Ela fez uma expressão que deixava estampada a dúvida em sua face, certamente duvidando de que seria uma terapia a seu favor, mas sem saída, aceitou. Voltamos à sala, onde o casal parecia já ter conversado sobre o que incomodava Fernanda e as novidades pareciam ser nada boas, porque o semblante do Mark havia mudado consideravelmente. Expliquei que Lucinha havia concordado e decidi dormir ali com ela para evitar uma desistência de última hora. Tentei conversar com ele, mas ele disse que falávamos depois e marcamos de nos encontrar ali em casa por volta das cinco horas do dia seguinte. Despedimo-nos e eles se foram.
Eu não tinha muito assunto com a Lucinha e apesar dela tentar conversar, esquivei-me como um esgrimista medalhista olímpico. Após jantarmos, arrumei a desculpa ideal de termos que madrugar e fomos nos deitar mais cedo, cada um em um quarto diferente. Dormi muito pouco, quase nada, talvez uma ou duas horas. Não sei se era a tensão, mas surpresas, das piores possíveis, me aguardavam.
(CONTINUANDO)
O meu celular despertou logo cedo e me levantei, indo acordar a Lucinha. Não precisei. Ela já estava acordada e pelas olheiras, devia ter dormido tanto quanto ou até menos que eu. Tomamos um café da manhã em silêncio e fomos nos vestir, arrumando também duas pequenas malas, uma de cada.
No horário combinado, britanicamente, Mark chegou e seu semblante não havia melhorado nem um pouco. A surpresa ficou pelo fato de que ele vinha acompanhado da Fernanda. Quando a vimos, não tivemos como evitar o olhar de espanto:
- O que foi? Vou também! Quero aproveitar para ver minhas filhas. - Ela explicou.
Se foi desculpa ou não, não sei, mas a explicação dela foi suficiente. Logo, pegamos a estrada. O Mark se mostrava um exímio motorista, singrando rapidamente entre os veículos na Fernão Dias duplicada, rumo a Minas Gerais. No início do trajeto, até pouco depois de sairmos de São Paulo, havia um silêncio bastante estranho, que foi quebrado pela Fernanda, perguntando ao Mark se não podiam parar para tomar um cafezinho:
- Quando a gente entrar em Minas, eu paro. - Ele resmungou e riu, agora brincando: - Cês paulistas não sabem fazer café, nem pão de queijo. Hoje, vou mostrar para vocês como é que um mineiro faz.
Lucinha o rebateu quase que imediatamente:
- Pois saiba que eu faço um pãozinho de queijo bem gostosinho sim, não faço, Gê?
- É! Faz mesmo. - Concordei.
- Ara, du-vi-de-o-dó! - Fernanda a contrariou, rindo: - Pode até ser bom, mas depois de hoje, cê vai ver que o trem em Minas tem comparação não, Lucinha.
Começamos a rir da forma como ela falou e ela ainda se virou para nós, perguntando curiosa:
- O quê!?
Daí é que rimos forte da cara dela, até o Mark não resistiu e riu debochado, explicando:
- Com um sotaque desse, não tem como não rir, né, Nanda!?
- Ah vá!... - Ela resmungou e deu um tapa no braço dele, rindo na sequência também: - Falei nada demais não, mor. Ara…
O clima ficou mais ameno e a partir daí elas começaram a “tricotar” sobre receitas mineiras. Fernanda explicava que gostava de cozinhar, mas era o Mark o mestre cuca de sua casa:
- Ora, mas que homem prendado. O Gervásio mal frita um ovo. - Lucinha o elogiou e não perdeu a chance de me alfinetar.
- Nu! O Mark cozinha bem demais. Carne é com ele mesmo.
- Ô se é… - Ele resmungou, interrompendo-a, e ele prosseguiu após dar uma risada: - Adoro mexer numas carnes. Sabia que o segredo está nas mãos, não é, Gervásio? Se você sabe como pegar direitinho numa carne, não tem como dar errado.
- É! - A Fernanda concordou, mas logo se voltou para ele, perguntando com uma nítida malícia: - A gente está falando sobre carne de comer, não é?
- É, uai! - Ele retrucou, também sorrindo maliciosamente: - Eu como sempre!
Ela parou o olhando, meio perdida na conversa, e voltou a insistir:
- Eu já não sei mais sobre o que a gente está falando.
Ele deu uma risada debochada e balançou negativamente a cabeça. Não resisti e ri também, inclusive a Lucinha, pois era óbvia a conotação maliciosa que ele havia dado na conversa através de um duplo twist carpado, tudo isso bem na cara da Fernanda que resmungou, agora rindo:
- Ah, vá à mer… - Calou-se rindo: - Tomá no cu…
- Gosto também! - Ele retrucou, sem parar de rir.
O assunto morreu ali, pouco depois de rirmos bastante. Já estávamos entre Atibaia e Bragança Paulista e a viagem ainda seguiria por um bom tempo. Mark nos perguntou se queríamos parar para um café ou se poderíamos seguir até Minas. Concordamos em esperar. Uma hora depois já estávamos rodando em terras mineiras e então ele parou num posto de beira de rodovia. Fomos até a lanchonete e a Fernanda seguiu na frente, pedindo um baldinho de pão de queijo e quatro cafés, sem nos dar chance de escolher e ainda avisou o atendente:
- Meus amigos são paulistas e eu vim fazendo a maior propaganda do pão de queijo mineiro. Não me faz passar vergonha, moço!
Não sei se foi o charme dela, o medo no olhar dela depois dessa “intimada”, ou se o pão de queijo era naturalmente delicioso, mas nunca mais esquecerei daqueles pãezinhos de queijo, crocantes por fora e macios por dentro. Era literalmente coisa de outro mundo. Notei que a Lucinha ficou meio entristecida ao morder o seu primeiro e perguntei o que havia acontecido:
- Ah… Acabei de descobrir que não sei mesmo fazer pão de queijo. - Ela resmungou, fazendo bico.
- Esquenta não, Lucinha, é “facin” demais da conta, sô! - Disse a Fernanda: - Anota aí: 500g de polvilho azedo; 150ml de água, óleo e leite; 1 colher de sobremesa de sal e…
- Ah, pode parar, Fernanda! Já esqueci tudo. - Lucinha reclamou.
- Ara! - Resmungou a Fernanda: - E quer aprender de que jeito, uai!?
- Manda pelo ZAP para mim depois, por favor. De cabeça, eu esqueço mesmo.
Elas começaram a discutir, uma querendo ensinar e a outra não querendo aprender. Enquanto isso, o Mark analisava detidamente tudo o que acontecia, mas seu semblante voltara a ficar pesado, sisudo, o que certamente deu a entender que alguma coisa havia acontecido enquanto eu e ele estivemos fora, aliás, isso também justificaria a cara com que a Fernanda nos atendeu no dia anterior e isso me incomodava um pouco também, mesmo sem saber o que era.
Terminamos nosso café e ainda sobrava meio balde de pãezinhos de queijo que, naturalmente, a Fernanda arrebatou, abraçando-o como se fosse um filho. Pagamos o consumo e voltamos à estrada. Todos conversavam entre si, mas eu sentia que algo estava no ar. Horas depois chegamos numa típica cidade do sul de Minas, mas com porte de cidade grande. O Mark singrava as ruas como um bom conhecedor e logo estacionamos em frente a um prédio que não aparentava ser uma clínica, mas era. Eles nos acompanharam porta adentro e ficaram conosco até que um senhor de idade já avançada veio nos atender, caminhando primeiramente até eles:
- Mark! Prazer imenso te rever, meu amigo. - Disse aquele senhor, o abraçando apertado, no que foi correspondido, para depois se voltar para a Fernanda: - E a senhora, dona Fernanda Mariana, tem cultivado algum juízo nessa cabecinha de vento?
Fernanda de um sorriso natural, o encarou com os olhos arregalados e a boca meio aberta, para só então falar:
- Ah vá! Agora, o senhor também vai começar a me aporrinhar, doutor Galeano!? E Fernanda Mariana é a sua mãezinha.
- Não, não, querida, minha mãezinha se chamava Rosa, que Deus a tenha em boa companhia. - Ele retrucou rindo e a beijando na face: - Estou brincando, querida, sabe que adoro você.
- Sei não! O senhor sabe que eu odeio o meu nome composto.
- Desculpa por isso, mas e o juízo, hein? Tem exercitado? - Ele insistiu.
- Tenho, doutor, tenho. Tô fazendo tudo “certin” pra convencer essa cabeça dura a me perdoar. - Ela disse, apontando o Mark que, à essa altura, fazia cara de paisagem.
- Posso te contar um segredo, querida? - Doutor Galeano perguntou e ela assentiu com a cabeça: - Ele já te perdoou, sua boba.
- Mas então por que ele não me aceita de volta?
- Porque perdoar nem sempre significa continuarem juntos.
- Credo, doutor Galeano! Hoje o senhor tá muito chato. Tô saindo. Vou deixar os meus amigos aqui com o senhor e… e… - Ela falou dando algumas voltinhas em seu próprio eixo até dar um passo para trás: - E passar bem.
Ela foi se sentar numa poltrona, olhando para nós, mas logo abriu um sorriso. Seu inconformismo não passava de uma brincadeira. O Mark fez as vezes e nos apresentou ao doutor Galeano que me apertou a mão de uma forma forte, mas bastante acolhedora, depois dando um beijo na face da Lucinha. Ainda o ouvimos dizer:
- Eu quero tomar um café com vocês dois depois, ok?
O Mark sorriu e disse que achava ser meio difícil, porque achava que nossa conversa seria longa. Então, explicou que iria para o shopping e que depois, quando tivéssemos terminado, era só ligar para ele. Ao passar pela Fernanda, ela o encarou com um olhar “pidão” e perguntou se poderia ir junto. Ele só fez um movimento de mão, pedindo que ela se levantasse e a pegou pela mão antes de saírem. O doutor Galeano nos convidou a entrarmos no seu consultório e fechou a porta atrás de nós:
- Esses dois não tem jeito. - Ele resmungou, rindo: - Brigam, brigam, mas não se desgrudam…
Rimos de seu comentário porque parecia ser a mais pura verdade. Ele então se apresentou e fez algumas perguntas para saber um pouco mais de nós. Assim que terminamos de nos apresentar e ele notando que estávamos bastante desconectados como casal, ele disse que estava um pouco a par dos fatos, mas que queria ouvir da boca de cada um de nós, a nossa versão. Então, perguntou-nos se preferíamos conversar juntos ou separados:
- Eu prefiro deixar a Lucinha conversar com o senhor a sós.
- Somos um casal. Temos que resolver nossos problemas juntos. - Ela retrucou.
- Muito bem, Lúcia, gostei de seu ponto de vista. Resolver juntos, decidir juntos, viver juntos. Acho que essa a receita do sucesso. - Ele concordou, insinuando-se numa pegadinha: - Mas acho que não é isso que tem acontecido na vida de vocês ultimamente, não é?
Lucinha sentiu a indireta, aliás, uma bela direta de direita na boca do estômago e ficou sem palavras. Eu gostei tanto da abordagem dele que decidi ficar. Vê-la sendo espremida daquela forma até me deixou mais relaxado, até um pouco feliz:
- Quem quer começar? - Ele perguntou e como nenhum dos dois se adiantou, ele sugeriu: - Lúcia, vamos começar por você.
- Eu… Eu nem sei o que dizer. Como eu começo uma história dessas?
- Pelo começo, minha cara. Conte tudo, sem medo e me deixe ajudá-los a interpretar os fatos sob uma ótica mais profissional e imparcial.
Lucinha não perdeu mais tempo e começou a contar a sua versão dos fatos e não apenas daquele dia, mas de toda a nossa vida em comum, inclusive das nossas fantasias na cama. Naturalmente, fiquei desconfortável, afinal ela estava revelando fatos íntimos nossos que ninguém mais sabia, aliás, ninguém mais além de nós, do Roger, Alícia, Mark, Fernanda e agora do doutor. Ele a ouvia atentamente, tomando notas que julgava importantes e não a recriminou em momento algum. Pelo menos, não verbalmente, porque quando ela chegou na noite da recepção e revelou da transa que teve com o Roger às escondidas, ele a encarou com o mesmo semblante de um pai prestes a dar um corretivo num filho. Quando ela contou então sobre o pedido para transar o resto da noite com o Roger, ele chegou a respirar mais profundamente, inclusive forçando ainda mais seu lápis no bloco de notas:
- E é só isso. - Ela findou, depois de bons minutos.
- Não é não! - Eu retruquei: - Por que você não conta para ele o que revelou para mim e para o Mark e a Fernanda no jantar de dias atrás?
- Ah… - Ela resmungou: - É, eu… eu esqueci disso.
Ela passou então a contar sobre como conheceu a Alícia, a amizade que estabeleceu com ela e depois com o Roger, suas aventuras virtuais, chegando, por fim, a forma como o Roger explicou o plano a que me submeteram na recepção. Nesse momento, nem mesmo o doutor Galeano conseguiu evitar um olhar de reprovação, chegando a me olhar de soslaio, certamente entendendo o porquê eu não queria mais prosseguir com aquele relacionamento. Quando ela realmente terminou, ele falou:
- Meus parabéns por ter compartilhado, Lúcia. Fico feliz que tenha aberto o seu coração. - Depois, ele se virou para mim: - Gostaria de ouvir também a sua versão, Gervásio.
Eu passei então a descarregar tudo o que havia passado naquela maldita recepção, em especial a angústia de vê-la sendo envolvida por aquele miserável do Roger. Deixei claro que cheguei a tentar confrontá-la, mas a Alícia sempre me manteve sob controle, evitando que eu dissesse algo, o que no fim se mostrou providencial porque serviria de teste de fidelidade para a Lucinha. Ela se surpreendeu nesse momento:
- Quer dizer que você não confiava em mim?
- Muito pelo contrário. Eu confiava tanto que deixei de confrontá-la, esperando que o seu bom senso imperasse.
- Mas a gente fantasiava, Gervásio…
- Não. A gente fantasiou um dia. Daí você teve aquela maldita crise de ciúme quando eu quis fantasiar com uma mulher e nunca mais brincamos disso. Você não tinha o direito de presumir que eu aceitaria algo que não fazia para de nosso dia a dia, e pior que havíamos abandonado.
- Gente, calma. - Doutor Galeano pediu e a repreendeu com educação: - Lúcia deixa o Gervásio falar. Na sua vez, ele ouviu tudo sem se manifestar. Agora eu quero ouvi-lo, tudo bem?
Ela concordou e eu terminei de contar a minha versão, exatamente como aconteceu e fiz questão de explicar toda a raiva, decepção e dor que senti quando soube da sua traição no recinto e que piorou exponencialmente quando ela me pediu para passar o restante da noite com o Roger no nosso quarto, na nossa cama. O doutor Galeano anotou mais alguma coisa em seu bloco e, sem qualquer amaciante, anestésico ou algo do tipo, falou em claras e objetivas palavras:
- E então, dona Lúcia Helena, o que a senhora pensa que fez?
A Lucinha gaguejou, ficou branca e começou a tremer com a forma como ele se dirigiu a ela. O doutor Galeano parecia não ter tempo a perder e a pressionou novamente:
- E então? Traiu ou não?
Lucinha o encarava de olhos arregalados, lábios tremendo e às vezes me olhava como se procurasse ajuda, mas eu neguei qualquer intervenção. Ela então respirou fundo e tentou sair pela tangente:
- Doutor, não é assim tão simples…
- É sim! - Ele a interrompeu: - A resposta é sim ou não e eu ainda estou esperando a sua.
Ela, sob aquela pressão, começou a chorar, muito, muito mesmo. Ele não se comoveu. Olhou para mim e fez um meneio de cabeça como que dizendo que estava tudo bem. Pegou então uma caixa de lenços descartáveis e lhe ofereceu. Ele esperou que ela chorasse e insistiu:
- E então?
Ela suspirou novamente, olhando para mim, depois para ele e então baixou seus olhos, olhando para lugar algum:
- Eu errei sim, mas juro que não fiz na intenção de magoar o Gervásio. Eu… Eu só pensei que poderia ser algo legal para a gente e daí… bem… depois na recepção, como ele não reagiu negativamente, pensei que… ah, sei lá… pensei que ele estivesse curioso e curtindo também.
- E o que falamos quando erramos, Lúcia?
- Me perdoa, amor. Eu juro que nunca quis te magoar. Errei, tá bom? Eu errei, muito, da pior forma possível. Me dá uma chance, por favor? - Ela agora falou olhando para mim.
O doutor Galeano também me encarou, mas já sabia a minha resposta e eu não podia mais esperar para colocar um ponto final naquilo:
- Perdoo! Eu não te quero mal algum, Lucinha, nunca quis. - Ela abriu um sorriso, mas eu continuei: - Mas também não quero mais continuar com você. Desculpa, mas eu não confio mais em você para ser minha parceira. Nosso casamento acaba aqui.
OS NOMES UTILIZADOS NESTE CONTO E OS FATOS MENCIONADOS SÃO FICTÍCIOS E EVENTUAIS SEMELHANÇAS COM A VIDA REAL É MERA COINCIDÊNCIA.
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