Saio do elevador e ando pelos familiares corredores, afinal, vivi neste prédio desde que nasci. Só que estou em outro andar. Dois andares acima do apartamento onde moro.
Não estou indo visitar um velho amigo, um familiar ou coisa parecida. Estou indo conhecer a nova vizinha. Muito cortês, você deve estar imaginando, mas não. Não é uma visita de boas vindas ao condomínio, ela já mora aqui a 8 meses, tarde demais para isso.
Estou indo lá para receber uma aula de reforço. Pois é, a matemática pode te humilhar, se você não tomar cuidado.
Toco a campainha.
Espero.
Passo o olhar pela moldura da porta, olho para os meus pés, ajeito o caderno embaixo do braço, um pouco constrangido.
E então a porta abre.
Ah, aquele sorriso. Não esperava ser recepcionado por um sorriso como aquele. O que você imagina quando ouve falar “professora particular de matemática”? Se você imaginou algo diferente de uma senhora com óculos quadrado e humor severo, acho que você não frequentou a escola. Ou viu filmes de menos.
Fui pego de surpresa. O tipo ruim de surpresa, que faz você agir como um idiota com ansiedade, desengonçado.
– Filipe, não é? Prazer, Giovanna. Vem, pode entrar, fica à vontade. Não repara a bagunça.
Não preciso dizer que embolei as palavras. O que se faz quando se está conhecendo a sua professora particular? E ela é gatinha? Dois beijos na bochecha, cortês? Aperto de mão? Batida com a cabeça?
Comecei a fazer todos esses e não terminei nenhum, quase deixando o caderno cair com os espasmos.
Sim, que vergonha.
Justo, se pensar que foi justamente a falta de vergonha na cara que me levou até ali.
É uma síndrome que muitas crianças que ouvem o quanto são inteligentes podem desenvolver quando vão crescendo. Você não estuda nada e tira nota boa mesmo assim. Bom, em algum momento vai descobrir que isso vai dar errado, muito errado.
Eu descobri isso no último ano do ensino médio, com meus 17 anos, após o feito de tirar zero na média do primeiro trimestre. Numa escola onde você precisa de muitos zeros para de fato ficar com zero.
Prefiro me contar a versão onde sou um adolescente inconsequente que só não vai com a cara da professora da escola. Meus pais devem estar achando que sou apenas burro mesmo, para exigirem que eu fizesse aulas particulares, preocupados com o desempenho do Enem. Talvez as demais notas não fossem tão empolgantes também.
Acho que a realidade está entre o burro e o preguiçoso.
Como disse antes, vivi nesse prédio a vida inteira, então conheço bem as pessoas que moram aqui. Giovanna era uma exceção, pois havia se mudado a 8 meses e não tinha criado nenhum grande alarde que chamasse a minha atenção ou da vizinhança.
Tirando o lance que ela trabalhava dando aulas particulares.
Isso minha mãe estava sabendo, eu não seria o primeiro vizinho a entrar na clientela dela.
Não me lembro nem de conhecê-la de vista e isso me quebrou. Devia sair mais do meu quarto, realmente.
Ela tinha cabelos castanhos e lisos, que caiam abaixo de seus ombros. Usava óculos, mas bem diferentes do que eu imaginei, finos e redondos. Seu rosto era jovial, quase parecia alguém da minha idade. Sabe aquela pessoa que você sabe que é meiga e simpática logo de cara? Então, ela tinha esse rosto.
Era menor do que eu. E era bem magra também. Vestia-se com um short jeans e uma blusa vermelha, bem informal. Usava chinelos como eu. E ah, aquele sorriso. Fiquei totalmente gamadinho nela, imediatamente, como deve já ter percebido.
Fomos para a mesa da cozinha, onde já haviam vários materiais espalhados. Lápis, canetas, papéis rabiscados. Não era seu primeiro aluno do dia, afinal, já eram 4 horas da tarde. Nos sentamos e ela apoiou o queixo em uma das mãos, perguntando:
– E então, Filipe? Dona Selma disse que você estava com alguns problemas com a matéria de matemática, certo? Preciso que você me atualize sobre o conteúdo, suas principais dificuldades e tudo mais. Podemos começar?
Claro que enquanto eu a pintava como a minha mais nova musa inspiradora, a paixão à primeira vista, ela me via como mais um aluno do dia.
Mais 90 minutos de trabalho para ganhar o pão de cada dia.
Por sorte, a essa altura já tinha recuperado um pouco da minha compostura e tentava agir com mais naturalidade, embora ainda me sentisse meio patético:
– É, isso aí.
– Acho que podemos começar do início, o que acha? Uma rápida revisão pelo que você já estudou até aqui, até para eu saber os pontos onde você tem mais dúvida, assim já criamos uma base para as matérias desse próximo semestre, está bem?
– Está sim, show…
E começamos o trabalho duro de estudar.
Claro que meu olhar se desviava para ela com uma frequência assustadora. Ela prendeu o cabelo num rabo de cavalo em algum momento e conseguiu ficar ainda mais gata. Descia meus olhos por sua cintura, pelo desenho de seu rosto… até que nosso olhar se encontrasse e eu desviasse rapidamente, fingindo estar pensativo.
Obviamente ela percebia tudo.
Pelo menos não tive que passar pelo constrangimento dela tirar satisfação comigo. Torcia para não parecer um adolescente tarado.
No fim do período, já estávamos cansados. Havia sido uma sessão de estudos bem intensa. A forma dela explicar deixava tudo bem mais claro, principalmente porque quando era ela, minha atenção estava totalmente ali.
– Acho que já passamos por muita coisa hoje, Filipe. Aceita um cafezinho antes de ir?
– Opa, aceito sim.
– Só um minutinho que vou passar, pode ficar à vontade.
Ela foi para a cozinha, uma cozinha americana pequena, então me levantei e sentei num dos bancos da mureta, observando ela colocar o café para passar. Então, sem se virar para mim, ela pergunta:
– Não era bem o que você esperava, não é?
– O-o que?
– A aula de hoje. Não sou bem o que você esperava, não é?
Ela se vira para mim, com um sorriso no rosto.
– Definitivamente não. - Respondo, olhando aqueles olhos que me encaravam, curiosos.
– Eu reparei os seus olhares, não esperava que eu fosse tão nova, não é? Isso não vai atrapalhar nossas aulas, promete?
A pergunta carregava uma voz meiga e ligeiramente preocupada. Nesse ponto eu já estava mais vermelho que um pimentão. Prendia a respiração, reparei que só soltei o ar quando respondi:
– O que? Não, não, claro que não. Me desculpa, é que eu realmente não esperava alguém tão nova, é isso. Quer dizer, você parece ter quase a minha idade.
Ela dá uma risadinha enquanto enche a minha xícara de café e me entrega:
– Obrigada pelo elogio exagerado, menino. Eu só sou baixinha mesmo.
Ela se serve uma xícara de café também e bebe, apoiando um dos cotovelos sobre o balcão da cozinha.
– Acho que a minha tarefa contigo vai ser facinho, facinho. Deu para perceber que você só não está se esforçando, não é? Por que, Filipe? Algum problema ou algo assim?
Também não estava preparado para um papo desses. Não queria parecer um adolescente imaturo, embora tudo desde que eu entrei ali, apontasse o imaturo que eu era.
– É, pode se dizer que é preguiça mesmo. Minha professora de matemática é bem… desinteressante. E a matemática não ajuda, sem ofensas. Decorar fórmulas é uma merda. Desculpa.
Ela dá mais uma risada, meneando a cabeça:
– Tirar um zero por preguiça? Essa é nova. Parece até que você fez de propósito. Concordo que matemática pode parecer uma merda, mas não é quando você não foca em decorar fórmulas e sim no raciocínio, mas isso é papo para mais pra frente.
Era engraçado ouvir uma professora de matemática xingar. Eu gostava disso, deixava a coisa mais autêntica.
Ainda conversamos um pouco sobre amenidades. Ela fez algumas perguntas sobre o prédio e os vizinhos, fofocas de condomínio. Rimos um bocado. Nem reparamos que o tempo da aula já havia acabado, até a campainha tocar, com a próxima aluna.
Tratei de sair de lá logo, para não atrapalhar.
Ainda estava um tanto eufórica quando me deitei na cama. O sono não vinha. Sabe quando sua cabeça está cheia de pensamentos e você não consegue só relaxar?
Eu queria sonhar naquela noite.
Sonhar acordado.
Pensar em mil e uma histórias e conversas com Giovanna que eu só teria na minha cabeça.