Chegando lá, fui jantar uma besteira ou outra. Depois segui para o vestiário, cumprimentei uns amigos do tempo que trabalhava lá e vesti o uniforme: roupa toda preta com um avental de cintura branco.
O Giordano era um lugar bem sofisticado, culinária estrangeira, tudo muito bem elaborado, enfim, era referência entre os restaurantes locais.
O trampo foi tranquilo. No fim da noite o seu Amilton me chamou pra assinar a carteira.
- Tem certeza disso?
- Tenho, pode assinar.
Ele puxou a caneta do bolso da camisa de botão e assinou. Me disse bem-vindo de volta e eu fui pra casa. Quer dizer, tentar voltar pra casa.
Peguei o ônibus e fui arquitetando as palavras pra dizer pra minha mãe.
Eu estava tenso, tremia muito. Eu nunca tinha sentido tanto medo. Mas o que mais me deixava triste era perceber que eu não sentia mais tanto amor pela minha mãe.
Era estranho isso, não conseguia explicar, mas eu não a admirava mais e amor é quase que metade de admiração.
O ônibus parou e eu fui dando passos tortos na rua. Já passava da meia noite e eu acelerei os passos. Cheguei lá e bati no portão. A luz da sala acendeu e depois a luz da varanda. Um barulho de porta se abrindo e uma voz masculina gritando:
- Quem é? Isso são horas?
- Hã? Er... é, oi, boa noite, é o Benjamim.
- O filho da Neide?
- Isso!
- É, olha só, vou chamar sua mãe.
Nossa! Que vergonha que deu. Provavelmente era o namorado dela que ela tinha convidado pra ir morar com ela.
De repente, o portão abre, me assustando.
- O QUE VOCÊ QUER AQUI?
- Vim pedir... – interrompe.
- PRA VOLTAR? HAHA... DE JEITO NENHUM!
- Por favor, mãe!
- Não, saia, saia, saia!
- Olha só, Benjamim... sua mãe ainda está chateada com você; por que você não volta outro dia?
- Não tenho onde morar!
- Vá pra casa do seu macho! – ela.
- Mãe, para com isso!
- Espera Benjamim, deixa eu conversar com a sua mãe.
- Tem conversa, não.
- Ele não tem pra onde ir; você vai deixar ele na rua?
- Ele escolheu isso.
- Pare com isso, Neide! Que tipo de mãe é você?
Nesse momento ela fica me olhando e eu ficava com mais medo, tremia muito.
Acho que ela pensou no que o tal namorado novo disse e concordou. Deixou que eu voltasse.
Entrei no meu antigo quarto, coloquei a mochila no chão e deitei na cama.
Estava moído. Que dia, hein? Me levantei da cama e ia começar a tirar o uniforme quando o namorado da minha mãe bate na porta.
- Olha, se preocupa, não... ela está nervosa com tudo isso.
- O Senhor sabe por que ela me expulsou?
- Não me chame de senhor, me chame de Hamilton.
- Desculpe, mas você sabe por quê?
- Sei, ela disse; mas tudo bem, eu não ligo pra isso.
- Obrigado por me defender!
- Ela chora muito, sabia?
- Eu também choro muito.
- Eu acho feio vocês estarem brigando.
- Ela está brigando comigo; eu só fiz contar a verdade .
- Mas você tem que compreender que foi um choque pra ela.
Senti vontade de dizer umas verdades na cara dele, mas ele não tinha culpa, eu estava estressado do trabalho, estressado por causa do Henrique e agora por causa dos ataques da minha mãe. Coitado, ele não tem culpa...
- É melhor a gente conversar sobre isso depois.
- Ok, durma bem.
Tirei o uniforme, fiquei só de cueca, me enrolei no lençol e fui dormir.
Quando acordei no dia seguinte, eu estava me sentindo péssimo. Me senti sujo de ter voltado, mas era o que tinha pra hoje - como dizem.
Comecei a pensar no Henrique. Senti saudade dele e pena também. Agora ele estava sozinho e o problema dele era maior do que ele poderia suportar.
Eu sempre mantive as aparências porque tinha que esconder a minha verdadeira identidade, mas ele vivia de aparências. O mundinho dele era cheio dessas coisas. Lembro-me de como a família dele escondia certas coisas pra que ninguém pensasse nada de ruim deles. Lembro-me de como o Henrique tinha que fazer caras e bocas quando estava triste.
Ele não tinha outro tipo de vida, ele cresceu e foi criado, educado, formado nesses padrões.
Eu imaginava a barra que ele aguentava, apesar de não ter sido justo o que ele me fez.
Eu comecei a pensar nas coisas que a gente tem que fazer para que o mundo nos deixe em paz. Mas que são coisas que interferem diretamente na nossa felicidade.
Ele deveria estar sofrendo muito, mas meu orgulho era maior.
Os dias foram passando e quando eu me dou conta, nesses dias em que eu estive fora de casa, a minha mãe contou que eu era gay pra toda a família. Toda mesmo.
Todos sabiam, cochichavam sobre mim, davam apoio pra minha mãe.
Me senti tão humilhado...
Como eu já disse antes, a minha família adora fazer festas e qualquer coisa é motivo pra realizar uma. Eu não ia mais a nenhuma dessas festas. A minha mãe ia e sempre que voltava falava que o pessoal tinha perguntado por mim.
Sei, como se eles quisessem a minha presença, pensava eu.
A coisa ficou muito feia nesse sentido. Quase que duas vezes por mês tinha uma grande festa e eu nunca ia.
Apesar de eles realmente não me quererem por lá, estava estranho! Parecia que eles queriam que eu fosse.
Mas eu sabia o motivo de tudo isso... Apesar da homofobia de todos eles, era como se eles se sentissem mal por me excluírem involuntariamente.
Uma vez, dias antes da festa de aniversário do meu primo galinha, - lembram dele? – a minha mãe disse que a minha tia, mãe desse primo, queria muito que eu fosse porque eu estava me afastando muito e que família tem que ser unida - palavras da minha mãe. Não esqueço dessas palavras dela.
Não sei por que, sabia que não devia satisfação da minha vida pra essas pessoas que falavam mal de mim pelas costas; mas eu fui.
Foi a coisa mais humilhante que já fiz. Foi a coisa mais horrível, mais grotesca que já me aconteceu.
Eu cheguei lá e tudo o que eu recebi foram alguns ois... e logo eles se afastavam. Fui dar os parabéns para o meu primo e ele disse um obrigado em tom rude.
Eu sabia muito bem o que ele pensava sobre mim. Todo mundo ficava olhando, eu via bocas perto de ouvidos e tudo o que se via era a falsidade daquelas pessoas.
Me deu uma vontade imensa de chorar ali. Me levantei da mesa e saí. Falei com o namorado da minha mãe pra avisá-la de que eu iria embora.
- Por quê? Já vai?
- Já, estou indo.
- Fica mais um pouco, rapaz.
- Não, não dá; ninguém me quer por aqui.
- Até onde eu soube foi sua tia quem te convidou.
- E tudo o que ela fez foi me dar um oi de canto de boca.
- Mas é que tem muitos convidados...
- Pois pronto... um a mais, um a menos, não fará falta, principalmente se ele for gay.
Me despedi dele e de uma prima bem legal que eu tenho e que nunca me discriminou e sumi. Tudo o que eu queria era tomar um banho e me livrar da poeira que eu tinha adquirido naquela festa. Eu esfregava a minha pele debaixo do chuveiro com tanta força, fiquei todo vermelho. No fim de tudo, chorei debaixo d'água. As minhas lágrimas se confundiam com os fios de água que caíam do chuveiro. Sai do banho, vesti uma cueca, peguei um pote de biscoitos que eu tinha comprado com o meu dinheiro - eu já não consumia nada do que eles compravam e ainda pagava metade das contas da casa - e fui pra cama.
Quando penso em dar uma olhada no celular, vejo algumas chamadas não atendidas.
O número era dele. Sim, do Henrique.
Ai! Me subiu uma coisa, um ódio reprimido e me deu uma vontade de atirar longe o aparelho, mas eu pensei na grana que aquilo custava e guardei.
Fui dormir com as lágrimas ainda rolando no rosto e o travesseiro, coitado, se afogou com essas águas.
No dia seguinte, a minha mãe reclamou muito por eu ter ido embora cedo, que todo mundo falou, perguntou por que eu tinha feito isso, se a família queria me mostrar que eu não tinha motivos pra me excluir.
Escutei tudo calado, não porque eu me submetia às asneiras da minha mãe, mas porque tudo o que ela dizia me soava como um blá blá blá e entrava por um ouvido e saía pelo outro.
Além do mais, eu não estava nem um pouco preocupado com o que estavam falando.
Um tempo depois, eu soube que aquele mesmo primo galinha estava falando mal de mim para os quatro cantos.
Era curioso tudo isso. Tanto a minha mãe, como esse primo, bem como todo o resto da minha família, tinham vergonha do que os outros pensavam sobre eles terem um gay na família, mas não paravam de me difamar na rua.
O Henrique ainda me procurou um dia desses na faculdade, mas eu disse pro Vagner me livrar dessa. Quando ele voltou...
- E aí, o que ele disse?
- Queria te ver, falar umas coisas.
- Que coisas?
- Queria conversar.
- Sobre?
- Acho que ele queria voltar.
- Haha... sem chance!
- Foi o que eu disse.
- E ele?
- Veio todo cheio de moral dizer que eu não era ninguém e que precisava falar com você e não com o seu garoto de recados.
- Desaforado!
- Pois é, mas aí eu aproveitei pra dizer pra ele que eu ia passar na casa dele pra pegar as suas coisas. E ele disse que não ia me dar nada; que se você quisesse, que fosse buscar.
- Ai, não! E agora?
- Relaxe! Eu vou pegar
O Vagner, como tinha me prometido, foi na casa do Henrique buscar o resto das minhas coisas.
Como estudávamos à tarde, fomos depois das cinco.
Eu disse fomos, porque o restaurante era próximo do apartamento do Henrique, como já disse antes aqui. Eu fui pro Giordano e ele foi pro apê.
Mas eu tinha quase certeza de que o Henrique não estaria lá; sei lá, ele usava o apartamento pra se encontrar comigo e, quando era solteiro, só usava para as farras e para os estudos. Agora que ele não deveria estar muito bem com a separação, achei que ele passasse quase todo o tempo em casa, ou seja, na casa dos pais dele; mas não custava tentar.
Eu fui para o trabalho apreensivo, pensando no que poderia acontecer. Eles poderiam brigar; o Henrique poderia não deixá-lo pegar as minhas coisas. Havia coisas minhas importantes lá: os meus livros, a maioria das minhas roupas, algumas anotações que eu fazia, as minhas poesias, textos, minicontos, críticas escritas... enfim, coisas essenciais pra mim, principalmente agora que era eu mesmo quem me sustentava.
Não poderia me dar ao luxo de deixar tudo pra lá.
Fui para o vestiário do Giordano e fiquei esperando sinal de vida do Vagner, porque ele havia me prometido passar por lá pra me dar as coisas e contar tudo.
Da faculdade para o bairro do Henrique demorava uns quarenta minutos de ônibus e chegamos lá umas dezoito, mais ou menos.
Deu oito, oito e meia da noite e nada do Vagner aparecer. Eu já estava ficando tenso, temendo o que poderia ter acontecido. Se ele demorou tanto assim é porque o Henrique estava no apartamento.
Comecei a servir as mesas e a bandeja não ficava fixa na palma da minha mão. Tinha horas que eu achava que ia cair ou derrubar tudo no chão, de tão nervoso.
Deu umas oito e quarenta e me chega o Vagner com umas sacolas plásticas na mão. Conseguiu! – pensei comigo.
Ele veio na minha direção, mas eu fiz um sinal pra ele dar a volta e entrar pelos fundos. Pedi, discretamente, que um dos seguranças do restaurante levasse o Vagner até a porta de trás do Giordano e ele foi.
- Caraca, nem acredito que você conseguiu!
- Eu disse que traria.
- Você demorou tanto...
- Pois é, mas foi porque... – interrompo.
- Não Vagner; agora não dá, preciso voltar pra cozinha.
- Ok, tome as suas coisas, agora você tá livre.
- Eita! Ôh mania que você tem de falar as mesmas coisas que ele me dizia.
- Agora você tá livre? Ele disse isso?
- Quando a minha mãe me expulsou pela primeira vez de casa.
- Foi mal.
- Tá, não esquenta... valeuzão cara!
- Imagina; tchau!
Eu fui colocar as coisas no meu armário, no vestiário. Nem tive tempo de conferir se estava tudo nas sacolas. Voltei para o salão e fui nesse ritmo até à uma e meia da madrugada.
Voltei todo moído pra casa. Tomei um banho, vesti uma cueca limpa e fui para o quarto.
Quando entrei, dei de cara com as sacolas. Elas eram pretas. Será que era um sinal?
Não resisti e me prontifiquei a olhar tudo. Lá estavam todos os meus livros, anotações, minhas poesias, roupas, os tênis - um eu uso até hoje - e um bilhete!
Era dele.
Ele tentando se comunicar comigo, falar alguma coisa. O papel estava dobrado. Tive medo de abrir. Foi com muito pesar que acabei abrindo e lendo.
"Nunca pensei que eu pudesse amar alguém como eu te amo. Nunca jamais sonhei que pudesse encontrar alguém que me completasse tanto. Nunca achei que pudesse me entregar para alguém de tal forma que o meu corpo se sentisse dominado por esse sentimento. Nunca me senti tão tomado. Nunca pensei que pudesse sentir algo tão forte. Nunca pensei que alguém pudesse se tornar a minha vida. Nunca achei que pudesse fazer amor da maneira mais intensa e sentir as minhas sensações roubadas por um beijo.
Pois é, Benjamim; nunca pensei que pudesse amar alguém como eu te amei. Não achei que seria possível.
Mas eu te amei da maneira que pude e da maneira mais verdadeira que você possa imaginar.
Posso não ser perfeito, mas tudo o que fiz era em verdade e tudo o que te disse não era mentira. Tudo o que vivemos juntos era amor do mais puro.
Assim como nunca pensei amar desse jeito, também nunca sofri tanto por causa de um abandono. Você me agradeceu por fazer de você um homem.
O que eu tenho pra te dizer é que o que mais desejo agora é te esquecer.
Esta carta breve é para te dizer adeus. Não vou embora da cidade, tão pouco do país; só quero que os nossos caminhos não se cruzem jamais.
Nunca pensei que pudesse me decepcionar tanto.
Te amei da maneira que pude. Ao menos tenha consciência disso.”
Era fato: eu ainda o amava. O que eu poderia fazer? Se amor se escolhesse...
Eu tremi lendo aquela carta e imaginando a voz dele dizendo aquilo pra mim. Aquelas seriam as últimas palavras que eu ouviria dele.
Meu coração disparou e eu sentei na cama, na verdade, eu caí na cama.
Não podia crer no que ele me escrevia. Ele declarava todo o seu amor e sofrimento.
Eu sei que muitos me acham bobo por ainda dar créditos a ele, mas é que eu ficava pensando na barra que ele sofria. Ele não conhecia outro modo de vida se não a das aparências. Era difícil pra ele também.
Mas doeu muito ler que ele estava tentando me esquecer e que não queria me ver nunca mais.
Era eu quem deveria estar escrevendo isso. Me senti muito triste. Tudo acabou de uma maneira tão feia e suja comparada com a maneira como tudo havia começado.
Ele era o homem que todo mundo gostaria de ter; ele era o namorado que todo mundo gostaria de apresentar à mãe. - claro, se essa mãe não fosse como a minha - Ele era tudo pra mim.
Eu também nunca havia sentido algo parecido. Era triste e os meus olhos exteriorizaram essa tristeza. Eu chorei muito naquela noite e como de costume, como eu fazia quando ainda não tinha conhecido o Henrique, quando eu era a repressão em pessoa, eu chorei e abafava os gemidos no travesseiro.
Aquilo me fez lembrar da época em que eu ainda me perguntava o porquê de eu sentir atração por homens.
Mas agora eu chorava por ter perdido um.
Acordei decidido a procurá-lo.
Eu iria de todo jeito. Não importava as humilhações, eu não estava nem aí. Eu já tinha perdido o controle sobre a minha vida fazia tempo. Tudo o que eu mais queria agora era a felicidade de volta e eu sabia que só a teria ao lado do Henrique.
Acordei cedo, tomei café rápido e me decidi almoçar na faculdade depois de encontrar com o Henrique. Fiquei na frente do prédio de medicina esperando. Eu sabia que ele ia demorar, porque afinal, eu tinha ido cedo e ele só chegaria umas treze e meia.
Eu vi o carro dele de longe. Fiquei de pé, esperando ele descer. Uma porta do carro dele se abriu e lá estava ele. Eu só não esperava que a outra porta também se abrisse.
Sim, era ela. Ele estava com ela ainda.
Quando ele me viu, fez uma expressão de susto, mas logo voltou à sobriedade.
Ela era bonita, uma concorrente cruel. Ele se agarrou à cintura dela e veio na minha direção. Engoli seco.
- Oi, Benjamim!
- Oi.
- Deixa eu apresentar a minha namorada, Débora.
- Prazer! - me dando dois beijinhos.
- Prazer.
- Eu acho que já te vi em algum lugar... – ela.
- Foi amor; você o viu naquele restaurante que a gente almoçou. – ele.
- Ah, é mesmo.
- Pois é... agora eu trabalho lá.
- Então você realmente optou por isso, não é? – ele.
- Sim.
Arrependimento mata?
Se a resposta for sim, eu ainda estou morrendo. As doses desse veneno chamado arrependimento são homeopáticas...
- Amor, vai indo pra sala que eu já já chego.
- Tá bom! - deu um beijo nele e eu tive que ver a cena se repetindo.
Ainda parecia traição.
- Então agora ela é seu amor...
- O que você quer aqui? Recebeu o meu recado?
- Sim.
- Então por que veio?
- Porque achei que ainda houvesse caráter em você.
- A minha proposta ainda está de pé.
- De eu virar o seu amante em tempo integral? Não, obrigado. Eu me esqueci por alguns minutos que tenho amor-próprio, mas você me lembrou que ele existe.
- Então é melhor não nos vermos mais; isso só piorará as coisa. - estava quase chorando.
- Pior do que está? Será possível?
- Por via das dúvidas, é melhor não nos vermos mais.
- Concordo plenamente.
Dei as costas e saí.
- BENJAMIM! – ele gritou.
Olhei pra ele e a cara dele parecia desesperada.
- NADA NÃO, ESQUEÇA!
Eu queria morrer naquele instante; sumir e nunca mais ser visto.
Fui chorando para o restaurante self-service da faculdade e as pessoas ficavam me olhando. Eu ficava na fila soluçando e as lágrimas caíam no prato.
Algumas pessoas me perguntavam se eu estava bem e eu só dizia que sim com a cabeça. Comi tudo e fui embora pra sala. Fui o primeiro a chegar, sentei no fundo e fiquei de cabeça baixa. Foram chegando os colegas, mas os amigos mesmo, ainda não.
Quando o Vagner chegou eu fui correndo em direção a ele e o puxei pelo braço. Fomos para o banheiro masculino e conversamos.
- Por que você fez isso, Benjamim? Esqueceu o que ele te fez? - me dando uma bronca.
- Desculpa.
- Não precisa pedir desculpas, peça desculpas para a sua autoestima.
- Mas eu precisava falar com ele.
- E foi bom? Me responde; foi bom?
- Pelo menos serviu pra eu me decidir de vez por deixá-lo.
- Pelo menos isso, né? Ele ainda ficou dizendo ontem à noite que não ia me deixar levar as suas coisas porque tinha esperança de você voltar, mas claro, nas condições que ele impôs.
- E como você conseguiu fazer com que ele deixasse você levar as minhas coisas?
- Disse a ele que você tinha outro.
- O QUÊ? VOCÊ TÁ LOUCO? POR ISSO QUE ELE VOLTOU COM ELA, POR ISSO ELE DISSE QUE VAI TENTAR ME ESQUECER. AI... EU NÃO ACREDITO QUE VOCÊ FEZ ISSO!
- Hã? Você quer rastejar como um cachorrinho pra ele? Ótimo, faça isso, mas não conte mais comigo, seu viadinho de merda!
Ele saiu do banheiro furioso e bateu a porta.
Eu também estava furioso. Como ele teve coragem de fazer isso? Só por causa disso talvez o Henrique tenha feito o que fez.
Decidi mais uma vez ir atrás dele, mas dessa vez eu liguei. Liguei imediatamente. O telefone tocava e ele não atendia. Insisti. Insisti várias vezes até que ele atendeu.
- O que você quer?
- Me responde uma coisa: se você soubesse que eu não estou com ninguém, você teria feito o que me fez hoje mais cedo? Porque era mentira do Vagner, ele disse isso só pra te convencer a levar as minhas coisas da sua casa e eu só soube disso hoje.
- Não.
- Hã? Não entendi.
- Eu não faria nada diferente, quero mesmo te esquecer.
Fiquei um tempo estático com o telefone no ouvido, sem acreditar no que eu estava ouvindo, porque tinha certeza de que ele só tinha feito o que fez por causa da mentira do Vagner. Me enganei.
- Alô? Alô? – ele.
Desliguei. Está comprovado: eu sou um babaca!
Não tive coragem de voltar pra sala e encontrar o Vagner. Eu estava sendo um babaca com alguém que só me fez bem. Fiquei no hall do meu prédio e totalmente sem chão. A aula acabou e era o intervalo; todo mundo começou a sair da sala e a Ana veio falar comigo.
- O que aconteceu que o Vagner chegou raivoso lá na sala?
- Eu; Ana, eu que sou um idiota!
- Mas o que foi? - expliquei tudo - Nossa! Entendo. Quer que eu converse com ele?
- Não, deixa... é melhor assim, eu já aluguei o Vagner demais.
- Mas ele gosta muito de você, você é como o irmão mais novo dele. - o Vagner havia perdido um irmão por causa de um câncer - Eu até desconfio que ele seja gay e que vocês estão de caso de tão grudados que vocês andam.
- Soltei um sorrisinho meia boca. - Pois é, e eu fiz o que fiz com ele. É melhor deixar como está.
Nesse momento o Vagner ia descendo as escadas e gritou pelo nome da Ana. Ela, por sua vez, o chamou pra junto da gente. Ele não quis, ela insistiu. Ele ficava resistindo e ela chamado mais, até que ele veio com a cara amarrada e eu todo envergonhado.
- Por que está me chamando?
- Façam as pazes agora.
- Não faço as pazes com amigo falso.
- Desculpa Vagner... é que eu estou maluco com essa situação.
- Sei... – irônico.
- Você também não fica atrás, Vagner. Você chamou ele de viadinho de merda. Isso é coisa que se diga?
- Tudo bem, Ana; eu mereci.
- Mereceu? – ele.
- Ele não vale nada, Vagner. Agora eu sei.
Ele ficou me olhando e eu de cabeça baixa, quase chorando.
Ele tinha o instinto resguardado de irmão super protetor e eu era o menino frágil.
- Tá, tudo bem, tá perdoado. – ele.
Me arrependi mortalmente de ter feito o que fiz.
Mas o tempo passa e cura tudo.
Para adiantar a história, vamos finalizar com 2001 e vamos para 2002, mais precisamente para maio desse ano.
O Giordano virou uma casa de shows nos finais de semana e como lá só ia a elite, o local começou a bombar rapidamente.
O Giordano fazia sucesso e o seu Amilton, a cada dia, depositava mais confiança em mim. As pessoas não são garçons, elas estão garçons, ou seja, garçom sempre é um emprego temporário e a maioria das pessoas que trabalhavam lá, iam embora em cinco meses, no máximo.
Já eu ia ficando e, com essa permanência, eu já tinha ganhado dois aumentos de salário e o cargo de coordenador do corpo de garçons.
Eu era quem iniciava os garçons no restaurante.
Eu tinha ganhado respeito dentro do Giordano e estava começando a gostar do meu trabalho. Até que um dia desses o seu Amilton contrata um novo garçom. Alto, não muito forte, mas também não era magro, cabelos negros, lisos e compridos até os ombros, ombros largos, olhos castanhos e um cavanhaque desenhado no rosto.
- Benjamim, esse é o Érique. - putz, quase Henrique - É o novo garçom, apresenta a ele os aposentos, como é que tudo funciona e dá um
uniforme do tamanho dele.
- Oi, prazer! - me estendendo a mão.
- Prazer; venha comigo.
Apresentei o restaurante ao Érique como a qualquer outro garçom, até porque, para mim, ele não era mais nada que um novo companheiro de trabalho.
Apresentei-lhe o salão, o bar, os ambientes dentro do Giordano, a cozinha e o vestiário. Dei-lhe um uniforme de seu tamanho e dei algumas recomendações. Perguntei se ele tinha prática, experiência nesse tipo de trabalho e ele me deu um ‘não’ de forma indiferente. Mas não me encuquei com isso, até porque a única coisa que me interessava ali era o profissionalismo.
O que me chamou a atenção no Érique era como ele fazia questão de mostrar nas expressões faciais de que ele não estava nada satisfeito com tudo isso. Parecia que ele estava ali obrigado, como um garoto que vai cortar o cabelo com aquela cara emburrada.
Ele parecia um menino birrento. Mas escutou tudo com atenção e não questionou nada.
Era manhã e a minha faculdade era à tarde. Do restaurante, fui para lá. Encontrei os amigos, assisti aula normalmente e percebi que o pessoal estava mais próximo de mim. Adivinhem por quê!
Lembram que eu disse que o Giordano também tinha virado uma casa de shows nos finais de semana? Pois é, a galera estava no maior ti-ti-ti pra poder ir pras noites de lá. Não se falava outra coisa na cidade se não no sucesso e na playboyzada que ia em peso.
Com o tempo, as bandas locais mais executadas nas rádios estavam marcando presença por lá e os DJ’s mais famosos também.
Eu sempre gostei muito de música eletrônica, mas nunca dava tempo de curtir um pouco.
Aquele meu primo homofóbico e super galinha, tinha uma banda de pagode. Eles tocavam bem, tinham o seu valor. Mas como eu não me dava bem com ele e não por culpa minha, nunca fui a uma apresentação dele.
Uma vez, ele teve a coragem de ir pedir à minha mãe pra ela falar comigo pra eu falar com o dono do Giordano pra que a banda dele pudesse tocar lá. Ou que ao menos os escutassem e, se eles gostassem, a banda poderia ficar fixa na casa.
Como a minha mãe achava que esse era o tipo de modelo masculino que eu deveria ser, ela me pediu para que eu fizesse isso.
Resisti muito. É claro que eu não queria fazer isso... e depois como é que a pessoa tem essa cara de pau de pedir algum favor depois de tudo que me fez?
Minha mãe insistiu, insistiu e eu, com a minha besteira, concordei. Falei com o seu Amilton e ele concordou em ouvir. Ele gostou e disse que eles tocariam uma noite e se o público gostasse, eles tocariam mais vezes, mas nada de ficar fixo.
Quando a família soube da notícia, fizeram uma festança pra comemorar e a mãe dele, minha tia, me ligou convidando para ir comemorar junto.
É claro que eu não fui. Dei uma desculpa e me livrei da hipocrisia familiar.