Esta história ocorreu há muito tempo e tem ocupado o meu pensamento por anos. Acho que nunca conseguirei esquecer os fatos insólitos que se deram naqueles dias. Esta é minha narração e deixo com o leitor dar credito ou não á veracidade das minhas palavras.
Nasci na Bahia porem me mudei muito cedo para o Pará, pois meu pai recebera uma proposta de emprego por lá. Nos mudamos, meus pais, eu e meu irmão. Infelizmente, após um ano, meu pai acabou falecendo num acidente de trabalho. Sem ele e com minha mãe costurando roupa pra ganhar sobrevivermos tive que começar a trabalhar cedo para trazer comida na nossa mesa. Como meu pai, aprendi a profissão de apanhador de açaí, ou peconheiro, subindo nas arvores altíssimas e tirando lá de cima das arvores o desejado fruto. Era difícil, mas com o tempo adquiri força e habilidade, ficando inclusive muito bom nisso. Quando meu irmão teve idade pra começar a me ajudar passamos a trabalhar juntos. Apesar de irmos bem no trabalho, minha mãe, muito sábia, nunca desprezou a nossa educação e fez questão de que fôssemos á escola. Aprender a ler e escrever, além de se tornar uma paixão, me ajudou tremendamente nos negócios.
Caímos nas graças de um fazendeiro local, enquanto fazíamos a colheita, e nos tornamos bons amigos. Anos depois esse mesmo homem, perto já da morte, nos presenteou com um pequeno caminhão velho, como mostra de gratidão e de amizade, já que também não tinha filhos. Aceitei a contragosto pois nem se colhesse todo o açaí da fazenda dele várias vezes poderia pagar por aquilo. Ele não me deixou recusar o presente.
Já crescidos e experientes no negócio eu e meu irmão começamos a nos apresentar nas fazendas a fim de colher açaí, trazendo com a gente no caminhão vários homens a procura de trabalho. Fechávamos negócio com o dono e partilhávamos com justiça o dinheiro ganho diariamente, que era baseado na quantidade de cestos colhidos. Alem disso, quando necessário, fazíamos o transporte de colheita o que também nos rendia um bom dinheiro.
Enfim, o caminhãozinho era muito útil e prosperamos no nosso negócio. Podíamos chegar em lugares distantes com facilidade (quando os rios não nos impedissem, logicamente) Inclusive pudemos escolher pessoas que de tanto viajarem conosco se tornaram praticamente colegas de trabalho.
Toda a história misteriosa começou quando estávamos numa cidade muito perto da fronteira com o estado de Amazonas, perto do rio Tapajós. Um fazendeiro, o mais rico da região, estava colhendo seu açaí e pelos relatos dos locais a área de plantio do homem era gigantesco. Prevendo bastante serviço (e bons ganhos) parti com o pessoal em direção a essa fazenda. Mas o caminho não foi nada fácil. Enquanto sacolejávamos pela estrada de terra irregular a mata ia se fechando cada vez mais e o calor úmido era sufocante. Finalmente avistamos um casarão bege que se destacava numa grande clareira. Passamos por uma ponte, com bastante receio devido sua precariedade, e estacionamos na frente da casa.
Um homem com uma vasta barba branca nos recebeu e era ele mesmo o dono. O nome dela era Joaquim. Bastante simpático (e esperto) ficou contente em saber que queríamos trabalhar por ali, atribuindo nossa chegada a uma resposta de oração que fizera.
- Estava com medo que minha plantação se perdesse. Temos provavelmente so mais uma ou duas semanas. Chegaram na hora certa.
Apesar de estar aparentemente tão necessitado não foi nada fácil negociar um valor de cesto que lhe parecesse aceitável. Ele fixara um valor e nunca o mudava, mas aceitou minha terceira proposta quando tendi a ir embora.
Acertados esses pormenores ele nos levou a umas casinhas modestas atrás do seu casarão onde nos ficaríamos hospedados. Fiquei positivamente surpreso pois nesse tipo de trabalho geralmente dormíamos embaixo das árvores ou no caminhão. Assim que escolhemos nossos quartos e deixamos nossos pertences lá, partimos para o trabalho.
O velho era realmente próspero e poucas vezes vira açaís tão bonitos e em tão grande quantidade. Nos primeiros dias recolhemos dezenas de cestos com os belíssimos frutos e os ganhos diários já estavam compensando nossa viagem. Como é de se esperar estavam todos num animo muito bom.
No quinto dia, enquanto eu colhia o açaí no topo de uma arvore nada simpática e de galhos frágeis fiquei distraído pensando nos futuros projetos e até na possibilidade de eu mesmo plantar açaí e virar produtor quando senti uma dor lancinante nas costas da minha mão. A dor foi tão intensa e repentina como um raio que quase desequilibrei e cai da árvore, o que seria meu fim. Com muita força de vontade e cerrando os dentes desci devagar para entender o que havia acontecido. Minha mão estava inchada e temi pelo pior. Meu irmão que ouvira meu urro de dor já estava do meu lado.
- O que foi que aconteceu?
- Algo me picou - respondi. Ele que era bem mais observador do que eu me tranquilizou..
- Não é cobra - Ele então olhou para cima e após uns instantes apontou para cima. Eu olhei e vi aquelas figuras pretas e diminutas pairando aqui e ali entre as folhas das arvores.
- Marimbondo.
- Desgraça, como pode doer tanto um bicho desses.
- Tem um rio aqui perto - disse meu irmão - vai lá se lavar. Se piorar temos que falar com o Seu Joaquim
- Se for só marimbondo não é nada. Quantas vezes já levamos ferroadas deles.
- Mas sempre dói
- Sempre
Me distanciei então me embrenhando na floresta e olhando com atenção para não perder o caminho de volta. Logo ouvi o som calmo do rio correndo bem perto de mim. Era impressionante como a selva se fechara tanto, mesmo eu tendo andado no máximo 600 metros. O rio corria escurecido sob a sombra de centenas de copas de arvores e tudo ali tinha um tom verde amarelado. Se não estivesse com tanta dor, talvez conseguisse apreciar melhor aquela paisagem tão calma e pulsante de vida.
Fiquei de cócoras na beira do rio e mergulhei a minha mão nele. Ardeu como a peste. Aproveitei e bebi um pouco daquela água gelada e limpa. Tirei meu chapéu e enxaguei bem no local da picada. Não parecia muito melhor, mas o frescor da água tornava aquilo um pouco mais suportável.
Foi quando ouvi um barulho rio acima. Demorei para discernir o que era. O som da água e das arvores se remexendo me impediu de ouvir melhor. Decidi então andar ladeando o rio e subir a pequena elevação que parecia esconder a origem do som. Me movi entre as arvores com facilidade, como era bem acostumado. Quando cheguei no ponto máximo me apoiei numa arvore e olhei.
Tentarei descrever o que vi com palavras que sei que estarão aquém da experiência vivida e espero não ser julgado pelo leitor quanto a minha atitude naquele momento.
Eu vi uma mulher no rio. E juro que nunca vi uma mulher como aquela. Estava com a água nos joelhos e com uma expressão plácida no rosto. Parecia nova, 25 anos talvez. Era muito alta, pelo menos 1,80 de altura e com um corpo majestoso como se esculpido da terra. Seus cabelos eram negros, lisos e brilhantes caindo-lhe gloriosos por baixo da linha do quadril. A cor da sua pele era caramelo escuro e seus olhos puxados pareciam conter duas grandes jabuticabas reluzentes. Acima deles duas sobrancelhas escuras se escondiam atrás da franja de cabelo negra e perfeitamente reta.
Seu rosto era arredondado, de ossos marcantes e um queixo pontudo. Seu nariz era pequeno e redondo e sua boca era grande, formada por lábios grossos. As pernas subiam longas e majestosas com coxas abastadas que pareciam duras como rochas. Seu corpo tinha curvas, ainda que não exageradas, e ela não era nem magra e nem acima do peso. Possuía seios muito, mas muito fartos e eu fiquei olhando para a figura daquela mulher enquanto ela distraída fazia uma concha com as mãos e derramava a agua que juntara acima dos ombros. A agua escorria cintilante, deslizando pelas suas costas e voltando para o rio.
O som que eu ouvira fora uma canção. Uma canção que, talvez pela impressão do momento, me pareceu a mais bela de todas. Era composta de notas agudas e longas, agradáveis como o correr do rio em um dia tranquilo.
Minha dor pareceu sumir. Eu fiquei tão fascinado que quis me aproximar para ver (espiar, admito) melhor. Toda aquela figura parecia passar ao mesmo tempo força e graça. Caminhei o mais silencioso que pode. Então, absorto e distraído pisei num galho que estalou.
Eu olhei para meu pé me maldizendo e torcendo para que ela não tivesse ouvido.
Quando ergui meus olhos ela olhava exatamente na minha direção e a canção cessara. Não demonstrava medo, surpresa ou raiva. Apenas me observava. Decidi que não fazia sentido ficar me escondendo e caminhei em direção á margem do rio. Os seios dela cresceram ainda mais em volume quando ela os cobriu com um braço e os apertou contra o peito. Achei estranho ela ter esse tipo de pudor.
Fiquei sem saber o que falar para ela, na verdade mal estava conseguindo formar uma frase.
- Quem é você? – perguntei todo desajeitado. Ela não respondeu, permanecendo séria.
Não tinha certeza se ela entendia português a essa altura.
- Porque...você está aqui? – balbuciei
- Eu nasci nesse rio – disse ela. A voz era de uma tonalidade mais grave, mas muito clara e gentil – A verdadeira pergunta é: o que você faz aqui?
- Eu vim me lavar – respondi, voltando a sentir aquela dor insuportável. Ela pareceu perceber meu desconforto, mas não disse nada. Como o olhar dela era profundo!
- Desculpe – disse eu, repentinamente constrangido pelo que estava fazendo ali, espiando aquela mulher tomando banho. Fiquei pensando no que minha mãe me diria se soubesse.
- Me mostre sua mão – falou ela, me chamando para entrar no rio.
Eu avancei lentamente até chegar bem perto dela, me molhando até os joelhos. Ela era um pouco mais alta do que eu e a medida que me aproximava ela ficava cada vez mais majestosa. Estiquei minha mão inchada e ela observou com atenção.
- Marimbondo – disse eu
- Eu sei – respondeu ela – E o que fazia perturbando a paz deles?
Eu que nunca tinha pensado sobre a paz dos marimbondos franzi o cenho.
- Eu estava trabalhando.
- Não justifica – falou ela me reprovando com o olhar – Tudo na floresta está conectado. Você pode gerar desequilíbrio ou contribuir com a harmonia. Sempre que você perturba a harmonia das coisas algo se machuca.
Ela colocou sua mão na água e despejou sobre o meu machucado. Aquilo ardeu de novo e fiz uma careta.
- Mas sempre que você promove o equilíbrio, algo é curado – me disse. Eu observei minha mão que não parecia querer melhorar, na verdade pareceu arder mais.
Eu fiquei olhando aquela jovem mulher. Tomei coragem.
- Meu nome é...
- Seu nome não é importante agora – disse ela – Assim como o meu.
Não tive resposta para aquilo. Desta vez ela me analisou com o olhar e pela primeira vez sorriu. Como seu rosto ficava surrealmente belo quando fazia isso. Seus dentes eram pequenos e brancos.
- Você parece ter um bom coração, espero que encontre a felicidade que procura – Ela me olhou mais um pouco, se virou e foi indo na direção da outra margem, nadando com facilidade na correnteza tranquila. Ela chegou do outro lado, emergindo alta como uma deusa, vasta cabeleira negros grudada nas suas costas, quadril largo se movendo com graça a cada passo, água caindo dela como uma cachoeira.
- Podemos conversar de novo? – gritei
A mulher se deteve brevemente, antes de continuar e sumir entre as árvores.
Atordoado por aquele encontro fiquei no meio do rio deixando a correnteza passar por mim. Voltei lentamente para o local de trabalho, completamente levado para longe pelo que acontecera. O que tudo aquilo significara? Quem era ela?
Encontrei meu irmão no meio do caminho.
- Fiquei preocupado, estava demorando – ele comentou
- Já estou de volta.
- Vai conseguir trabalhar? – me perguntou apontando para minha mão. Vi a expressão dele mudar repentinamente, arregalando os olhos.
- O que foi? – perguntei. Ele não disse nada e apontou para minha mão. Quando a ergui, eu vi.
Estava completamente normal, sem inchaço algum. A dor sumira totalmente de uma hora para outra. Passei meus dedos sobre a área machucada: estava lisa e saudável. Eu fora curado.