Tudo ia bem na faculdade e tudo ia bem também no trabalho.
A minha casinha precisava de umas reformas, mas nada que merecesse atenção urgente.
O meu primo galinha, que tocava no Giordando todas os sábados, ia bem também, parecia que estava conquistando o seu Amilton. A bem da verdade, até que ele cantava bem, era bonito, tinha muitas fãs - vadias - e chamava mais gente para as noites no restaurante.
Só que ele é um irresponsável. Quase sempre chegava atrasado e às vezes cantava bêbado.
Ele sempre foi mimado. É o único homem de uma família de seis irmãs, então imaginem como a mãe dele o colocava em um pedestal...
Uma noite, o pilantra teve a cara de pau de me pedir pra eu falar com o seu Amilton para ele o liberar do sábado por que ele tinha coisas importantes para fazer. Traduzindo: ele ia pegar uma menina que ele tinha conhecido durante um show e pôr mais chifres na cabeça já enfeitada da coitada da noiva dele.
Eu tinha tanta pena dela porque ela era super legal comigo e bem meiguinha. Quando eu consegui o espaço do Giordano pra banda dele tocar, ela veio me agradecer. Disse que era uma boa oportunidade pra ele, já que ele sempre atrasava as coisas na faculdade de administração e não procurava emprego.
Mas eu, é claro, disse que não. Disse que não ia pedir coisa alguma pro seu Amilton e que se ele quisesse, ele que pedisse.
Dá pra acreditar que ele ficou com raiva de mim?
Depois de ele ter gritado aos quatro ventos que eu era gay e eu ainda arrumo emprego pra ele e o filho da mãe fica de birra pro meu lado...
Pode isso?
Essa menina que ele estava pegando era casada. Uma noite, o marido dela que já sabia da história toda, foi no show do meu primo. Eu não trabalho no sábado, soube pelo seu Amilton e os garçons.
Eles começaram a tocar e depois da segunda música, uma latinha de cerveja, cheia e que nem estava aberta ainda, foi atirada na cabeça do meu primo. Eu me divirto imaginando a cena... Aí ele desce do palco e grita: quem foi o palhaço? E o corno grita de volta: fui eu, por quê?".
Minha gente... disseram que o homem dava dois do meu primo, Filipe; o nome do encosto.
Aí os dois se gladiaram. Os caras da banda desceram e foram ajudar, só que o corno não tinha ido sozinho, o cara foi com a turma da academia, um bando de pitboys; acho que nessa época nem se falava nesse termo, mas os marginais já existiam e foi um quebra-pau miserável. Um monte de gente machucada. Deu nos jornais e tudo.
O Filipe foi demitido, mas a banda poderia ficar se ela arrumasse outro vocalista. O meu primo estava jurando que a banda não ia trocá-lo, porque eles eram amigos. Nem preciso dizer o que aconteceu depois.
Ai, ai, ri tanto nesse dia! Eu passei a semana rindo.
por sorte o seu Amilton não me deu bronca... Só me avisou que ele tinha sido demitido e eu dei o maior apoio.
O ano foi passando, o aniversário do Henrique foi chegando e eu me lembro que eu fiquei bem melancólico nesse dia. Mas passou.
O do Érique também foi chegando e já fazia um mês que ele trabalhava no restaurante.
Lembro que a gente comemorou no dia seguinte porque ele passou o dia com a família e amigos. Pois é, ele não era assumido.
Na minha universidade, os espaços públicos são liberados para festas e manifestações culturais. A turma de medicina estava promovendo uma festa pra angariar fundos para a formatura que já era no ano seguinte, em 2003.
Foi uma semana de festa e eles conseguiram arrecadar o que faltava.
E qual buffet eles contrataram?
Quando eu soube que a comissão organizadora da formatura do Henrique contratou o buffet da mulher do meu patrão, não acreditei.
Era tudo o que eu não queria agora. Era tudo o que eu mais odiaria fazer.
Encontrar com o Henrique de novo implicaria no surgimento de diversos sentimentos que eu não queria recordar. Ele estaria em um momento grandioso na vida dele, momento esse que merece ser compartilhado com pessoas especiais: o pai, a mãe, os irmãos, os melhores amigos, as pessoas que ele amava e conhecia e, é claro, o companheiro ou companheira que, por tropeços do destino, não era eu.
Logo, ele estaria lá... lindo, loiro, feliz, radiante com a nova conquista, compartilhando desse dia com as pessoas mais queridas e eu não era uma delas, mas estaria lá para presenciar isso e da maneira mais humilhante... como garçom.
Calma! Eu não me arrependo da escolha que fiz, mas é porque simplesmente esse foi o motivo de nós acabarmos.
A bem da verdade, o motivo real foi a arrogância e a humilhação que ele direcionou a mim e, por mais que eu estivesse satisfeito com o meu emprego, essa não era a maneira que eu gostaria de estar lá... servindo, quer dizer, eu não gostaria de ir pra lá de nenhum jeito, nem mesmo se eu fosse um dos convidados de um outro formando.
A ideia de ir para a festa de formatura da turma de medicina do ano de 2003 me apavorava.
Eu não vou e ponto! - pensei comigo.
Liguei para o seu Amilton e inventei uma semana de provas na semana seguinte da festa e expliquei que precisaria de tempo para estudar e que, logo, eu não poderia ir nessa festa, mas estaria no restaurante como de praxe.
Ele sempre me apoiou nos estudos, tinha orgulho de ter um garçom universitário e, às vezes, me tomava emprestado de exemplo para os filhos mais novos dele.
Bem, fui dispensado da grande festa. Ainda bem!
A festa era mais outra das inúmeras desculpas para que os ricaços industriais da minha cidade exibissem a pompa e mostrassem pra todos que os filhos eram gente.
Eu sempre ouvia falar dessas famílias na sala de aula, pelos professores e do desprezo que acabávamos tomando por esse tipo de pessoas e os seus acúmulos de riquezas. Tudo era verticalizado: a grana, patrimônios, bens portáteis de consumo... enfim. Eu tive uma educação quase que socialista/marxista/comunista e, apesar de não ser nem um dos três, até que eu solidarizava com alguns ideais.
É claro que isso não tem nada a ver com o conto ou com a minha vida na prática, mas, para se ter ideia, a festa teria cobertura de uma emissora de TV a cabo. Super brega, mas era chiq na época... e alguns convites estavam sendo vendidos.
Tudo isso só fez fortalecer ainda mais o meu desejo por não ir. Não me sentiria à vontade com tudo aquilo.
A noite passou e nada mais se comentava sobre o assunto no dia seguinte.
Eu lembro vagamente da Ana perguntando se eu estava bem porque eu e o Henrique tínhamos planos de irmos à sua formatura e dançarmos a valsa juntos.
Eu, é claro, temia por esse dia porque as pessoas, como se fossem da conta delas, tomariam isso como ofensa e eu nem tinha certeza ainda se deveria assumir ou não.
Mas estava decidido, nós dançaríamos juntos a sua valsa. Combinamos diversas coisas também, mas não me recordo muito bem. Lembro de termos combinado de ir para a praia depois da festa, pôr os pés na água e fazer um pedido de futuro.
Imaginem como eu estava me sentindo depois desse turbilhão intenso de memórias perdidas por causa de uma simples bandeja de latão...
- Alô! – eu, atendendo a uma voz misteriosa.
- Sou eu.
- Eu quem?
- Não reconhece mais a minha voz?
- Henrique?
- Olha só, ele lembrou!
- O que você quer?
- Você não foi trabalhar ontem ou não é mais garçom?
- Não é da sua conta.
- Não precisa ser tão grosso... Como você está?
- Também não é da sua conta... como se você se importasse...
- Eu me importo sim.
- Fala, Henrique, o que você quer?
- Pensei que te veria ontem à noite...
- Hã? Onde?
- Na minha formatura.
- Não acredito... você que contratou o buffet?
- Não, eu só sugeri.
- Suas sugestões são imposições, né?
- Por que não foi?
- Não fui escalado pra essa festa.
- Não foi escalado ou você não se escalou?
- Não interessa.
- Você não vai perguntar como foi?
Eu não estava acreditando que o mesmo Henrique que disse que me esqueceria; o mesmo que me pediu garantias de que eu não estragaria a sua vida de hétero feliz, agora me ligava como se a gente fosse íntimo.
Juro! Não entendi...
- Como foi o quê?
- A festa!
- Pra quê? Eu sei que deve ter sido tudo perfeito. Você estava se formando, realizando o seu sonho. Agora você vai se especializar em neurologia, a não ser que já tenha mudado de ideia, e vai se casar com uma mulher linda e vai ter a vida perfeita que você sempre sonhou.
- Também não é assim, a vida não é só isso.
- Realmente, a vida das pessoas normais não são, mas a sua é.
- Esse não é o Benjamim que eu conheço. Você está tão frio...
- Você merece outro tratamento?
- Pelo menos em nome dos velhos tempos... Quem sabe nós não poderíamos ser amigos?
- Vou até fingir que não ouvi isso.
- Mas e você, como está?
- Bem.
- E...?
- E mais nada... só bem, obrigado!
- Você ainda está morando com a sua mãe?
- Não, moro só agora.
- Jura? Onde?
- Não interessa.
- É seguro aí?
- Hã? Como assim? Provavelmente você deve estar pensando que eu moro em alguma favela, com a mixaria que eu ganho, né?
- Não disse isso...
- Sei... – irônico.
- Onde, B?
- Em uma casinha perto do centro.
- O centro é tão grande.
- Isso não é nenhuma novidade para mim.
- Em que bairro?
- Em um que você provavelmente não conhece.
Essa ligação já estava se estendendo demais para o meu gosto.
- Vai, me diz.
- Por que me ligou? O que você quer?
- Saber como você está, se está bem.
- Eu já disse: estou bem, agora pode desligar.
- Você nem perguntou se eu estou bem... – choramingando.
- E por que eu ia perguntar isso? Primeiro que isso não me interessa. Segundo que eu sei que você está bem, tem uma vida boa...
- Para de falar isso, B!
- Para de me chamar de B, eu não gosto.
- Você gostava antes.
- Porque tá falando essas coisas? O que você pretende?
- Eu só queria manter contato.
- Para de hipocrisia... pare de me ligar falando como se nada tivesse acontecido.
- Aconteceu, mas passou.
- Passou mesmo. E que bom que passou... E é por isso que eu não gostei de você ter me ligado.
- Poxa! Eu liguei na maior boa vontade ...
Ninguém merece!
- Tá. Como você está?
- Estou indo, caminhando, levando a vida, você sabe...
- Pois é, eu sei. Agora que eu sei que você está bem e que você sabe que eu estou bem, desliguemos né? Tchau!
- ESPERA, B!
- O que você ainda quer?
- Conversar.
- Sobre?
- Ah, sei lá... a vida; esse tempo que a gente não se falou...
- Por que você não vai praticando o bate-papo com a Débora? Depois de casados é o que você mais vai fazer.
- Para com isso, Benjamim; estou te pedindo.
- Você esqueceu que me pediu pra eu te esquecer que você faria o mesmo?
- Deixa isso pra lá.
- É fácil dizer isso depois de feito, né?
- Nem parece que a gente se amou daquele jeito!
Senti um arrepio quando o ouvi falando isso.
Aquela voz rouca, triste e saudosa me falando de amor, me fazendo lembrar dos velhos tempos.
Como eu queria... Enfim, esquece!
- Não acredito! Haha... faz-me rir!
- Não entendi o seu desprezo.
- Entendeu sim; só não quer acreditar porque você nunca levou um não na vida.
- Você realmente não é mesma pessoa dócil de antes.
- Se dócil quer dizer manipulável no seu dicionário, então, realmente, eu não sou mais.
- Perdi meu tempo ligando pra você.
- Olha só! Depois eu que sou o grosso, não é?
- Entenda como quiser; eu só liguei pra fazer um agrado, se você é ignorante o bastante para se desfazer da minha cortesia, ótimo, se foda!
- Pois é, eu não poderia esperar nada mais nojento de alguém que pagava os coleguinhas na escola para serem seus amigosIsso mesmo, desligue na minha cara, desgraçado!
Essa história do passado, que ele me contou por acaso um dia, sempre o
chateava.
Ele odiava sentir que não era querido, amado, mas ele não aprendera a cativar o carinho das pessoas de outra forma e isso o fazia ficar furioso.
Lembro de ouvir o Henrique por diversas vezes falando de como ele ficava triste em desconfiar se as pessoas ao seu lado estavam ali porque o queriam bem ou por interesse.
Eu, nesse tempo separados, fiquei imaginando como ele deve ter se sentido, sem a certeza de que alguém o amava verdadeiramente.
Ele sempre foi muito carente; daquelas carências de dar dó.
Ele só queria amigos de verdade, pessoas queridas e amores fraternos, enfim, ele queria não se sentir desprezado.
Eu tinha pena dele.
Depois desse telefonema, o ano de 2003 não me deu mais notícias do Henrique.
Mas o Érique estava a todo vapor durante esse ano.
Ele aprontou muito durante os primeiros meses do ano e o pai dele o obrigou a trabalhar por mais tempo no restaurante. Mais tempo do que o previsto.
Saíamos quase toda sexta feira.
O meu primo galinha levou um pé na bunda da noiva dele, porque foi expulso da banda e porque não procurava mais emprego e porque tinha ficado um grosseirão pro lado dela.
Aí, depois de ela confirmar uns chifres que ela tinha levado, não teve jeito, ela o deixou.
O pilantra teve a audácia de me ligar aos prantos, chorando como um bebê, implorando pra eu pedir pro seu Amilton pra ele o devolver o emprego. Mas eu disse que não.
A mãe dele veio aqui em minha casa dizer que o coitadinho estava deprimido, estava em casa perambulando, trancado no quarto como se fosse o fim do mundo...blá, blá, blá.
E a minha mãe ligou pedindo pra eu dar uma força. Acredita nisso?
Mas eu fiz como Amy Winehouse: NO! NO! NO!
Voltando ao Érique, ele estava me fazendo esquecer as mágoas, apesar de que parecia que a gente não estava em um relacionamento firme.
Ele não queria se assumir e eu, obviamente, respeitava isso. Mas ele me chamava pra ir nas baladas gays e eu não curtia muito porque é uma pegação desinibida que eu não estou acostumado.
Eu até ia e por vezes a gente ficava deitado no sofá da boate se pegando, enquanto um outro casal ao lado, transava descaradamente.
Ele curtia olhar e até mesmo passar a mão e por vezes também ele me convidava a participar, mas, definitivamente, esse não era o meu estilo.
Mas tudo ia bem na cama, afinal, o nosso relacionamento se limitava a isso.
Numa noite, eu estava arrumando a mesa de taças do buffet em um salão de festas na cidade. De repente...
- Oi! – o Érique.
- Oie! O que tá fazendo aqui? Você nem foi escalado. - ele nunca era escalados pras festas.
- Vim conversar.
- Sobre?
- Vamos para um lugar mais reservado?
Andamos até os banheiros e ficamos os dois de frente um para o outro.
- Já faz um tempo que eu não apronto.
- Haha... pois é... o que te deu?
- Hehe... Ataque de consciência.
- Fala, continua...
- O meu pai vem percebendo o meu comportamento mudando e me disse que está prestes a me tirar do batente.
- Hum, que bom!
- Mas eu quero abandonar isso o mais rápido possível.
- Mas vai ter que esperar, né?
- Depende... se você me ajudar...
- Ai, ai; fala; qual é o plano?
- Você me fazer de bom moço pro meu pai.
- E como é que eu faço isso?
- Simples, você vai dizer pro meu pai que eu tenho ido bem no trabalho, que não dou problemas, que sou uma doce criança inocente; haha...
- Tirando o doce e inocente, até que é mesmo; haha...
- Ah... não judia de mim. Olha só, você faz isso por mim?
- Claro, pode deixar .
O pai do Érique veio me procurar e eu fiz o planinho dar certo.
Ele foi perguntar para o seu Amilton, que por sua vez passou a bola pra mim, já que era eu quem coordenava os garçons, e eu disse o que o Érique me pediu.
Dois dias depois, o Érique não trabalhava mais lá e tinha voltado à sua vida de antes.
Uma noite qualquer, ainda na mesma semana que isso tudo tinha acontecido, o Érique me reaparece no vestiário me procurando.
- Posso falar com você?
- Aham. Deixa eu só me vestir.
Vesti o uniforme e o avental de cintura e fomos para a porta dos fundos.
- Fala.
- Isso é um adeus.
- Pra onde você vai?
- O adeus é pra você - falando com uma voz tristonha.
- Por que?É porque eu sou garçom, não é?Não tenha vergonha de dizer, Érique.
Eu não estava apaixonado pelo Érique.
Realmente era só carência acumulada. Não me senti ofendido em sentir que a história estava se repetindo, afinal, o Érique era só um garoto mal criado.
Ele podia já ser maior de idade, mas ainda era um garoto.
- Não é bem assim.
- E como é? - bem calmo.
- É que... você tem que compreender.
- Eu compreendo.
- Não, você não compreende; você é gostosinho e tals, mas tem coisas que são difíceis de explicar.
- Você não teria coragem de me apresentar como namorado, se fosse assumido, não é isso?
- Talvez... é isso sim.
- Não se preocupe; você não é o primeiro que faz isso.
- Outro cara já te deixou por você ser garçom?
- Já.
- Merda! Eu preocupado em não passar uma ideia de que te usei para limpar a minha barra com o meu pai. Parece que estou reabrindo feridas, não é?
- Relaxe; isso não é culpa sua.
- Me perdoa, Benjamim!
- Você já tá perdoado; já disse, relaxe, não foi nada, eu também não tinha esperanças de que isso não passasse de sexo.
- Mas eu gostei muito de ficar com você.
- Não vai faltar gatões pra você, mas vê se se cuida, hein? Juízo, hein? - foi a partir daqui que eu comecei a me despedir das pessoas dizendo juízo hein?
- Pode deixar; mas você não vai mesmo ficar com raiva, né?
- Não, garoto; já disse, relaxa. - passando a mão no cabelo dele, bagunçando.
- Ok. Quero que saiba que não vou te esquecer .
O Érique não me fez falta.
Nunca senti nada forte por ele. Era mais sexo mesmo. Fazia tanto tempo que não me envolvia com alguém que acabou por ser somente um momento pra extravasar os sentimentos reprimidos.
Durante algum tempo, nunca mais ouvi falar nele.
Teve um tempo, no bairro em que eu morava, que a coisa estava ficando esquisita. Um grupo criminoso estava marcando umas casas e invadiam-nas depois.
Fiquei com muito medo porque morava sozinho e a casa era bem vulnerável a qualquer tipo de assalto.
- Vem morar comigo e com a Ana. - o Vagner.
- Como assim?
- Eu ia te contar, mas não tivemos tempo.
- Vocês vão morar sós?
- É; decidimos essa semana.
- Por que às pressas?
- Ah, a gente já está junto há três anos; a gente se gosta e o pai dela tá querendo se livrar logo dela e tá ajudando, dando apoio.
- Haha... É, pois é, menos despesas pra ele, né?
- A gente já deu entrada em um apê, na orla.
- Poxa! Tá podendo, hein?
- É bom ter sogro assim.
- Aproveita, não se sabe quando é que essa doença vai passar.
- Haha... e você vem com a gente.
- Você sabe que eu odeio ser inconveniente.
- Mas você é de casa já, não teremos pudores de transar na sua frente, só se você ficar com frescuras
- Haha... palhaço!
- E então?
- A Ana, o que ela acha?
- Ela vai concordar, com certeza .
Fomos morar juntos.
Foi uma folia só. Nunca tinha estado tão feliz desde que tudo aconteceu.
Éramos como irmãos... eu, Vagner e Ana. Muitas vezes dormimos todos juntos, na mesma cama, cheios de pipoca doce nos cobertores.
A gente fazia questão de passar a impressão de que rolava umas
senvergonhices entre a gente para os condôminos. Era só diversão!
Por um tempo foi assim. Mas ficamos cada dia mais sobrecarregados e começamos a estagiar e quase não parávamos em casa.
Não que a amizade tenha se desgastado, pelo contrário, ficou mais forte com a convivência diária. Éramos uma família. A família que nunca tive.
O ano de 2003 passou sem grandes novidades depois dessa mudança. Então vamos para 2004, que também começava sem novidades.
Era meu último ano na faculdade - eu imaginava que era né? Nem previa essa correria que sofro hoje.
Deixei de trabalhar no Giordano por conta do estágio, mas saí de lá com as portas abertas para uma possível volta.
Às vezes eu recebia ligações do Érique, mas eu não saía com ele. Não queria perder meu tempo em jogos de sedução ou coisa do tipo. Ou era firme ou não era. Até porque eu descobri um tempo depois que o Érique tinha um namorado desde o período que ele começou a trabalhar no restaurante, mas me escondia pra poder me usar direitinho no plano dele pra se livrar do trampo.
Não fiquei com raiva dele, até porque, como já disse, não sentia nada por ele, logo, não me feriu.
Do Henrique não soube de mais nada; só que ele provavelmente estava fazendo especialização de neurologia, porque era o que ele me falava quando estávamos juntos e que ele deveria estar com a namorada ainda.
Desde a ligação, ele não tinha mais me procurado, e também, eu, finalmente, tinha trocado o celular por um menor - kk.
O Vagner e a Ana ficaram noivos e me convidaram para ser padrinho. Fiquei tão feliz, mas, em relação ao Henrique, eu sentia que me afastava cada dia mais daquele sentimento fugaz. Eu não sentia mais aquele calor, mas ainda pensava nele todos os dias, como penso até hoje.
Na verdade, hoje mais do que nunca!
A minha turma pretendeu não fazer formatura. Ao invés de festas e formalidades, preferimos nos curtir nesse pouco tempo que agora nos restava pra nos ver.
A nossa turma ficou taxada de ser muito unida, ao contrário das outras da faculdade. A gente realmente se gostava muito. Éramos cinquenta pessoas e nunca houve uma briga grave ou um racha na turma.
Claro que tinha os grupinhos mais unidos, mas todos eram amigos de todos e, então, decidimos que queríamos compartilhar a nossa despedida de maneira digna. Porque, vamos falar sério, uma festa tão formal quanto uma formatura não nos dá a possibilidade de aproveitar o momento da maneira como queremos.
Tinha até muita gente que era apegada aos seus familiares e que preferiu, de livre e espontânea vontade, por não levar parentes ou amigos de fora da turma para uma viagem. Seríamos só nós cinquenta nesse avião.
E para onde fomos? Buenos Aires!
Muito legal.
Eu não lembro de nada da cidade porque fiquei bêbado a viagem toda e principalmente por eu que não ser de beber, acabei ficando bêbado logo.
Me arrisco a dizer que foi o meu primeiro porre de verdade. Uma semana de muita festa. Bons tempos!
Viajamos antes dos TCC's porque sabíamos que iríamos passar todos e foi até bom porque refrescou um pouco a cabeça de muitos de nós.
O Vagner arrumou um bom emprego na secretaria de educação e só firmava cada dia mais o compromisso com a Ana. Esse casamento saía mais cedo ou mais tarde.
O ano acaboucomeçava e em fevereiro, passei com média 9,254 no meu TCC. Mas muito antes de eu saber a minha nota, no dia da minha apresentação à banca, algo extraordinário aconteceu:
- Benjamim, tem uma senhora aí fora querendo falar com você. – a Ana.
- Quem é?
- Não faço a mínima, mas ela está te chamando lá fora.
Fomos eu e Ana pra fora do prédio de Serviço Social, em direção ao estacionamento.
Um carro bonito, na cor prata me aguardava.
- D. Edna? O que a senhora está fazendo aqui?
- Eu queria falar algo sério com você.
- Aham, entendi; depois a gente se fala Benjamim – a Ana e saiu de fininho.
- Será que você poderia entrar no carro pra gente ficar mais à vontade?
Eu estava em pânico. O que a mãe do Henrique queria comigo?
Há quanto tempo eu não tinha notícias do Henrique? Há quanto tempo eu imaginava como ele deveria estar, mas nada passava de suposições? Agora me aparece a mãe dele querendo falar sério comigo. O que poderia ser?
- Confesso que estou surpreso!
- Foi necessário - cabisbaixa.
- Aconteceu alguma coisa?
- Está para acontecer.
- O Henrique está bem?
Ela levantou a cabeça e começou a cair uma lágrima do olho dela enquanto olhava fixamente para mim. Gelei.
- Você sabe que ele está namorando com uma mulher, não sabe?
- Sei.
- E sabe também que isso não vai dar certo.
- Bem, disso quem sabe é o próprio Henrique.
- Sem hipocrisia, Benjamim; você sabe que isso não dura.
- Eu não sei de nada, eu só sei de mim.
- Ele é homossexual, ele não gosta de mulher, ele sente atração por homens, por você, para ser mais específica.
- Faz muito tempo que a gente nem se fala.
- Eu quero a sua ajuda, eu preciso da sua ajuda.
- O que está acontecendo?
- Eu estou desesperada, temendo que ele faça alguma besteira.
Nesse momento, ela se agarra à minha mão e a voz começa a ficar trêmula. Ela era visivelmente alguém que precisava de amparo naquele momento.
Comecei a ficar aflito, porque eu a adorava muito e não sabia o que fazer.
- Mas... que besteira... o que ele pode fazer?
Ela começou a chorar desesperadamente.
- BENJAMIM, ELE ESTÁ NOIVO!
- Noivo? - falei bem baixinho.
- NOIVO, ELE ESTÁ NOIVO DAQUELA VADIA!
- A senhora não aprova esse relacionamento?
- Hã? Claro que não, Benjamim. Você sabe melhor do que eu que ele não vai ser feliz com essa união.
- O que a Senhora quer que eu faça?
- Impeça, Benjamim; não deixe que ele se case.
- Eu?
- Eu já falei com ele, conversei, briguei, mas nada adianta; só você pode impedi-lo.
- Mas... Ele escolheu isso.
- Escolha errada. Por favor, não deixe que ele se case, peça pra voltar pra ele!
- A senhora sabe por que a gente terminou?
- Não interessa, por favor, Benjamim!
- Interessa sim. Ele me trocou por ela.
- Não acredito nisso!
- Pois acredite.
- E o que deu nele?
- Se ele não contou, eu também não conto; isso é obrigação dele, é justo que ele fale.
- Mas isso não interessa agora.
- Mas foi justamente isso que nos manteve separados.
- Ele se casa no mês que vem; na verdade daqui a três semanas.
- Não sei como posso ajudar.
- Sabe sim; ligue pra ele, ou melhor, vamos lá em casa agora e a gente fala com ele. - já rodando a chave no painel do carro.
- NÃO, EU TENHO O MEU TCC PRA APRESENTAR AGORA!
- Tá, eu espero você e depois vamos, tá?
- Não, eu não vou.
- Por quê?
- Porque não devo ir.
- Mas Benjamim, ele vai fazer a maior besteira da vida dele! Se você visse como ele chega em casa depois que ele deixa a cachorra em casa.
Ele chora às vezes... Tem dias que ela liga lá pra casa, porque o celular dele está desligado de propósito e ele me pede pra dizer que não está, que saiu, que está dormindo.
- Não há possibilidades de a gente voltar.
- Mas... mas... Benjamim...
- Ah, D. Edna... ele que preferiu assim.
- Ele não sabe o que tá fazendo. Desde que vocês terminaram, ele está triste pelos cantos. Ele não estuda direito, não vai mais pra academia, engordou um pouco, está um trapo. É óbvio que ele sente a sua falta.
- Ele me ligou faz um tempão e disse que queria a minha amizade.
- Ele não quer dar o braço a torcer, mas sabemos os quanto ele gosta de você, não é?
- Não sei...
- Sabe, Benjamim... não se faça de desentendido; não está vendo que isso é sério?
- Eu fui tão prejudicado quanto ele, ou mais.
- Mas ele vai fazer uma besteira e o seu caso é diferente, você não perdeu nada, só ganhou.
- A senhora acha justo o que ele me fez?
- O que ele te fez?
- Ele terminou comigo da primeira vez porque tinha vergonha de namorar um garçom. Da segunda vez foi por causa da Débora. Ele veio com um papo de que médicos não têm credibilidade quando se sabem que eles são gays e me propôs ser o amante dele. Ele ia me manter no apartamento ao bel prazer dele... isso é justo?
Ela ficou escutando cada palavra como se não acreditasse, como se não reconhecesse o próprio filho nas ações que eu estava descrevendo. Ela franziu a testa e analisou cada detalhe do meu discurso.
- Eu não sabia disso!
- Pois é, mas foi o que aconteceu.
- Sabe Benjamim, no estado em que ele se encontra, ele abandona essa ideia rapidinho. Ele está visivelmente pedindo ajuda, pedindo amparo, um carinho, um apoio, qualquer coisa. Ele só precisa de força pra largar tudo isso e só você pode dar essa força. Se você pedir pra voltar, nem precisa implorar ou pedir duas vezes... só de te ver frente a frente ele já vai sentir a falta que você faz. Será que eu não estou conseguindo passar pra você o estado deplorável em que ele se encontra agora? Ele está sucumbindo em si mesmo. Ele não vive mais, Benjamim... Me ajude!
- Olha Dona Edna, o que o Henrique fez comigo não se faz. Ele brincou comigo, me fez destruir algo que há anos que eu mantinha e tinha planejado manter; agora estou numa vida um pouco sem rumo por causa dele e hoje percebo que ele não me pedia pra assumir porque era bom pra mim e sim porque era bom pra ele. A gente se via pouco porque tínhamos que ter precaução nesses encontros e muitas vezes não nos encontrávamos por isso. O que ele queria era me ver mais e só poderia me ver com frequência se eu não tivesse pedras no caminho. E o que ele me fez depois?
- É; eu tenho que admitir que o que o Henrique fez não está certo, mas se ele não teve responsabilidade com quem ele amava, você não precisa se comportar da mesma maneira que ele, pelo contrário, você deve mostrar pra ele que, ao contrário dele, você tem responsabilidade.
- Agora é tarde pra isso .
- Nunca é tarde, Benjamim; pense nisso.
- Já pensei e já decidi. Se ele não quiser casar com ela, que faça isso por si mesmo.
- Não seja egoísta como ele foi.
- Não é egoísmo... é amor-próprio mesmo.
- Vem comigo, Benjamim; faça isso por você.
- Não sei se vale a pena ainda.
- Você não o ama mais?Você não o ama mais! - conformada - Foi perda de tempo vir aqui e achar que você poderia me ajudar, que você poderia salvar o Henrique. Existe amor-próprio em jogo sim, mas amor-próprio não impede de você exercer a solidariedade. Se você visse o Henrique hoje, você me entenderia, me daria razão pelo desespero. Mas foi um erro... Esqueça que eu vim aqui e siga a sua vida e deixe que o Henrique ferre com o pouco de vida que lhe restou.
- Sinto muito, Dona Edna, mas não posso fazer nada.
Saí do carro com um aperto no coração. Muito mais pela Dona Edna que pelo Henrique.
Ela estava desesperada, estava suplicando ajuda. Ainda pensei em voltar atrás, mas o orgulho foi maior.
Até o último momento em que eu e o Henrique nos encontramos, - via telefone - ele não me queria de outra forma senão pelo esquema que ele esboçara. Isso não era nada justo comigo.
Depois daquela visita inesperada, meu coração balançou.
Ele ia mesmo cumprir o que me dissera: ele ia se casar com uma mulher e manter as aparências.
Do TCC, fui pra casa...
- Mas e aí? O que você pretende? Você vai lá falar com ele?
- Você acha que eu devo?
- Faz o que o seu coração quer.
O meu coração queria nunca ter se envolvido nessa enrascada, mas era tarde pra lamentar esses pormenores.
O que eu poderia fazer agora era esperar e ver no que ia dar.
Eu não iria atrás. Não mesmo!
Podem me achar egoísta e orgulhoso demais, mas eu não sou exigente, não sou arrogante, não sou mesquinho e muito menos ambicioso.
Nunca quis nada demais. Nunca pedi nada impossível, nunca sonhei grande. Eu só queria paz e sempre deixei que me pisassem. Mas as marcas dos sapatos do Henrique nas minhas costas ainda doíam.
Pensar no Henrique, era pensar em como a minha vida tinha mudado e que eu não tinha me dado bem no fim de tudo.
Ele sofria? Bem, eu também!
Eu escolhi sofrer assim? Não, não escolhi. Vivia assim por não ter escolha.
Ele podia dizer o mesmo? Se era difícil pra ele ser gay na nossa cidade, pra mim também era. Mas eu não escolhi assumir, isso me foi imposto e eu que arcasse com os prejuízos depois.
Ele pôde escolher! E como se não bastasse, ainda me fez de palhaço, de traído.
Isso é passado!
Pode ser, mas é um passado que batia na minha porta, me recordando do idiota que eu fui.
Se eu o amava?
Com toda a certeza.
Se eu o queria de volta?
Não tinha dúvida disso.
Mas, em 2006, pôde-se ouvir um "Sim", dito em cima de um altar. Um "Sim" que não era para mim...
Eu soube que ele tinha se casado, pela irmã dele, Zorah. Ela e a mãe, Dona Edna, concordavam com a não realização do casamento, apesar de ela ser mais tímida pra me falar isso abertamente.
- Benjamim?
- Oi, Zorah.
- O casamento é hoje.
- Sei, sei...
- Vai ser às vinte e uma a cerimônia.
- Hum.
- E aí?
- E aí o quê?
- Benjamim, vem pra cá! - falando baixinho, com medo de ser escutada.
- Mas... – interrompe.
- Benjamim, ele está aqui em casa, vai se arrumar e ir para a cerimônia daqui; ainda há tempo de você correr e vir pra cá.
- Zorah, - já chorando - eu não vou.
- Vem, Benjamim, vem!
- Não dá, Zorah, não dá.
- Aqui está tão tenso, porque todos nós sabemos que isso não vai dar certo, mas, mesmo assim, ninguém tem coragem de fazer nada. A única esperança que eu e os meus pais temos é você.
- Para, Zorah! Estou me sentindo culpado e sei que não sou. - chorando muito.
- Mas ninguém está te culpando de nada.
- Eu sei, mas sinto que sou.
- Então venha e acabe com essa agonia de vez.
Bem, eu não fui.
Fiquei tentando imaginar como todos estavam. Fiquei tentando imaginar como estavam se sentindo todos que sabiam que o Henrique era gay; a aflição da mãe dele que me implorou pra impedir que isso acontecesse, a agonia da irmã dele, os outros irmãos e o pai dele, Seu Henri, que sempre quis o melhor para o Henrique.
Enfim, todos deveriam estar sentindo como se estivessem levando-o para a forca e ninguém podia fazer nada.
E ele? Como deveria estar se sentindo?
Pelo que a Dona Edna tinha me falado sobre o Henrique dos últimos dias, ele estava um pouco mais gordo, mas não obeso e estava de barba e ele não gostava de barba, porque achava que ficava mais velho.
Ele deveria estar muito diferente fisicamente. Mas e por dentro?
Será que ele sentia o quanto ele estava se precipitando?
Em agosto de 2006 Henrique e Débora juraram amor eterno perante a sociedade que o Henrique tanto temia.
Não posso dizer como, mas eu vi uma foto do casamento. Eles tinham acabado de sair da cerimônia e estavam felizes. Pelo menos era o que a foto mostrava. Jovens, bonitos, inteligentes. Que futuro eles tinham pela frente! Isso deveria ser o que as pessoas pensavam naquele momento só de vê-los desse jeito.
Quando eu vi a foto, fui pra casa imediatamente. Me tranquei no quarto e sentei na cama. Nem sabia como reagir. Fiquei olhando fixamente para o chão, onde eu finquei os meus pés e não me permitia voar.
Depois de muitos minutos naquela posição, não aguentei... Chorei bastante, me joguei no travesseiro e comecei a abafar as lágrimas com ele. Como eu sempre fazia desde quando era um garoto adolescente.
O que foi que eu fiz? Por que deixei isso acontecer?
Desde então, ninguém mais me ligou da família dele ou manteve contato. Afinal, tudo estava selado.
Tarde demais!
Eu, às vezes, ficava na sala olhando para o telefone, esperando a mãe dele ligar ou a irmã, me implorando pra pedir pra voltar para ele... mas nada disso aconteceu.
Havia vezes que estávamos na sala, eu, Ana e o Vagner e quando eles viam que eu olhava para o telefone, eles tiravam ele da minha frente.
Uma vez o Vagner pôs ele na geladeira e uma outra vez ele me deu uma bronca. Disse que se eu olhasse para o telefone de novo, ele tiraria a linha telefônica de casa e esconderia o meu celular.
Esse foi o meu 2006. O pior reveillon da minha vida!
Todos queriam que eu fosse para uma casa de campo que a família da Ana tinha no interior. A festa ia ser boa, segundo eles. Até a minha mãe começou a sentir a minha falta e disse que precisávamos reatar, quebrar o muro que construímos entre nós, porque, afinal de contas, ainda somos mãe e filho. Dá pra acreditar nisso?
A minha família também me convidou pra passar o reveillon com eles, mas nada de eu querer.
O que eu queria era ficar em casa e dormir. Eu sempre achei um absurdo dormir durante um reveillon. Eu acordava os meus primos e até brigava com eles quando dormiam, porque eu realmente não gosto que durmam durante a passagem de ano, mas era o que eu queria fazer.
- VOCÊ VAI COM A GENTE, BENJAMIM, NÃO TEM ESCOLHA, NÃO!
- Mas Vagner...
- VAI PRA PORRA, BENJAMIM; VOCÊ NÃO VAI FICAR MAIS OLHANDO PRA ESSE TELEFONE, NÃO; VOCÊ VAI E TÁ DECIDIDO!
Sabe aquelas broncas que pai e mãe dão na gente e a gente sabe que é para o nosso bem e a gente fica sem ter como reagir? Tipo quando a gente se perde da mãe no shopping ou se afasta dela e ela fica desesperada procurando e quando a gente aparece ela fala "Nunca mais faça isso, ouviu?"
Mas não passa de uma bronca pra desabafar.
O Vagner tem o dom de fazer isso. Acabei indo para o campo, com a família da Ana. A bronca, na verdade, era para garantir a minha ida, porque o maluco do Vagner queria fazer uma surpresa pra Ana.
Ele pediu a mão dela em casamento quando deu meia-noite
Fiquei tão feliz por eles... e o Vagner me surpreendeu pela criatividade. Por um momento eu esqueci que provavelmente, à meia-noite, o Henrique deveria estar beijando a sua esposa.
Claro que esse pedido era pra confirmar o que ele já tinha feito. Mas mesmo assim foi ótimo.
Fiquei pensando depois no Henrique... e o pôr do sol não ajudou muito porque lembrou a minha primeira vez.
Pedi para o Vagner me deixar voltar pra casa e, mesmo ele insistindo para o padrinho dos noivos, eu, ficar, eu decidi ir.
Fui pra rodoviária esperar o primeiro ônibus pra capital e depois, dormir.
2007
Foi o ano em que eu me vi sem rumo.
Tudo o que viesse não mudaria o meu estado de tristeza. Pensei no Henrique o resto dos meus dias. Nem olhava mais para o telefone porque não tinha mais esperança de ouvir uma voz amistosa do outro lado da linha. Nem tinha mais esperanças de felicidade.
Decidi assumir que errei pra mim mesmo, que coloquei um "EU" que nunca existiu em mim, muito à tona, que falhei com o meu coração, que deixei me levar pelos meus ideais, deixei que alguém que precisava não só do meu amor, mas de ajuda – urgentemente - desgraçar a sua vida. Fiz isso por mim e agora a única coisa que eu tinha era eu mesmo, só que não foi como eu pensei que seria.
Dia dois de julho.
Eu ainda morava com o Vagner e a Ana, mas já estava querendo sair de lá, porque os dois iam se casar e eu não ia ficar lá alugando os dois, apesar de eles dizerem que não se importavam de eu estar lá.
Vou descrever esse dia: acordei umas seis, tomei banho rápido, me vesti formalmente, comi qualquer coisa na pressa, ouvi um "Boa sorte" do casal feliz e corri para o ponto de ônibus.
Cheguei em um prédio alto, dei meu nome para a atendente e ela disse, pelo telefone, que o Senhor Benjamim tinha chegado. Segundos depois, uma porta se abria e um senhor de uns cinquenta anos me convidava para entrar.
Fiz uma boa entrevista de emprego, mas as chances eram iguais para todos os candidatos. Saí de lá e fui para casa. Peguei o mesmo ônibus,
coincidentemente, e cheguei em meu lar. Subi as escadas, ansioso para dizer como tinha sido a entrevista e quando rodo a chave na fechadura da porta, a Ana corre em minha direção e diz em voz baixa e tensa:
- Adivinha quem esteve aqui procurando por você.
- Quem?
A chave que pousava na minha mão não teve nem tempo de ser guardada no bolso ou na estante da sala. A Ana logo veio a mim e revelou:
- Eu nem sei como te dizer quem..
- Tá, Haha... você me fala depois, deixa eu contar como foi a minha entrevista... - ela me interrompe.
- É sério, Benjamim; eu não sei como falar, mas tenho que falar. - séria e assustada.
- Tá, então desembucha!
Ana ficou apreensiva, suando frio. Ora me olhava nos olhos, ora abaixava a cabeça e dava meias-voltas na sala. Percebi que não era uma simples visita.
- Fala, Ana; tá me deixando nervoso.
- Foi o Henrique... Pronto, falei!
Fiquei algum tempo olhando a anunciadora da notícia de que o meu amor viera me procurar.
Os meus lábios estavam entreabertos e denunciavam a minha descrença em relação à novidade. O nome "Henrique" me apavorava.
"Ele? Me procurando? Não pode ser!" - pensei.
- Espera, deixa eu ver se entendi: você está falando que o Henrique, o Rique, o meu ex-namorado, ele... veio aqui?
- É.
- Mas, Haha – nervoso - ele nem sabia que a gente morava aqui, como ele? Enfim, ele veio e? Para de brincar Ana! – aflito.
- Não é brincadeira, meu amor, ele veio à sua procura.
- O Rique veio me procurar?
Fui andando em direção ao sofá e me desabei nele. Esfreguei as minhas mãos na testa, como se tivesse buscando forças psicológicas para digerir tal notícia.
- Pois é, Benjamim, ele veio aqui.
- E por que ele não me esperou? - sério, sóbrio.
- Ele tinha algo urgente para fazer e estava atrasado, mas disse que queria falar com você o quanto antes.
- O Rique. Ele veio me ver... O que será que ele quer? – lacrimejando.
- Ele vai te ligar.
- Você deu meu número a ele?
- Sim.
Me levantei do sofá, tirei o celular do bolso e o agarrei entre as minhas mãos. Fiquei olhando o visor do aparelho e não consegui largar.
- Você está bem, meu querido?
- Ana, - sem tirar os olhos do celular - como ele está?
- Ele estava bem assustado. Ele perguntava por você e olhava para todos os lados da sala. Mesmo depois de eu ter dito que você não estava, ele parecia procurar por você.
- Sei... - sem ainda acreditar em tudo o que ouvia.
- Ele olhou, olhou.. e viu esse porta retrato aqui óh. - ela foi em direção à estante de porta retratos e me trouxe um deles. Essa foto aqui.
Era uma foto em que estávamos eu, Ana e Vagner na praia. É uma foto linda, - adoro essa foto, representa uma vida para mim. - em que nós três estávamos deitados na areia. A Ana com a cabeça encostada no peito do Vagner e eu encostado no peito dela, como uma escadinha.
Como eu estava mais perto da câmera, saí mais nitidamente na foto e a luz do sol também ajudou um pouco para que a foto tivesse saído tão bonita.
Eu peguei o porta retrato e fiquei tentando imaginar o que o Henrique estaria pensando ao ver a foto.
- E aparentemente, ele está bem?
- Ah, não sei, Benjamim; ele parecia aflito, ele estava com umas olheiras profundas e ele tem a pele branquinha... já viu, né?
- Como será que ele está? Será que está bem?
- Ah, acho que não, né? Senão, não teria procurado por você.
- Vou para o meu quarto, Ana. - fui com o celular e a foto nas mãos e falei sem tirar os olhos dos objetos que eu segurava.
- Você está bem, Benjamim? Isso te abalou um pouco, você não prefere ficar comigo? Quer conversar?
- Não... só quero esperar.
- Ok.
Fui para o quarto, tirei os sapatos e a camisa. Deitei na cama de calça e meias. Pus o porta-retrato no criado mudo e o celular mantive agarrado entre os dedos. Me deitei de conchinha, em posição fetal. Olhava para o celular esperando segundo a segundo. "Toca telefone, toca vai!".
Fiquei na cama, apertando o celular com a minha mão e olhando fixamente para o visor. Nunca alguns minutos foram tão longos. Demorou uns quinze minutos para o celular tocar, mas pareciam três horas. Meu corpo tremia só com a ideia de ele ter ido me procurar. Não conseguia imaginar o Henrique me ligando.
Ouvir a voz dele outra vez, sentir a sua respiração através do telefone; ouvi-lo chamar o meu nome. Ah! Por que a gente tem que agir dessa forma? Por que deixamos que o mundo e a sua moralidade nos convença de que estamos sempre errados? Por que um trabalho digno como garçom acaba com um amor tão grande? Por que ter outro tipo de identidade sexual - coisa da qual não escolhemos - nos maltrata e nos faz sofrer, estragando toda uma vida? Por que temos que agradar os outros antes de nós mesmos e quando nos agradamos é sob uma ótica totalmente distorcida? Por que não podemos ser felizes e ponto?
Quando o celular finalmente tocou, tomei um susto enorme. Na euforia, joguei o celular, quando vibrou, no chão. Ele se partiu em três pedaços: carcaça, bateria e tampa. Me desesperei. Achei que a partir dali, tudo estava acabado. O único elo que eu poderia ter com o homem da minha vida tinha sido quebrado por causa de um movimento estúpido. Soltei um grito e Ana veio imediatamente.
- O que foi menino? O que aconteceu?
- MEU CELULAR, ANA, QUEBROU E AGORA? E AGORA? - desesperado.
- Calma, ele só abriu.
- NÃO, ELE QUEBROU, ELE QUEBROU, E AGORA? O HENRIQUE VAI ME ESQUECER PRA SEMPRE, ELE NUNCA MAIS VAI QUERER ME VER, POR QUE EU TINHA QUE TER JOGADO O CELULAR, POR QUÊ?
- Por que você jogou?
- PORQUE EU ME ASSUSTEI QUANDO ELE VIBROU NA MINHA MÃO.
- Haha... relaxa, eu vou consertar seu celular... Viu? tá funcionando, fique calmo.
- E se ele não ligar?
- Ele vai ligar, ele não viria à toa; ele não pediria o seu número à toa, ele não te ama à toa.
A Ana saiu e me deixou esperando a ligação.
O celular finalmente tocou e eu fiquei olhando o visor brilhando. "Devo atender?", pensei.
Por que eu pensei nisso, não sei, mas foi angustiante.
Quanto tempo a gente não se falava e de repente... Bem, eu atendi.
- Alô!Alôôôô!Henrique?
- OiBenjamim?
- OiVocê veio me ver.
- Pois é.
- Como descobriu o meu endereço?
- Procurei o Vagner e ele me disse.
- Ele não falou nada pra mim.
- Pedi que não contasse.
- Hum...
- Como você está?
- Bem, e você?
Quando os meus lábios se fecharam, ouvi o Henrique chorando. Era como se aquela pergunta o tivesse feito mal. Eu não estava bem, mas respondi que estava, instantaneamente, mas o Henrique...
Ele não estava nada bem e começou a chorar intensamente do outro lado da linha.
Sabe quando alguém diz por MSN, Orkut, e-mail, Face, carta - se é que alguém ainda manda carta - ou telefone, que não está bem, que está deprê, down... e a única coisa que você quer é correr até essa pessoa, abraçá-la e dizer que tudo vai ficar bem?
Tripliquem isso, multiplique por infinito e somem com a eternidade. Pois bem, foi isso o que eu senti ao ouvi-lo chorar e eu nem estava perto para abraçá-lo e dizer palavras de conforto.
Comecei a chorar junto com ele.
Aquelas lágrimas não caíam só por causa do momento. Eram seis anos e meio que havia se passado desde que eu entrara no hospital e por alguns segundos vi um médico me olhando. Seis meses de um amor intenso que não cessava mesmo passando por problemas, tempestades, brigas, burrices. - humanas.
Era amor o que sentíamos um pelo outro e se havia dúvidas, aquelas lágrimas que deslizavam pelas teclas do celular trataram de solucioná-las.
Seis anos e meio.
O choro do Henrique parecia o de uma criança. Ele pedia ajuda sem mesmo dizer com palavras. Eu o tinha abandonado. Já ouviram essa frase:
"Me ame quando eu menos merecer porque é quando mais preciso"?
Eu tinha ouvido, ou melhor, lido uns dias antes dessa ligação e ela tinha me feito muito mal. Tentei parar de chorar para poder atender bem ao Henrique.
- Não chore, meu amor, tudo vai ficar bem!
- Você me chamou de amor.
E voltou a chorar desesperadamente.
Seis anos e meio!
- Calma, calma, fale comigo, por favor!
- B, se eu arrumar um jeito de me separar da Débora, você volta comigo?
- Hã? Não entendi.
- SÓ RESPONDE, B; SE EU ME SEPARAR, VOCÊ VOLTA PRA MIM?
- Mas... espera, está tudo muito rápido, eu estou sem palavras.
- E eu já não vivo mais; só diz sim ou não. Você volta pra mim?
Eu queria ouvir aquilo há muito tempo, eu só não sabia o que fazer, o que dizer, como reagir... entrei em pânico.
- Henrique, eu... - interrompe.
- VOCÊ AINDA ME AMA? - chorando loucamente.
- O quê?
- SÓ RESPONDE, B; VOCÊ ME AMA?
- Amo, amo sim. - interrompe de novo.
- Então volta pra mim.
- Eu quero você mais que tudo.
- Então volta pra mim, eu deixo tudo por você, você me diz o que fazer e eu farei, eu só quero viver em paz com você, me deixa te fazer feliz, me deixa cumprir o que eu te prometi na nossa primeira vez, você lembra?
- Você disse que iria me fazer feliz...
- Pois é, me deixa cumprir isso?
- Rique!
Agora era eu quem chorava como um bebê. E estou chorando agora só de escrever e lembrar de novo!
- Eu estou indo aí, me espera!
Ele desligou e eu corri para o travesseiro e recomecei a chorar. Nada podia me conter naquele momento, eu estava chorando muito.
Eu me revirava na cama, chorava, berrava, gritava. Joguei o lençol no chão... Enlouqueci.
A Ana veio me socorrer e me arrastou pra sala. Foi na cozinha e me deu um copo com água. Eu bebi, mas vomitei tudo o que eu tinha comido naquele dia. Ela foi pegar uma toalha e me limpar. Ficava perguntando o que ele tinha me dito.
- Ele maltratou você de novo?
- Não, ele disse que está vindo me ver.
- Hã? E isso não é bom? Por que você está assim?
- Eu estou desesperado, ele vem Ana, ele vem!
O interfone tocou e eu corri pra atender, mas a Ana pegou primeiro, pois naquele estado eu não ia falar coisa com coisa.
- Ele tá subindo.
- E agora? E AGORA? O QUE EU FAÇO? Ai, ai, ai... o que eu faço, Ana?
- CALMA, BENJAMIM, CALMA, SENTE AQUI NO SOFÁ.
Ela me levou para o sofá, mas quando a campainha tocou, eu corri pra abrir a porta.
Eu abri a porta e ele estava lá. Paralisei. Ele estava com os olhos vermelhos e estava estático também.
Ficamos um tempo olhando um para o outro; acho que um pouco mais de um minuto - imaginem isso.
De repente, uma das mãos que estava atrás dele, reaparece com um ramalhete de rosas amarelas.
Acho que nunca contei isso aqui, mas são as minhas flores preferidas no mundo todo.
Aí eu não me contive; o agarrei junto ao meu corpo e ele deixou as flores caírem. Nos abraçamos tão forte que acho que fiquei alguns segundos sem respirar. Eu senti de novo o cheiro dele, a pele dele, o corpo dele.
Nada tinha mudado. Me disseram que ele tinha engordado, mas eu não percebi a diferença... até hoje estranho muito isso.
Eu senti a barba dele roçando no meu rosto e as mãos dele me apertando contra o seu tórax. Nos sufocamos naquele abraço. Choramos como nunca.
- Eu te amo, te amo, te amo, te amo, te amo, te amo, te amo, te amo, te amo, te amo, te amo, te amo, te amo, te amo, te amo, te amo, te amo, te amo!
- Riquee!
- Não me deixa ir embora nunca mais.
- Me perdoa por tudo.
- Não vou perdoar nada, não tem o que perdoar, eu é quem peço perdão.
- Não, seu bobo! Eu que te abandonei.