.
— Oi! Faz tempo que você tá aqui? — ela me perguntou.
— Ah... Não muito. — respondi de súbito.
— Posso ficar aqui perto de você? Geralmente espero o ônibus com uma amiga do meu trabalho, mas hoje ela não veio... a verdade é que estou com receio de ficar aqui só — ela falava aquilo com uma segurança que me fazia imaginar que ela já me conhecia, ao menos de vista.
— Tudo bem, não tem problema — tentava mostrar alguma simpatia.
— Agradeço... apesar de que, provavelmente, seu ônibus chegará em breve. O meu demora pra caralho... ops... foi mal pelo palavrão — era como se ela falasse com uma liberdade descuidada. Comecei a perceber que aquele era o jeito dela.
— Não precisa se desculpar — falei achando graça daquilo — ou você acha que sou um garoto recatado?!
— Acho que não... ao menos é o que não esperaria de alguém vestindo uma camiseta do Dead Kennedys.
Eu usava a camiseta do álbum 'Badtime For Democracy', meu favorito na época. Aquela garota era certeira e tinha firmeza nas palavras, apesar de descuidada, e entrar naquele assunto de música me fez lembrar dos discos que ela carregava. Olhei rapidamente, mas ela se virou na direção de onde vinha os ônibus e sua mochila escondia os vinis que estavam por trás, no outro braço. Ela não demonstrava nenhum sinal de impaciência, mas resolveu me perguntar que horas eram, alegando que não usava relógio e o seu celular havia descarregado.
— Pois estamos na mesma situação — respondi com um sorriso contraído.
"Sem problema", foi o que ela disse. Em seguida me perguntou se o coletivo 512 já havia passado. Respondi que, até então, não tinha o visto passar.
— Odeio depender de transporte público, demoram uma eternidade pra passar... e quando chegam, geralmente, estão lotados — disse ela num tom descontraído como se também quisesse distrair a mente brincando com aquela situação cotidiana.
Respondi com um sorriso tímido e ela se virou me devolvendo um sorriso mais livre e em seguida olhou-me com uma afeição de satisfação. Como não a conhecia, cheguei a imaginar que algo em mim estava a atraindo mas minha baixa autoestima não me permitiu manter aquele julgamento por muito tempo. Em compensação, naquele momento pude ver quais discos ela carregava. Eram três: The Dark Side of the Moon, do Pink Floyd; Bleach, do Nirvana; e o Dummy, do Portishead. Supostamente tínhamos gostos musicais parecidos, concluí. Durante aquele tempo que me distraía com os seus discos, ela flagrava mais uma vez o meu olhar curioso.
— Você curte?
— Oh... Sim! Bastante — minha resposta foi de uma pessoa sem graça por ter sido pega num ato errôneo. Por outro lado, a garota não parecia incomodada com aquilo. Estranhamente, até parecia gostar da minha curiosidade.
— Percebi que curtia pela forma que você olhou — completou em tom de brincadeira.
— Foi mal, não queria parecer intrometido — devolvi com descontração.
Ela me deu um tapinha no ombro e sorriu. Foi quando, entre aquelas luzes apressadas dos veículos, eu reparei pela primeira vez no rosto dela. Estampava uma afeição naturalmente bela, algo parecido com liberdade. A propósito, ela emanava liberdade. O mais interessante era como ela transmitia aquela impressão com alguns minutos de conversa. Era satisfatório estar com alguém daquele jeito, com aquele ar de soberania e despreocupação. Pude reparar também nos olhos dela, que eram tão negros quanto os seus cabelos. O nariz? Arrebitado, simbolizando bem sua energia autônoma. A boca possuía uma atração particular que os lábios arredondados e carnudos têm por natureza. Observando aqueles detalhes graciosos, fui tomado por uma vontade impulsiva que me fez, pela primeira vez, tomar a iniciativa no diálogo com aquela garota misteriosamente atraente.
— Posso saber o seu nome? — perguntei timidamente.
— Claro! Chamo-me Dayana. E você, como se chama?
— Ícaro.
— Bonito nome. Inspira obstinação — parou por um instante, observando-me com uma expressão cômica — Vou parar nos elogios e te poupar de piadas sobre asas de cera — brincou ela com infantilidade e sorrimos em sintonia, no momento em que um ônibus surgia na escuridão. Lamentei a possibilidade de ser o 512, o ônibus que ela esperava e, inexplicavelmente, eu não queria que o nosso imprevisível encontro acabasse naquele exato momento. Felizmente não era nenhum que iríamos pegar, pensei relaxado.
Passamos a conversar sobre coisas diversas durante os minutos que se sucederam. Eu ainda me mostrava um pouco reservado, dizia poucas palavras mas com simpatia. Já Dayana conversava livremente de forma despreocupada e transparente. Foi por causa da desenvoltura que se manifestava na sua forma de se comunicar que acabamos criando uma certa intimidade naquela recente troca de ideias. A personalidade dela cada vez mais prendia a minha atenção. Era muito diferente de como eu era naquele período da minha vida, pois eu sempre sentia insegurança quando me deparava com a possibilidade de criar novos laços. Eu jamais teria começado uma conversa com tamanha firmeza com alguém desconhecido, como a Dayana o fez comigo. Dificilmente eu teria, sequer, começado a conversa. Mas ela era positivamente diferente e eu me sentia contemplado com a sua companhia.
Em determinado momento, num já atípico silêncio entre nós, ela cutucou seus bolsos e puxou um maço de cigarro. Lembrei-me que, quando eu estava só em casa, eu costumava fumar ouvindo o álbum 'Dummy', um dos três que ela carregava em sua mão em formato de disco de vinil. Dayana interrompeu minha breve lembrança me perguntando se eu aceitava um também. "Sim", eu respondi. Ela pegou seu pequeno isqueiro preto e acendeu o sua piola. Estendeu-me a mãe que segurava o maço indicando que eu pegasse um. Peguei-o, prendi-o em meus lábios e, com o meu polegar raspando sobre o indicador, fazia um sinal pra ela me emprestar o isqueiro. Dayana já ia me emprestá-lo quando, atrapalhado pela falta de iluminação, esbarrei na mão dela e fiz com que o pequeno objeto caísse pelo buraco de um esgoto ali perto, no canto da pista.
— Puta que pariu! Foi mal, Dayana. Vou pagar pelo meu descuido.
— De boa, Ícaro. O meu já está aceso, chega aqui.
Então me aproximei como ela sugeriu e sentei ao seu lado. Com um movimento suave, Dayana segurou minha nuca e me conduziu sutilmente na direção do seu rosto até que as pontas dos cigarros se encontrassem compartilhando intensamente a mesma brasa ardente. Nossos olhos também se encontraram com seriedade. A forma como ela olhava me revelava uma feição sensual e, ao mesmo tempo, opressora. Como poderia alguém fazer de refém outra pessoa apenas com um olhar? Eu nem conseguia pensar racionalmente, como normalmente faria. Sentia que ela tinha algum poder sobre mim. Já nos encarávamos por alguns segundos quando ela resolveu quebrar o silêncio.
— Você parece bem novo. Qual a sua idade?
— Tenho dezessete — respondi curioso — Pela forma que me perguntou, parece até que você já é velha.
— Quase isso. — sorriu — Completei vinte e três no mês passado.
— Meus parabéns... Atrasado. — Outra vez sorrimos, um riso meio besta, como duas crianças.
Aparentando pensar numa próxima pergunta, Dayana me observava minuciosamente dos pés à cabeça, até fixar novamente nos meus olhos.
— Tem bom gosto musical, é alto, bonito e, além de tudo, parece ser muito legal — falava como se estivesse pensando em voz alta, me analisando — deve ter muita garota na sua cola, hem?! A propósito... você tem alguma namorada?
Como já devem ter percebido, eu era o típico adolescente internamente turbulento e externamente introvertido. Aquela simples pergunta, feita daquela forma repetina, acertou-me de surpresa. Não havia nenhum mistério naquilo, eu só tinha que responder "sim" ou "não", mas minha mente turbulenta me deixou paralisado por alguns segundos imaginando mil e um motivos para aquela pergunta.
— Nem sei como reagir a tantos elogios — disse desconcertado.
Dayana ignorou meu último comentário e insistiu na pergunta.
— Tem ou não tem?
— Não tenho namorada, quer dizer... — perdi-me em pensamentos por alguns segundos — Por que a pergunta?
— Só curiosidade mesmo. Mas sua resposta me pareceu confusa, hem?! — ela estava adorando curtir com a minha cara.
— E você. Tem namorado? — devolvi a pergunta.
— Meio complicado, mas sim. Completamos um ano de namoro ontem. Ele se chama João.
— Por que "meio complicado"?
— O João de repente resolveu que queria noivar comigo. Ainda não me sinto preparada pra uma relação assim... mas pensando no quanto ele é legal pra mim, prometi que pensaria com carinho na sua proposta.
Não entendia exatamente o porquê, mas eu não esperava ouvir aquela resposta. Foi muito infantil e escroto da minha parte, mas eu lamentei em segredo e me senti um egoísta por isso. De toda forma, foi algo parecido com decepção, não só por aquela esquisita atração que ela causava em mim, mas também porque ela não parecia ser um tipo de garota que se prenderia à uma relação daquele nível sendo tão jovem.
— Noivos?! Tão cedo?! — respondi no impulso — Quero dizer... parece que ele gosta muito de você mesmo.
— É. Ele me quer muito bem.
— Não me admira — eu comecei a me atrapalhar com as palavras e tive que me esforçar pra manter o raciocínio e não falar nenhuma besteira de forma abrupta — Digo... você parece adorável. Imagino que qualquer pessoa lhe quereria bem.
— Sério?! Pois me parece que algo te admira sim em relação ao meu noivado — Dayana sempre me rebatia astuciosamente, parecia ouvir além das minhas palavras, parecia enxergar meu interior.
— Aí que você se engana — tentei negar.
— Eu nunca me engano, querido. Vamos! O que te espanta nisso? — pressionou-me mais um vez com seu jeito descontraído e excessivamente confiante.
— Tá... Confesso que estranhei uma garota tão jovem, madura e com um perceptível espírito livre como você, já tivesse um relacionamento desse nível.
Enquanto tentava explicar o meu espanto, Dayana me atingia com uma expressão atenta e inquebrável. Ela era tão segura de si que tornava quase impossível encará-la de volta. Imaginei que ela queria continuar lendo o que se passava na minha mente hiperativa. Ela vinha fazendo aquilo com êxito. Mas eu tentava continuar minha explicação sob a pressão daqueles olhos que mais pareciam detectores de mentira, que a qualquer descuido meu iriam me acusar.
— Sei que falando assim posso parecer a droga de um conservador misógino, mas, juro, que não tô falando por essa ótica... como eu vinha dizendo, você parece ser a própria auto suficiência materializada em carne e osso, parece desprendida de valores ou conceitos morais e despida de costumes e tradições bestas... Quero dizer que, de tão evoluída, você parece até intocável.
— Você se explica demais... — sorriu em tom zombeteiro, se divertindo com tudo aquilo — Eu entendi o que disse e adorei como você me descreveu... Sério. Isso foi muito profundo e sensível da sua parte.
"Jovem", "madura", "espírito livre", "materialização da auto suficiência", repetiu ela com excitação e orgulho enquanto aparentava olhar distraída para o meu interior, admirando atônita algo que só ela enxergava ali. Por outro lado, eu me sentia meio confuso. Sentia uma vontade opressora de saber mais sobre a garota com quem eu compartilhava aqueles, pouco mais, de quarenta minutos numa rua esquisita sob o manto negro da noite que se formava, em um ponto de ônibus. Eu a observava frequentemente com um olhar furtivo. A cada olhar ela se tornava mais interessante e misteriosa, sem contar o quanto era linda fisicamente... os olhos negros, os lábios volumosos, a pele caramelada, os seios robustos, a barriga à mostra, a cintura saliente, o quadril voluptuoso... tudo era maravilhosamente belo e perigosamente sensual, entretanto como se fosse uma sensualidade inocente de sua própria condição.
Em meio aos meus devaneios cheios de confusão, Dayana lançou novamente aquele seu poderoso olhar de encontro ao meu e, como num ato impulsivo de defesa, desviei subitamente minha atenção para os meus próprios pés. Com certeza ela notava minha agitação interna, pensei. Continuou me encarando e eu percebi que não podia mais fugir. Dayana levou a mão direita ao queixo sinalizando algum pensamento que lhe ocorria e, naquele momento, me olhava revelando uma feição maliciosa.
— Acho que consigo te descrever também... — continuava me encarando.
— Sei...
— Duvida?
— Confesso que sim.
— Por que?
— Não consigo ser tão comunicativo e transparente quanto você, como poderia ter lido algo em mim além das coisas subjetivas que já mencionou, como beleza e preferências musicais?
— O comportamento, os gestos... as vezes isso também comunica coisas. Se eu acertar na descrição, você vai ter que pagar uma prenda.
Gargalhei com a aquela proposta inesperada. Dayana impôs um visível tom ardil em sua voz grave e seguia me olhando fixamente.
— Quem diria... consegui arrancar um sorriso frouxo desse rostinho sério — sabia provocar muito bem.
— Parece que você também consegue ser infantil quando quer — retruquei aderindo às provocações.
— Tá com medo de arriscar, não é? — provocou-me outra vez.
— Mais ou menos... — eu não conseguia me esconder atrás das brincadeiras e provocações por muito tempo. Dayana também não parecia se esconder, mas porque ela já era a própria provocação em pessoa. Fui percebendo aos poucos...
— Pois vou te descrever tão bem que você mesmo vai me pedir pra pagar a prenda.
— Essa eu gostaria de ver.
— Pois não... — virou-se de costas subitamente, levantou os ombros em sintonia com um profundo suspiro, olhou para um imenso nada à sua direita e, disparando-me uma olhadela sugestiva, continuou... — Você demonstra uma passividade inabalável, mas ao mesmo tempo tem algo de resoluto. É como se sua mente fosse excessivamente ativa, no entanto o seu corpo não manifesta sintonia com ela, como se seu lado interior fosse uma antítese do exterior... quero dizer que você parece aprisionar uma parte considerável de tudo aquilo que deseja externar.
— Tá, mandou bem agora — falei com um certo espanto.
— Outra coisa... você me olha com um desejo curioso... como se eu portasse algum grande mistério mas, na realidade, tudo aqui indica o contrário — ela apontava para minha cabeça.
— Nossa! Você é realmente incrível! — não pude me defender diante de tamanha precisão. Não tinha mais dúvidas, ela podia decifrar qualquer coisa que eu viesse a ocultar.
— A sua vez de me descrever já passou. Agora me diga se eu me equivoquei em algo. — era como se Dayana me empurrasse contra a parede usando apenas a firmeza de suas palavras. Por um momento achei que ela me conhecia melhor do que eu mesmo. Parecia que eu havia me tornado, de vez, prisioneiro da situação, Dayana prevalecia a cada palavra que saía daquela pequena boca com exuberantes lábios fádicos.
Confrontar a natureza inabalável daquela garota era luta perdida. Quem diria que logo eu, orgulhoso por ter participado bem de dois torneios de boxe e três campeonatos de Kickboxing, levaria o meu primeiro nocaute daquela forma, com palavras. Não tinha jeito, pensei. Dei-me por vencido e pereci sob a autoridade daquela, outrora desconhecida, chamada Dayana.
— E aí, cometi, ou não, algum excesso? — insistiu.
— Posso responder perguntando qual é a prenda que irei pagar?
— Isso diz tudo — respondeu-me com um triunfante sorriso, exposto em uma face desavergonhada. Naquele momento exercia um domínio lascivo da situação. Desnudou-me o interior, baixou-me a guarda. Algo na aparência dela me dizia que ela sentia algum prazer naquilo.
Os pássaros noturnos começavam a ensaiar a sua ópera singular, passava cada vez menos veículos na pista, o céu era gradualmente dominado pela escuridão, os poucos postes de luz que ali haviam formavam penumbras, músicas que tocavam longe dali em botecos e cabarés ganhavam evidência... aos poucos aquela rua se transmutava em um ambiente hostil e assustador para a maioria das pessoas. Mas, não para mim e Dayana. O tempo havia ficado um pouco frio, mas eu podia sentir um calor vindo daquela garota. Ela colocou os seus discos sobre a calçada e se aproximou me envolvendo em um abraço repentino. Senti sua respiração aquecendo suavemente o meu pescoço. Retribuí o afeto meio confuso, mas com um prazer inexplicável. Nossas silhuetas, por alguns segundos, se tornaram uma só naquela rua escura.
— Eu já tinha te visto por aqui outras vezes — ela sussurrou em meu ouvido. Fui pego de surpresa com aquela revelação, mas eu não queria dizer mais nada, só queria continuar sentindo aquele momento flamante de afeto.
Dayana me puxava contra o seu corpo cálido. "Just... Give me a reason to love you", ela cantava baixinho em meu ouvido, com um sussurro afinado, o refrão da música 'Glory Box' do Portishead. A sua voz suave parecia me acariciar. Com suas mãos macias, ela deslizava pelas minhas costas. Esforçava-me para não ultrapassar nenhum limite durante aquele afeto, mas pude sentir a ardência do corpo parcialmente descoberto dela se misturando com o meu, senti também parte das suas curvas, aquele caminho insinuante que se desenhava em suas costas... abraço ardiloso, pensei com um certo prazer. De fato, aquilo estava sendo primorosamente excitante, podia sentir minha circulação sanguínea se agitando, fazendo cada célula do meu corpo arder, até que um volume indiscreto começasse a se formar entre minhas pernas.
Dissimuladamente tentei evitar aquele contato indecoroso para Dayana não notar e não achar que eu era um pervertido digno de nojo. Tentativa inútil, ela já havia percebido e curiosamente não achou de mim o que eu temi. Num movimento inesperado, Dayana deslizou sua mão direita pelas minhas costas até a parte inferior e me pressionou abruptamente contra o seu próprio corpo outra vez, fazendo com que o volume do meu membro, quase inteiramente rijo dentro da calça, entrasse em um contato lascivo com a sua púbis. Percebi que ela sabia agir com malícia sem perder a delicadeza, ela fazia movimentos suaves e provocantes com o quadril, roçando suas partes íntimas nas minhas enquanto me abraçava. Conseguia fazer parecer involuntário ou natural pois eram movimentos quase imperceptíveis, daqueles que somente quem entra num estado de extrema sensibilidade causado pelo prazer sexual poderia perceber. E eu percebi a malícia dela. Então desci minhas mãos delicadamente pela sua cintura até repousá-las em seu quadril, sendo cúmplice dos seus movimentos insinuantes. Dayana, bem próxima do meu rosto, mirou-me nos olhos revelando de vez o seu descaso com qualquer moral fundamentalista. Foi quando ela me encostou na estrutura da parada de ônibus e, com suas mãos delicadas, começou a apalpar sem nenhuma pressa aquele volume repleto de indecência em minha calça. Senti meu corpo estremecer de tesão e adrenalina. Agarrei-a pela nuca, lancei a minha língua molhada em seu pescoço percorrendo-o com movimentos suaves e insinuantes. Dayana deixou escapar um gemido baixo e agudo, no mesmo instante sua mão libidinosa sobre meu membro ganhava mais firmeza em sua pegada. Cada minuto passado naquela situação significava mais tesão.
Nossa indiscrição repentina durava alguns minutos, não imaginava onde aquilo poderia chegar, até que o barulho de um ônibus cortou com violência o raro silêncio daquela rua. Era o coletivo 512.
— O meu ônibus! — assustou-se.
— É ele mesmo. — disse em tom de lamentação, mas depois recobrei a simpatia — Você teve mais sorte que eu.
Como em um acesso de realidade, trocamos olhares rápidos e envergonhados. Como se nos perguntássemos o porquê daquele nosso comportamento abrupto e despudorado. Aquela energia libidinosa se esvaía gradualmente depois do susto. Dayana, pela primeira vez, demonstrava um pouco de insegurança e tentou disfarçar começando um diálogo apressado.
— Qual o ônibus que você pega?
— 1312.
— Nossa... mora mais longe daqui do que eu. Espero que não demore mais a passar.
Fiz sinal de parada pra o motorista enquanto Dayana apanhava os seus discos apressadamente na calçada. Ela me fez uma breve carícia no rosto agradecendo e, de ponta de pés, tentou me beijar na bochecha mas desequilibrou no momento do beijo e nossos lábios se tocaram parcialmente. Era como se aquela energia estranha gerada durante o nosso encontro acidental tivesse a empurrado contra mim naquela hora. Com o rosto envergonhado ela pulou para dentro do ônibus se despedindo de mim, acenava de maneira afobada, como se quisesse livrar-se logo daquela situação embaraçosa banhada à indecência. Depois que passou pela catraca do ônibus, se dirigiu a um assento com janela. Despediu-se novamente com um sorriso discreto. Sorri de volta enquanto o ônibus saía devagar, foi aí que Dayana abriu sua janela e exclamou na minha direção.
— Sua prenda é perder o ônibus de novo na próxima segunda-feira! — aquele olhar decidido havia voltado —Tenha um bom fim de semana, Ícaro!
"Verdade!", eu pensei. Admito que aquele tesão intenso, que ela provocou em mim apenas com toques suaves e carícias maldosas, fez-me esquecer completamente daquela prenda. Mesmo quando ela me sugeriu tal coisa, não imaginei que estivesse falando com total seriedade. Pra minha surpresa, era. Instantaneamente entendi o que significava "perder o ônibus outra vez", fiz um sinal com a cabeça em concordância, Dayana esboçou um sorriso malicioso enquanto o ônibus se distanciava até sumir na escuridão da cidade.
(Continua...)
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