O Henrique pra mim ainda é um mistério, ou simplesmente é alguém previsível demais.
Ele é a pessoa mais amorosa que eu já conheci na vida.
Quando namorávamos de verdade, na época em que eu ainda não tinha assumido, ele me ligava todos os dias, me perguntava onde eu estava, com quem estava, se ia demorar pra chegar...
Eu nunca tive motivos para desconfiar da fidelidade dele porque ele tirava muito boas notas e quando não estava estudando, estávamos juntos.
Ele é possessivo e ama com intensidade.
Ora, se ele é tão impulsivo assim, imaginem quando relacionamos isso aos sentimentos mais intensos. Ele se dedicava para mim. Era o namorado perfeito. Mas viveu uma vida regrada demais. Desde de pequeno ele foi condicionado a agradar um sistema social hipócrita, coisa da qual até hoje ele nunca se desvinculou.
Entender o Henrique é fácil, ao mesmo tempo que é difícil.
Difícil porque quando você imagina que ele amadureceu, você se surpreende pelo quanto que ele é dependente do meio em que ele vive. É como se os objetivos dele não fossem dele, mas de outros e que ele sempre se obriga a executar.
Ele perde com isso porque deixa de lado o que realmente importa, ou pior, deixa de lado o que realmente ele ama e deseja pra seguir reto em uma linha não projetada por ele.
Fui pra casa e me deitei. Não chorei, só olhei para o teto do quarto, esperei o sono chegar e dormi.
[...]
- Quem é?
- Benjamim, telefone. - o Vagner.
- Hã?
- Acorda moleque; telefone!
- Hum?... hã?... tá, estou indo.
- O que foi? - o Vagner.
- Me dá uma carona pra casa do Henrique?
- O que foi?
- Só me leva, Vagner.
- Tá, vamos.
Foi um telefonema esquisito que me implicava em ir diretamente para a casa do Henrique o mais depressa possível.
- O que houve, Dona Edna? - perguntei.
- Eu não sei, ele está chorando faz um tempão e ele fica se batendo no rosto, eu estou preocupada, Benjamim.
- Vocês brigaram? - o pai dele.
- Brigamos.
- Eu até já sei o porquê... mas Benjamim, você tem que entender que... – interrompo.
- Eu entendo; entendo perfeitamente, por isso eu e ele terminamos, mas parece que ele não quer aceitar.
- Então, já que você entende o que se passa, convença-o a ir pra lá e ficar.
Me soou estranho aquele pedido.
Era como se alguém que soubesse do que realmente o fogo é feito, mas não se importasse em manipular água por perto. A mesma pessoa que me chateara com o papo de assumir era a mesma que me mostrava o quanto tudo tinha sido em vão.
Eu nunca consegui não gostar do Senhor Henri, por outro lado, nunca gostei daquele homem, amargurado e estúpido.
- Claro, falarei com ele. - com frieza.
Subimos as escadas e entramos no quarto dele. Encontramos o Henrique deitado na cama, em posição de conchinha e chorando com o rosto vermelho, alguns arranhões nas maças do rosto e um gemido infantil de dor.
Deu pena, mas eu ainda era a frieza naquele quarto.
- Você veio?
- Pra dizer que vá pra Londres.
- Veio pra isso? Me abandonar?
- É melhor pra você.
- Melhor pra mim? Desde quando?
- Henrique, lembra da nossa conversa? - o pai dele.
- Não quero saber, pai; será que o senhor não vê como é que eu fico longe do Benjamim? Quanta dor mais eu vou ter que sentir pra provar que isso é incorrigível?
Eu e o Seu Henri nos olhamos.
Eu estava mais frio que antes e não mais me sensibilizava com o drama do Henrique, pelo contrário, eu via alguém fraco, que teve todas as oportunidades que a vida pode proporcionar para que ele viesse a ser um homem de verdade e não aproveitou.
- Medicina sempre foi tudo o que você quis, muito antes de você me conhecer.
- Eu não aguento mais tudo isso! Saiam os dois e me deixem com ele... SAIAM!
Os pais dele saíram, eu me aproximei da cama e me sentei na beirada.
- Eu quero me matar, Benjamim. Viver não está mais valendo a pena pra mim. Pra que viver? E ainda vem você me anunciando a sentença de morte.
- Foi você quem quis assim. Eu disse desde de o início que eu te esperaria... - interrompe.
- Vem comigo!
- Não; ainda quero estudar, fazer a minha carreira.
- A minha carreira está feita, deixa que eu te guio.
- Eu ainda quero fazer arquitetura, lembra?
- Eu te sustento, é seguro e... convenhamos, a possibilidade de você se dar bem é muito menor que a minha. Eu sou o seu porto seguro.
- Não mais. Na verdade nunca foi, eu me iludi pensando que era.
- Você vai aguentar a nossa separação?
- Não sei.
- Não vai, Benjamim; aceite isso.
- Tá, aceito.
- Aceita? Jura?
- Aceito que eu não vou suportar essa separação, eu te amo demais, infelizmente, mas fazer o que, né? - irônico.
- Você me ama infelizmente?
- Infelizmente porque sou refém do seu desmazelo com a nossa união; você faz o que quer, cara; eu sei que você gosta de mim, sei do que você é capaz de fazer por mim, mas agora você não é mais um moleque, mas age como um e eu que me dane. Sou eu quem sofre as consequências das suas escolhas impulsivas. Eu que sofro, Henrique, em nome do seu bem estar, em nome da sua carreira, em nome da sua credibilidade enquanto médico, em nome do seu sobrenome. Eu faria um grande esforço por você se você merecesse, mas não merece e sabe por que eu não vou pra Londres com você? Porque você não me passa mais segurança; me sinto perdido ao seu lado, tudo se torna imprevisível e infelizmente, meu caro, agora eu quero mais, eu preciso de mais e eu vou correr atrás da minha formação acadêmica porque não sei até quando dura o seu amor e a sua boa vontade.
Ele ficou sem reação diante das minhas duras críticas.
Como ele iria negar tudo isso, ou retrucar?
Ele só baixou a cabeça de novo e ficou olhando para o chão.
- Henrique?
- Eu não presto... - uma voz muda.
- Quem disse isso?
- As minhas atitudes... eu não presto.
- Você tem sonhos que nutriu desde a adolescência e apesar de agora ser um homem, você ainda não os realizou. Faça o seguinte, realize os seus sonhos, satisfaça-se e depois veremos.
Dei um beijo frio no rosto dele e fui saindo da cama, quando uma mão rígida e ao mesmo tempo macia me segurou.
- Espera... você tem mesmo que ir? Eu sei, mas se despeça decentemente...
- Hã?
Ele se levantou da cama e me beijou. Ele me abraçou pela cintura, me apertou firme, mas ainda com carinho.
A língua foi se aconchegando dentro da minha boca e selamos um beijo gostoso. As carícias me faziam lembrar das nossas primeiras vezes, tão cheias de paixão e medo juvenil.
Nunca senti o amor dele tão vivo!
Nos beijamos e depois nos olhamos nos olhos e não havia lágrimas, só a constatação de que tudo estava desgastado.
Havia acabado de verdade.
Suspirei fundo, dei um sorriso para um rosto vermelho e carente daquele neurologista e saí. Peguei um ônibus e fui pensando em tudo o que acontecera naquele quarto... em cada gesto, cada ponte comunicativa. Tudo era expressão de um único sentimento: desde o beijo até a respiração banal.
Cheguei em casa e estava cansado... Estranho, não?
- Pela sua cara... - o Vagner.
- Acabou.
- Quem sabe não foi melhor?
- Não foi.
- Por quê?
- Porque eu acabo de receber a maior prova de amor que alguém poderia me dar.
- Hã? Não entendi.
Era a maior prova de amor que o Henrique me dava até então.
Para quem não entendeu, é bem simples: ele assumia diante de mim, com gestos e palavras, todos os seus erros e me deixava livre para seguir o meu caminho, primeiro porque eu estava certo e segundo porque era o justo e mesmo que ele não se beneficiasse desse ato, foi o que ele fez.
Senti a dor que ele sentiu ao me deixar partir.
Sim, era eu quem partia, apesar de ser ele quem ia para fora do país. Era eu quem caminhava para frente enquanto ele ainda andava em círculos. Vez ou outra era isso o que ele fazia: retornava ao erro.
Uma despedida nebulosa, para não qualificar de outra forma mais agressiva.
O que me bastava era seguir para frente, mesmo não sabendo exatamente para onde. Não é estranho? Henrique e eu sabíamos que quem mais amadurecera foi eu, no entanto, ele tinha certeza do seu destino, enquanto eu não fazia ideia de onde dirigir os meus próximos passos.
Vai ver que a maturidade está justamente aí.
Henrique seguia para um destino seguro, prescrito anteriormente por ele e por seus pais, ou seja, ele não enfrentaria maiores tremores.
Eu, no entanto, seguia para o nada, tremendo de medo.
Duas semanas (se não me engano) depois, ele partia.
- É o Henrique; vai atender? - o Vagner.
- Pergunta o que ele querEle está no aeroporto e quer saber se você vai lá se despedir.
- Não, já nos despedimos antes.
Realmente não havia necessidade de eu ir para o aeroporto, porque nada de mais seria acrescentado.
E sinceramente, não gostaria de vê-lo desistindo da viagem por minha causa. Isso só aumentaria a minha insegurança em relação a ele, já que eu presenciaria uma ação volúvel e isso me desestimularia.
Melhor não ir...
- Só diga que eu desejo boa sorteEle disse que gostaria de falar com você, nem que seja pelo telefone.
- Diga a ele que é melhor não. Que tudo o que deveria ser dito já foi dito.
- Tem certeza?
- Nunca tive tanta.
E tinha mesmo!
Enfim, passada as horas, Henrique se encontrava além do Atlântico. Ele ainda ligara de novo de sua nova casa, mas eu recusava a falar com ele e continuava desejando boa sorte.
No dia seguinte ele ligou de novo e mais uma vez eu disse não.
Não chorei por uma semana, até que um belo dia, escutando uma música chamada "Atlantic", de uma banda inglesa chamada Keane, eu me transbordei em lágrimas.
Coincidências à parte, a música me deixava vulnerável aos pensamentos sobre o homem que eu amava. "An empty house is not a home... I dont wanna be old and sleep alone...".
Cara, como eu me identificava com a letra! Até um pouco de cunho social essa música carrega.
Eu ainda devo tanto a essa música (aguardem!).
Passou um mês desde de sua partida e eu só escutava Keane. Comprei o CD e vez ou outra eu via o clip deprimente dessa música.
Ele ainda ligara mais algumas vezes, pedira à sua irmã que viesse falar comigo.
- Mas, entenda; nada há o que se falar. Ele tem alguma novidade significativa pra mim? Até onde eu escutei por você, a única coisa que ele quer saber é o porquê de eu o estar evitando e isso ele já sabe. Se ele quer saber se eu estou solteiro, diga a ele que sim, não estou num momento bom para relacionamentos, por mais relâmpagos que eles sejam.
Diga que estou bem e diga que eu desejo-lhe sorte.
No fim do mês de outubro, eu estava em nervos por causa do vestibular. O resultado saía em menos de um mês e eu estava na lista dos aprovados. Não sei como, mas ele ficou sabendo e me parabenizou por meio de um scrap no Orkut e por um e-mail. Mandou um ramalhete de rosas amarelas, as minhas flores favoritas em todo o mundo, com um cartãozinho muito fofo onde ele dizia que nunca esqueceria daquele que o fizera ver que ainda era um simples garoto, apesar de eu ser mais novo, que me amaria pela eternidade, mesmo que esse período de tempo não existisse.
Percebi que ele estava muito maduro através dos recados românticos. Estavam diferentes dos que eu costumava receber.
Mas continuei frio e a única coisa que ele ouvia de mim, ou lia em e-mails era "boa sorte!".
O meu aniversário chegou e era fim de semana.
- Ei, Vagner; vamos para alguma cidade do interior?
- Mas os amigos estão todos aqui, sua família também.
- Eu quero passar o meu aniversário em outro lugar que não seja nessa cidade.
- Por quê?
- Porque sim, oras!
- Vagner, você não percebe que ele tem medo de que o Henrique venha vê-lo? - a Ana falou.
- Mas o cara está em outro país...
- Mas é fim de semana, ele pode vir só por causa do aniversário do Benjamim.
- E é ruim que ele venha? Mostra que o cara tá afim de coisa séria.
- Aff, Vagner! Você não entende nada mesmo. Eu vou evitá-lo até quando puder, senão, não sei se tenho forças pra resistir.
- E você quer resistir por quê? Deixa de ser besta!
- Esqueça! Vamos ou não?
Não fomos.
Mas também não fiquei dando mole para o acaso. Fui pra casa da minha mãe que já tinha se mudado e que o Henrique não sabia para onde.
Eu queria evitá-lo mais que tudo.
No MSN eu entrava sempre off-line, dizia a todos que estavam on-line que eu estava na área e ficava na minha.
Por muitas vezes vi o buddy do Henrique verde, ora ocupado, ora ausente, mas sempre on-line.
Uma vez eu pus no meu blog que tinha acabado de ler "1984", do escritor inglês George Orwell e fazia uma espécie de crítica positiva ao livro. No dia seguinte, ele colocou no subnick do MSN que estava começando a ler o mesmo livro e que já estava gostando muito porque lembrava "um certo alguém que estava distante dos olhos...".
"E perto de onde?" foi o que eu pensei quando li.
Fiquei emocionado porque o resto da frase era, obviamente, perto do coração, mesmo que ele não tivesse escrito isso.
O reveillon chegou e enquanto os casais recitavam votos de amor eterno na beira do mar, aquele mesmo mar que presenciara a minha vida de amante, eu estava de branco, com uma garrafa de espumante, bêbado e choroso.
O meu celular estava entupido de ligações não atendidas... "Ah, que se dane!", pensei num momento de fraqueza, mas ao começar a discar os números, percebi que não sabia o código de área que precedia o número dele e desisti do telefonema.
Nos últimos dias de janeiro de 2008 começavam as minhas aulas. Mais uma vez recebi um e-mail e um depoimento dele que desejava boa sorte nos estudos e finalizava assumindo a saudade que ele sentia e que estava triste com o meu afastamento, apesar de ter plena consciência de que eu tinha razão.
Eu criei um outro Orkut, fake, só para poder entrar no dele e vigiá-lo.
Não havia indícios de outra pessoa na vida dele, pelo contrário, o perfil dele estava cheio de pequenas poesias ou textos nostálgicos de alguém que ama e não é correspondido... e no fim de tudo tinha um "I love you...yet" (Eu amo você...ainda).
Nos álbuns, fotos com companheiros de turma, da família, mas tinha um álbum de apenas uma foto, que não era exatamente uma foto, mas uma imagem de rosas amarelas com a poesia "Um quarto de hora" que eu havia escrito pra ele.
Encontrei com a mãe dele por acaso no supermercado, certo dia.
- Benjamim, você por aqui?
- Oi, Dona Edna, tudo bom?
- Tudo e você?
- Bem também.
- Está conseguindo dar conta de duas faculdades?
- Aham, pode sossegar.
- Eita menino de ouro, é o genro que toda sogra quer.
Ficamos vermelhos porque ela dissera isso na pura inocência. Foi constrangedor.
- Haha... êh vida!
- Eu disse sem querer, desculpe!
- Tudo bem, foi um elogio.
- Pois é, rapaz... Quando é que você vai ligar pra ele?
- Não estamos mais juntos.
- Mas e se ele voltasse?
- Não voltará.
- Está tão seguro disso.
- Uai, Senhor Henri mesmo que disse.
- Mas quem decide isso é o Henrique.
- Quando o Henrique decidir algo na vida por ele, eu saberei que ele mudou.
Não sei se ela tomou como ofensa, mas estava na cara dela que eu, sem querer, fizera uma crítica ao fato do Henrique ser mimado demais.
- Desculpe, eu não quis ofender.
- Eu sei que você está certo. Às vezes nós pais achamos que estamos protegendo e na verdade estamos estragando e a forma de tentar reverter isso é aplicando mais regras, ou seja, grande engano. Mas me diga: não sente falta dele?
A minha resposta, seja positiva ou negativa, iria parar nos ouvidos do Henrique.
Não sabia o que responder.
- Eu estou tentando viver por mim mesmo.
- E o que isso quer dizer?
- Quer dizer que estou bem mais autossuficiente que antes.
- Mas isso não responde a minha pergunta.
Já podia ouvi-la dizendo ao Henrique por telefone: "Ele não disse que sim, mas também não disse que não, ou seja, ele ainda sente saudades".
A minha tristeza tinha chegado a um ponto que eu entrava todos os dias no Orkut dele pra rever as novas fotos, apesar de já ter salvo todas no meu computador e ler os recados.
Mas o perfil nunca mudava. A tristeza ultrapassou a barreira da racionalidade e passei a fazer uma poesia por dia.
Eu pensava em enviar algumas, mas acabava desistindo da ideia.
Um belo dia no MSN, eu entrei off-line, como era de costume, avisei aos amigos que estava lá e fiquei na minha.
Minutos depois uma vontade enorme de escutar "Atlantic" me bateu e eu apertei o play no Windows Media Player.
Para o meu azar, a função "Ativar o que eu estou ouvindo" estava sendo executada e apareceu para todo mundo ver que eu estava escutando Keane.
E ele também estava off-line, na certa esperando um descuido meu para me pegar on-line.
- B? Você está on-line, né? Nem adianta mentir, eu vi que você está escutando música.
Nem sabia que dava pra ver essas coisas quando se estava off-line, ou ele instalou um programa que permite isso... sei lá!
E agora, o que eu faço?
Eu simplesmente congelei diante do computador. Por algum tempo isso já tinha se tornado comum: entrar no MSN e vê-lo on-line, ou seja, saber que ele está ali e eu simplesmente ignorar, desligar o computador como se nada tivesse acontecido.
Nos primeiros dias é claro que foi difícil resistir, até trabalho da faculdade quando tinha e eu entrava no MSN e ele estava lá, eu nem conseguia começar.
Mas o tempo foi passando e me acostumei.
Nesse dia ele estava falando diretamente comigo pela primeira vez em meses.
Demorei a entender o que realmente estava acontecendo. Durante esse meu bloqueio mental, ele ainda falou: "Você tá aí, eu sei, fale comigo", "Benjamim, por favor, meu amor!" , "Eu estou com saudades", "Henrique [sobrenome] pediu sua atenção"...
- Olá.
- Aff, nem acredito que estou falando com você. - ligou a Cam.
- Nem eu. - respondi.
- Ai, nossa! Como você está? Liga a Cam pra eu te ver.
- Não tenho.
- Ah, que pena! Eu queria tento te falar.
- Fale.
- Mas não é algo específico... eu só queria te falar de amor.
- Hum.
- Não tem jeito, você é tão transparente que até pelas palavras do MSN dá pra perceber sua frieza.
- Esse sou eu.
- Não importa, estou tão feliz de te reencontrar!Ah... que foto linda! Tirou onde?
- Quando estava construindo o repertório de fotos da minha exposição.
- Ah, sim; sua exposição, foi legal?
- Como você soube da minha exposição?
- Ah... eu vejo o seu Orkut, falo com os seus amigos, pego informações com o pessoal que ainda tá na faculdade... essas coisas. O que eu não queria era perder o contato por mínimo que seja.
- Ah tá.
- Sim, mas a exposição foi boa?
- Foi legal; veio uma galera meio underground, mas foi legal sim. Na verdade essa foto eu tirei no mesmo layout que as fotos da exposição foram tiradas pra ficar no banner que apresenta o fotógrafo e fala sobre o que é mais ou menos a exposição e tals. Mas você sabe que é coisa de amador porque eu mesmo desconheço todas as técnicas de fotografia.
- Mas eu sou fã das suas fotos. Tem um monte delas no meu Orkut. Das que você tirou de mim; lembra daquelas que você tirou enquanto eu dormia?
- Lembro, a luz estava boa, na penumbra.
- Pois é. Ela é a do meu perfil do Orkut.
- Eu sei.
- Ah, então você também me visita?
- Às vezes.
- Então você não me esqueceuAh, deixa eu te mostrar Londres.
Aí ele pega a webcam, vai até a janela e me mostra a vista: ele direcionava a câmera em um lugar, apontava o dedo e dizia "aquela é a mercearia que a galera daqui da república faz a feira; ali é o pub que a gente vai nos sábados, o ruim é que nem dá pra ver a London Eye daqui, é muito longe e eu sei que você adora ver as fotos dela. E aqui é o meu quarto, óh, ali estão os livros, uma bagunça né? Minha cama, vê que está arrumadinha, nos trinqs!"
Ah, que bom eu não ter uma Cam!
Comecei a chorar desesperadamente. Eu podia vê-lo, ouvi-lo, sentir a felicidade que ele sentia e o mais irritante de tudo era ter lido as coisas que ele escrevia, dizendo que estava com saudades, que ainda me amava e que estava bem.
Eu não sei como explicar... vou tentar:
Eu sabia que ele me amava, que sentia falta, que queria estar ao meu lado e que, mesmo assim, ele estava sendo forte, resistindo a tudo isso, resistindo à distância e ao meu afastamento e seguindo a sua rotina normalmente.
Tudo isso acontecia e eu não estava com ele, não necessariamente em Londres, mas ao lado dele onde quer que fosse.
Eu não me arrependi de ter deixado ele ir, nem estava com vontade de estar lá. Eu só tinha saudades...
Mentira! Eu queria estar lá, sim, porque ele parecia muito empolgado com tudo, interessado em me mostrar o quanto estava bem e o quanto ele me amava.
A todo momento era o que ele fazia e enquanto eu só dizia "aham, hum, ah tá", ele contava da saudade.
Falava do frio e de que ele dormia num quarto sozinho, não dividia com ninguém porque a casa era grande e ele passava os fins de semana na casa do irmão.
E caramba, como ele estava lindo!
Estava vestindo uma camiseta branca com a logomarca da nossa
universidade antiga e de óculos.
Lindoo!
- Mas me fala de você.
- Acho que não tenho novidades pra você, quer dizer, novidades eu tenho, mas você já deve saber de todas.
- É verdade, eu sei que você voltou a estudar, tá fazendo duas agora, sei que você ainda está morando com o Vagner e a Ana. - ele listou tudo o que ele sabia - Faltou mais alguma coisa?
- Faltou eu dizer que você parece estar muito bem aí.
- Tô nada, só fachada!
- Não parece.
- A arte de disfarçar eu conheço melhor que você.
- Isso é verdade, se não fosse o seu pai, nunca que eu saberia que você estava indo embora pra sempre.
- Isso ainda não foi decidido.
- E mesmo que tivesse sido, de um jeito ou de outro eu nem sequer fui consultado. - falei triste.
- Você ainda tá chateado, né?
- Só confuso.
- A gente ainda vai sentar e conversar.
- Me conte você as novas... - mudando o assunto.
- Ah, nenhuma. - falou uma coisa ou outra.
- Hum, que legal.
- Eu estava mesmo querendo falar com você.
- Sobre?
- [...]
- Por que isso?
- Porque é o que eu quero e é o que a gente precisa no momento.
- Eu não preciso.
- Não? Na verdade, de nós dois você é o que mais precisa.
- É, tá na cara que você não está sabendo das novas sobre mim.
- Por que, você tá namorando?
- Não.
- Me conta essa história direito, B; tem outro já?
- Não.
- Então por que você tá negando a proposta?
- Porque acho descabida.
- Eu acho super necessária.
- Não sabia que a gente tinha voltado a namorar.
- Como assim?
- Como assim o quê?
Ele fez uma cara de quem não gostou nadinha, colocou a mão no queixo, fez uma cara de tristeza e:
- Você sempre colocando os seus entraves.
- Entraves? Tipo eu me mudando pra outro país sem dizer que ia ficar pra sempre? Acho que quem faz entraves aqui é você. - falei tudo de uma tacada só.
- Você disse que eu poderia vir, acabar o que eu tinha que fazer e depois veríamos.
- Primeiro, você não acabou o que você tem que fazer. Segundo, eu disse que a gente veria o que fazer, mas não disse que, necessariamente, voltaríamos e terceiro, é bem típico de você fazer a coisa errada, pedir de joelhos pra voltar e quando eu digo que não você age como se a culpa de tudo fosse minha. Por que você ainda é assim?
Aí ele fica olhando para o teclado e eu na expectativa de ler o que ele estava escrevendo.
De repente ele pega no mouse, olha pra tela do computador e do nada eu vejo: "Henrique saiu da conversa."
Fiquei sem entender.
Pela primeira vez ele fica zangado comigo desse jeito. Claro, tirando a vez que ele revidou o meu tapa.
Eu fico olhando para o computador, super triste, porque é a primeira conversa que temos em meses, desde que ele se mudou e acaba desse jeito.
Tudo bem, eu tenho a minha culpa porque comecei tudo, mas eu não sou de sentir uma coisa errada e deixá-la passando como se não fosse relevante.
Ainda tínhamos uma pendência e eu ainda tinha esperanças de a gente voltar, só que eu só voltaria se tudo estivesse acertado.
O Henrique e o seu gênio explosivo de simplesmente amar desesperadamente e esperar que tudo se resolva quando ele fala "Eu te amo"... e quase todo "Eu te amo" dele vem embutido implicitamente um "isso não é o bastante?".
"Não, Henrique, infelizmente não basta dizer que me ama; sinto muito".
Depois de ficar com cara de bobo em frente à tela, fui reler a nossa conversa e ficava lendo repetidas vezes a proposta que ele me fizera.
Eu a achava tão absurda, principalmente com o histórico que o nosso relacionamento carregava!
Desse dia em diante passei a entrar no MSN on-line, sem medo de ele vir falar comigo de novo. Até porque a conversa, apesar de ter terminado do jeito que terminou, me deu ânimo pra resolver logo esse problema que tínhamos e ficarmos juntos.
Mas o que me fez mudar de ideia mesmo quanto ao off-line foi a expressão no rosto do Henrique quando ele saiu da conversa: ele estava extremamente bravo. Muito fulo da vida. Se me contassem que logo depois de ele ter se desconectado, ele tivesse jogado o computador pela janela, eu não duvidaria.
Então, por achar que ele ficaria um bom tempo sem falar comigo, passei a ficar on-line.
Depois que fiquei on-line, um monte de gente que também ficava off-line começou a falar comigo nos dias que se seguiram.
Geralmente quando o pessoal me add no MSN, eu add sem me importar quem seja e um monte de gente que eu não conhecia passou a falar comigo.
Recebi um monte de cantadas.
Umas eram garotas que não sabiam de mim, mas que me achavam fofinho e carinhoso... e eu ficava sem graça porque não sabia o que dizer.
Outros eram carinhas que não sabiam que eu era gay, mas estavam arriscando. Depois eu percebi como essa prática é comum.
E outros sabiam de mim e diziam que sempre me admiraram, desde a época da escola, outros da época da faculdade, a primeira. Diziam que liam as minhas poesias, os meus textos, os meus mini contos, as críticas aos livros.
Outros diziam que adoravam os meus desenhos; outros diziam que adoravam as minhas fotos e outros simplesmente diziam que eu era gostoso, que os meus cachinhos me deixavam com um rostinho angelical de adolescente e que queriam me comer, me chupar, me fazer de escravo... nesses termos mesmo.
Fiquei surpreso com o número de pessoas que me conheciam.
Não sabia o quanto o pessoal da universidade tinha conhecimento sobre mim, dos mais diversos cursos, até mesmo da área de exatas.
Foi incrível!
Pela minha experiência em escrever e pelo fato de eu ter acabado de criar um blog, fui convidado por uma turma de primeiro período de jornalismo pra palestrar sobre blogs e de como nós jovens deixamos de usar os blogs como diários pessoais para escrever de fato sobre alguma área de interesse.
Seria em um auditório de um dos prédios da universidade. Eu fui todo adolescente (rsrs) pra lá. Usei uma calça jeans comum, um All Star, uma camiseta com uma foto da Marilin Monroe e óculos escuros dos anos 90.
Estava indo no ônibus e, em geral, os ônibus que param na universidade vão cheios de alunos. Na verdade tem mais alunos que outro tipo de passageiro e já no ônibus o povo ficava olhando e fuxicando sobre mim.
Comecei a ficar tímido, porque eu sou muito tímido, e fui relendo sobre o que eu iria falar lá na palestra.
Quando desço, percebo que todos os alunos que estavam no ônibus desceram no mesmo ponto e estavam quase que me seguindo.
Quando chego no auditório, estava cheio da molecada nova da universidade, calouros.
Foi tão estranho...
Me senti famoso, mas não tipo um popstar, mas como uma pessoa do underground da cidade, foi muito estranho!
Eu já estava na pilha, porque eu sempre fui discreto, reservado, não só sobre a minha sexualidade, mas sobre tudo na minha vida.
Acho que o fato de eu estar tão envolvido nos bilhões de problemas do Henrique e nos outros bilhões de problemas que esses problemas me causavam, e o fato de eu estar estudando como um louco, procurar emprego incessantemente, me impediram de ver isso.
A bem da verdade, eu já sacava uma movimentação bacana no blog, outras coisas estranhíssimas nas minhas exposições amadoras de fotografia e quando eu ia nos shows das bandas locais, tinha gente que me conhecia, mas que na verdade eu nunca vira na vida.
Um dos outros palestrantes me conhecia. Djalma, o nome dele.
- Mermão, pensei que não vinha mais, estava com medo de enfrentar essa pivetada sozinho.
- Haha... pois é, quanta gente novinha tem aqui agora, né?
- Ah, mas na nossa época também era assim, fala a verdade.
- É, mas eu não lembro de ser tão criançona assim, haha.
- Na verdade a gente era, mas é que a gente não percebe quando só tem bobagem na cabeça.
- Haha... pois é; e aí cara, trabalhando muito?
- Rapaz... estou trabalhando junto de um movimento social trabalhista e tals, ainda não abandonei o movimento estudantil.
- Ai, nem fala, como eu sinto falta da luta.
- Ah, é, eu também, por isso que muitos não saem daqui.
- Por acaso isso foi uma indireta pra mim? Haha...
- Haha... juro que fiz sem intenção, mas aposto que você já voltou pro movimento.
- Apostou certo. - falei feliz.
A palestra começou e eu e o Djalma ficamos papeando.
Éramos companheiros no movimento estudantil e quando o pessoal antigo do movimento se encontra, sai de baixo teias de aranha...
- Preparado pra enfrentar a turma do Xuxa Park?
- Não! - respondi meio apreensivo com o fato.
- Ah, mas tem que estar, porque você é a sensação desse evento.
- Hã?
Quando ele disse isso, chamaram meu nome para compor a mesa e nem deu tempo de ele contar o porquê de eu estar causando ali.
[...]
O garoto me chamou no canto. Ele era branquinho, olhos verdes, tinha uma carinha de menino, lisinho... Ele não era forte, nem magro.
Depois de todo o alvoroço, ele entrou numa fila de pessoas que queriam falar comigo, que queriam pedir algum e-mail para futuras palestras e encontros.
Quando chegou a vez dele, o garoto de cabelos lisos, franjinha e castanhos disse timidamente:
- É rapidinho, é muito urgente; posso te esperar no seu carro?
- Não tenho carro.
- Posso te esperar na saída, então?
- Ok, mas não quer ir adiantando o assunto?
Ele olhou para os lados, como se não quisesse que alguém ouvisse.
- Aqui não dá, tem que ser a sós! - sussurrou - Eu conheço alguém que você conhece.
Nem preciso dizer o quanto fiquei ansioso.
Ele me olhava como se tivesse uma coisa séria pra me falar. Fiquei pensando: ele deve conhecer alguém que sabe que eu sou gay e quer uma ajuda, sei lá...
Quando eu era adolescente era doido para conhecer um amigo gay de confiança pra contar e ter alguém com quem desabafar. Quem sabe não é isso...
Pela timidez dele e o jeito contido, como se não quisesse que alguém soubesse do que conversaríamos, achei isso.
Depois dos abraços, fotos, fui para fora e o esperei. Olhei para os lados e nada do garoto.
- Oi, Benjamim! - ele.
- Oi.
- Vamos pra lá? - apontou para uma árvore.
- Tá.
Ele foi na frente e eu o acompanhava logo atrás. Enquanto andávamos, comecei o interrogatório.