O doutor Galeano também me encarou, mas já sabia a minha resposta e eu não podia mais esperar para colocar um ponto final naquilo:
- Perdoo! Eu não te quero mal algum, Lucinha, nunca quis. - Ela abriu um sorriso, mas eu continuei: - Mas também não quero mais continuar com você. Desculpa, mas eu não confio mais em você para ser minha parceira. Nosso casamento acaba aqui.
(CONTINUANDO)
- Gervásio!? - Foi a única coisa que ela conseguiu falar, me encarando com olhos arregalados, mais branca que uma folha de papel.
- Gervásio, Lucinha, por favor, vamos nos acalmar. - Pediu o doutor Galeano.
- Estou calmo, doutor. - Retruquei e expliquei: - Calmo, lúcido, consciente e decidido! Fico feliz que a Lucinha consiga agora enxergar o seu erro e esteja arrependida, mas infelizmente, como eu disse, não tenho mais a mínima confiança nela e não quero continuar esse relacionamento.
O doutor Galeano, vivido, maduro e já ciente das minhas intenções, pediu para que eu aguardasse na antessala, afinal, aquilo que havia começado como uma terapia para um casal, agora se transformaria numa terapia de autoconhecimento e aceitação para a Lucinha, é claro.
Na antessala os minutos se sucediam e nada dele ou dela saírem do consultório. Isso começou a me incomodar demais e a ansiedade me dominou. Eu devo ter tomado quase a garrafa de café que havia ali para os pacientes, sem contar as bolachas que comi e a quantidade absurda de água que ingeri.
Após quase três horas, eles saíram. Lucinha estava horrível, com os olhos inchados, ainda marejados, nariz que só não estava escorrendo porque ela trazia a caixa de lenços descartáveis à mão. Quase que no mesmo momento, o Mark e a Nanda também chegaram e o doutor nos chamou a todos para dentro de sua sala novamente. Ele nos acomodou em sofás laterais, serviu-nos café (que eu aceitei novamente) e começou a falar:
- A vida é cheia de percalços e muitos nos trazem aprendizados através de lições que, muitas das vezes, não gostaríamos de aprender. Vou usar o exemplo do Mark e da Nanda: eles já passaram por bons bocados e ainda lutam para ficar juntos. Cometeram erros dentro desse estilo de vida, mas tentam sempre aprender e continuar.
- Verdade! - Fernanda falou, agarrando-se ao braço do marido, enquanto ele a olhava surpreso e meio contrariado para o doutor Galeano.
- Não adianta negar, Mark, vocês se amam. Você só está decepcionado e ofendido com a atitude que a dona Fernanda Mariana tomou naquele maldito jantar, não é, minha cara? - Perguntou de uma forma acusativa sem tirar os olhos da Fernanda que engoliu a seco, sem sequer protestar pelo uso de seu nome composto: - Mas vocês se amam acima de tudo e nunca fariam nada para prejudicar um ao outro. O que aconteceu foi por uma divergência de entendimentos, embora eu concorde totalmente com a postura que o Mark adotou e você enfrentou, Fernanda!
Fernanda não sabia onde enfiar a cara e certamente não esperava tomar uma “chamada” daquelas no atendimento que deveria ter eu e a Lucinha como pacientes. Num momento em que o doutor Galeano respirava fundo antes de continuar, notei que lágrimas desceram pela face da Fernanda e ela mesma tomou a palavra:
- Eu sei, doutor, e não tem um único dia em que eu não me arrependa de ter feito o meu marido sofrer. Ele nunca mereceu passar por aquilo. Ele… Ele só queria me proteger, aliás, proteger a nossa família e eu… bem… eu fiz aquela merda. - Disse e olhou para o Mark que a encarou, aparentemente surpreso: - Se eu pudesse voltar no tempo, juro por Deus que teria feito diferente. Eu teria te ouvido e seguido, sem pestanejar, mesmo que não entendesse no momento, porque sei que você sempre luta pelo nosso bem.
O próprio Mark, talvez aturdido com as lembranças dos detalhes do que passaram, ficou sem palavras. Seu semblante demonstrava a surpresa e seus olhos marejaram, mas ele, como um bom macho chucro sul mineiro, piscou repetidamente os olhos para evitar que as lágrimas descessem e foi bem sucedido. Ainda assim não disse ou não conseguiu dizer nada:
- Eu só queria ter uma nova chance de te provar o quanto te amo e respeito. Errei sim, assumo, confesso e te peço perdão de coração, mas… - Fernanda começou a chorar novamente: - Como eu posso te provar que aprendi a ser a mulher que você sempre mereceu ter se não tiver uma nova chance? Eu… Eu só preciso de uma chance.
Ela voltou a chorar forte e o Mark agora a abraçou de uma forma intensa, acolhendo a esposa nos braços novamente, escondendo seu rosto em seu peito, protegendo-a da própria vergonha. Ele cochichou algo em seu ouvido e aí a Fernanda chorou de verdade, de soluçar, quase perdendo o ar dos pulmões. Todos se preocuparam, menos o Mark que parecia saber o que fazia. Foi nesse momento que eu me toquei que justamente eram aquelas palavras proferidas pela Fernanda que eu queria ouvir da Lucinha, essa era a postura que eu pensei que ela pudesse ter, a de um arrependimento legítimo, verdadeiro, e talvez, com isso, eu a perdoasse também.
O doutor Galeano olhou para a Lucinha e apontou para a caixa de lenços. No ato ela entendeu que, naquele momento, a Fernanda precisava muito mais que ela. O terapeuta entregou a caixa para o Mark que repassou para a Fernanda que começou a se controlar e após secar as faces e as narinas, sorriu para o marido e falou:
- Obrigada… Nunca mais vou te decepcionar, nunca! Você vai ver. Eu vou ser a mulher que você sempre mereceu ter. Você ainda terá muito orgulho de mim.
Mark acariciou sua face e, sem vergonha alguma dos presentes, falou:
- Aprenda a confiar em mim, nas decisões que tomo pela gente, e vamos ficar velhinhos juntos. Orgulho da mulher que você é eu já tenho… - Disse e beijou seus lábios carinhosamente, para depois brincar com o terapeuta: - Descontando um ou outro episódio, né, doutor?
- Ô se é! - O doutor Galeano concordou, dando uma risada na sequência.
- Ah… Vão à merda cês dois! - Retrucou a Fernanda e riu, mesmo com os olhos ainda tomados pelas lágrimas, mas que agora aparentavam ser da mais pura e lídima felicidade, tudo isso enquanto entrelaçava os braços no do marido.
O próprio doutor Galeano pareceu ficar perdido por um momento:
- Gente do céu… Movi um cavalo pensando em pegar um bispo e acabei tombando uma rainha… - Olhou para o casal e perguntou, curioso: - Então, vão se acertar, é isso mesmo o que eu entendi?
A resposta oral não veio, mas o movimento de braço que o Mark fez, abraçando novamente a Fernanda respondia qualquer dúvida:
- Maravilha! Maravilha, maravilha… - Comemorou o doutor Galeano e voltou sua atenção para nós, em especial para a Lucinha: - Só que nem tudo são flores nessa vida, não é, Lucinha? Nem sempre o final é como nos contos de fadas, não é?
Lucinha, agora cabisbaixa, só ouvia e o doutor Galeano voltou sua atenção para mim:
- Conversei com ela, Gervásio, e olha que conversamos muito. Ela me contou mais detalhes do relacionamento de vocês e como ela chegou à conclusão de que, fazendo aquilo, estaria de acordo com o que vocês haviam plantado. Mas também expliquei que é um erro imenso pressupor que uma mudança tão séria e profunda nas regras do casal possa se dar sem uma conversa franca, aberta e objetiva. É aquele famoso e maldito “achismo”: acho que posso e faço; acho que ele vai gostar e faço. Ela compreendeu que talvez você pudesse até ter a curiosidade, talvez até a vontade, mas que ela errou em não ter se sentado com você e aberto suas expectativas, vontades e desejos, e mais ainda, que ela já vinha mantendo contatos com um casal externo.
Eu ouvia sem saber bem onde ele queria chegar, mas um calafrio na espinha me preparava para o pior, para uma nova tentativa de reconciliação:
- Ela nunca deixou de te amar e o tanto que tem sofrido comprova isso, mas ela entendeu que realmente não foi sua cúmplice e que suas omissões afetaram o equilíbrio de seu casamento.
- Pois é. O fiel da balança desequilibrou e os pesos caíram dos pratos… - Resmunguei.
- Ela entendeu, Gervásio, entendeu de verdade e me disse que se você realmente quiser se separar, ela aceitará. - Ele falou, mas complementou: - Entretanto, ela disse também que se você lhe der uma nova chance, fará de tudo para merecer e reconquistar a sua confiança.
- Doutor! - Resmunguei, contrariado, já imaginando que acabaríamos chegando naquela situação novamente.
- Foi um pedido dela.
Eu a olhei e ela continuava cabisbaixa, mas levantou sua cabeça, olhando-me ansiosa e esperançosa por uma nova chance:
- Desculpa, Lucinha, mas eu não consigo. - Falei e expliquei: - Eu gostaria muito de ser evoluído como o Mark, inteligente como a Fernanda, mas eu não sou. Não dá mais para mim.
Ela baixou os olhos novamente e suspirou fundo. Lágrimas desceram por seu rosto, mas num choro inaudível, quase secreto, somente dela mesmo. Após poucos segundos assim, ela levantou o olhar para o doutor Galeano:
- Acho que já acabamos, doutor, literalmente acabamos.
Depois se levantou e seguiu em direção da porta, saindo da sala. A Fernanda olhou para o marido que fez um meneio de cabeça, e se levantou, saindo atrás dela. Eu encarei o terapeuta que explicou:
- Ela está bem abalada, mas não fará nada contra a própria vida. De qualquer forma, você tem meu telefone, se houver alguma ocorrência imprevista, ligue-me a qualquer hora.
Agradeci a ajuda e perguntei sobre os seus honorários. Ele disse que depois me passaria pelo WhatsApp, mas brincou, dizendo que eu não precisava me preocupar, afinal, eu tinha dois rins e poderia vender um para pagá-lo. Ri da brincadeira e olhei para o Mark que perguntou se eu queria ver sua cicatriz. Meu sorriso murchou instantaneamente e eles começaram a rir, baixinho, para que a Lucinha não ouvisse e pensasse que poderíamos estar comemorando.
Saímos de sua sala e a Lucinha aguardava sentada num sofá da antessala, com a Fernanda ao seu lado. Assim que saímos e dado o adiantado da hora, eles nos convidaram para pernoitar em sua casa, numa cidade vizinha:
- Eu quero ir embora. - Lucinha falou: - Por favor, só me deixa na rodoviária, Mark. Dali eu me viro.
- Já demos trabalho demais para vocês. Concordo com a Lucinha, se puder nos deixar na rodoviária.
Mark e Fernanda se entreolharam e ele disse:
- Ó, levar eu levo, mas não sei se terá ônibus para hoje.
- Se não tiver, pensaremos em algo, mas se tiver, também prefiro ir. - Ponderei.
Ele nos levou a rodoviária local e quase não conseguimos embarcar no último ônibus do dia. Despedimo-nos deles antes, aliás, eu me despedi, porque a Lucinha entrou sem sequer olhar para trás. Desculpei-me pela falta de educação dela, mas a situação, por si só, já justificava sua conduta. Ela se sentou numa cadeira de janela na sexta fileira e eu numa de corredor três cadeiras à frente. A viagem transcorreu sem nenhuma intercorrência e chegamos em São Paulo durante a madrugada. Consegui convencê-la a irmos no mesmo táxi e a deixei em nossa casa, seguindo para o mesmo hotel em que eu havia me hospedado recentemente. Parecia, enfim, que minha vida voltaria ao prumo. Ledo engano…
Apesar de eu ter uns dias de folga, no dia seguinte, logo de manhãzinha, recebi uma ligação do meu patrão, bufando abelhas contra mim:
- Que porra de história é essa de você ter se desentendido com o Roger, Gervásio? Ele me ligou ontem dizendo que infelizmente teria que tirar seu dinheiro de nossa corretora porque havia se desentendido com você e não poderia confiar seus recursos a uma pessoa desequilibrada. Porra, cara, o que tá acontecendo?
- Ah, chefe, é que… eu… caramba, é que… - Eu gaguejava sem saber por onde começar, afinal, eu não queria que aquele assunto se espalhasse: - Olha, eu não gostaria de falar por telefone. Na verdade, eu não gostaria sequer de tocar no assunto.
- Tô me fodendo para os seus problemas. Vem pra cá agora! Quero passar essa história a limpo. - Gritou e encerrou a chamada abruptamente.
Respirei fundo, enquanto tentava organizar as informações na minha mente. Tomei um café da manhã no restaurante do hotel ainda sem saber o que ou como falar. No final, cheguei à conclusão que não teria como falar em partes, ou diria tudo e passaria a ser o corno da corretora, ou não contaria nada e poderia estar desempregado em instantes.
Cheguei na corretora em minutos. Num dia em que um engarrafamento me faria muito bem, quase não encontrei carros durante o percurso. Parecia que até o acaso estava contra mim. Entrei na corretora e a dona Suzana, a secretária chefe, veio me confidenciar:
- Eu não sei o que você fez, mas o chefe não para de falar sozinho. Está até discutindo com ele mesmo.
Não precisei sequer ser anunciado, aliás, ninguém queria chegar perto da porta de sua sala. Dei duas leves batidas e ouvi um grito do outro lado “O que é, porra!?”. Quando me identifiquei, ele me mandou entrar, fechar a porta e passar o trinco:
- Fala, caralho, que merda que você fez? - Brandiu como se eu fosse o culpado.
- Chefe, eu… Olha só… É uma questão pessoal que envolve a minha esposa e eu não quero e não vou contar para o senhor. Sinto muito.
Ele me olhou sem entender nada, obviamente, e insistiu:
- O que a tua mulher tem a ver com a porra do cliente que quer tirar mais de vinte milhões da minha corretora, ca-ra-le-o!? - Perguntou, mas quase que imediatamente pareceu ter imaginado o óbvio: - Tá de palhaçada, né? Ela e ele…
Ele se calou ao constatar o óbvio, sentando-se atrás de sua mesa, enquanto, pelo meu semblante, obtinha todas as respostas que precisava. Com a mão esquerda espalmada, começou a batucar a mesa, sem tirar os olhos de mim, pensando em algo. Ao final de um tempo que não sei quantificar, ele soltou uma pérola:
- Caralho, Gervásio, agradece, porra! Um homem sem chifre é um homem indefeso. Abraça o destino e aproveita.
Fiquei atônito e não consegui me segurar:
- Fala isso porque o chifre foi comigo. Eu queria ver se sua esposa tivesse feito isso, o que o senhor iria fazer.
- Eu iria não, eu me separei daquela biscate. - Falou sem se dar conta de uma confissão que ninguém havia ouvido ali e se explicou: - Foi com o “personal” dela. Peguei os dois na banheira da minha casa e terminei tudo.
- Isso! Eu também vou terminar e seguir com a minha vida. Ontem mesmo, estávamos num terapeuta que explicou tudo, tim-tim por tim-tim para a Lucinha.
Ele começou a dar tapinhas nervosos com suas mãos e depois, como se estivesse em prece, colocou-as à frente de seus lábios, pensativo. Pediu-me o telefone do Roger e depois de explicar que tentaria convencê-lo por outros meios a permanecer, passei o número. Não adiantaria eu recusar de qualquer forma, afinal, nos registros da empresa, ele também poderia obtê-lo. Na minha frente ele ligou e eu acompanhei a conversa. Meu chefe é um homem vivido, maduro e um baita profissional. Além disso, tinha uma lábia e eu vi toda a sua desenvoltura em plena ação. As últimas frases, entretanto, foram ditas numa entonação nada agradável e dava conta de que havia caído numa emboscada:
- Ora, vamos lá, Roger, o que eu preciso fazer para convencê-los a permanecerem conosco?
Um breve silêncio em que ele não tirou os olhos de mim e prosseguiu:
- Isso parece estar descartado. Parece que a contenda entre eles foi muito mais profunda do que você imagina.
Um novo silêncio, seguido de uma mudança em sua fisionomia e ele continuou:
- Isso não é justo, principalmente se considerarmos a situação em que ele foi envolvido.
Novo silêncio em que ele mordeu os lábios com raiva, seguindo:
- Tudo bem, então. Vou tentar e te falo, mas não garanto nada. A situação é bem mais complexa e você não está me dando margem para resolvê-la de uma forma prudente.
Por fim, última interrupção e eles se despediram.
Assim que meu chefe repousou seu celular sobre sua mesa, me encarou, consternado e resumiu sua conversa com o Roger. Na verdade, apenas os piores momentos, culminando num pedido:
- Por favor, eu preciso que você converse e se acerte com sua esposa. Ele insiste que foi só um mal entendido e que não acha justo você a abandonar.
- Eu fui traído, corno, chifrado covardemente. Não tem mal entendido algum, a própria Lucinha me confessou isso.
- Eu sei. Eu acredito em você, mas… É o seguinte: ou você se acerta com ela e ele continua conosco, gerando renda para nós e para você principalmente, ou ele vai tirar seus recursos daqui e o pior, vai convencer vários amigos a fazerem o mesmo, ou… - Ele se calou e suspirou fundo, tentando ocultar a vergonha de si próprio: - Vou ser obrigado a te demitir, Gervásio, para manter esses recursos na corretora.
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