Fernanda o encarou incomodada com o tom, mas ele não esmoreceu, encarando-a também invocado. Ela então assumiu um tom mais cordial e perguntou para a Lucinha:
- O que você acha?
(CONTINUANDO)
Lucinha a olhou sem saber o que responder ou talvez com vergonha de admitir o erro que havia cometido. Um silêncio dominou a sala pois todos nós, os três, queríamos que ela entendesse a gravidade do que fez e assumisse a responsabilidade pelos seus erros. Lucinha, nesse meio tempo, abaixou a cabeça e, pouco depois, me encarou:
- Desculpa, Gê. Eu nunca quis que você sofresse.
- Desculpa!? Agora, Lucinha? Depois de ter feito tudo de errado que poderia ter feito? - Perguntei.
- Se fosse antes, eu não teria porque pedir desculpas.
- Sim, porque teria sido honesta comigo, né? - Falei num tom ainda mais rude que o do Mark, causando um climão ao ponto do Mark ter pousado sua mão sobre o meu braço, tentando me controlar.
O climão causou um novo silêncio, mas pouco tempo depois, o Mark assumiu novamente a condução dos “trabalhos”:
- Bom, mas uma coisa precisamos reconhecer, a Lucinha está tendo uma baita coragem em assumir e te contar tudo isso assim “tête-à-tête”. - Falou e me deu um tapinha nas costas e encarou a Lucinha novamente: - Mas a história parece não ter terminado aí, né, Lucinha? Aconteceu mais coisa, não aconteceu?
- O Mark está certo, Lucinha. Se você quiser o perdão do Gervásio, o melhor que você tem a fazer é contar tudo em seus mínimos detalhes. Acho que, hoje, essa é a sua melhor chance de salvar o seu casamento. - Disse Fernanda, encarando-me.
Mesmo contrariado, balancei a cabeça afirmativamente e voltei a encarar a Lucinha. Ela deu uma profunda suspirada e voltou a falar:
- Eu não me lembro bem como, mas… Sei lá como, comentei com o Roger, num dia em que apenas eu e ele conversávamos sobre aquela…
- Só conversavam? - Perguntei, interrompendo-a.
- Sim, só conversa mesmo! Só houve uma vez em que me masturbei assistindo eles transarem. É que… eu… ah, sei lá… Acabei me envolvendo naquele dia e aconteceu. - Ela explicou já voltando ao assunto interrompido: - Então… falei sobre aquela recepção da alta roda que você foi convidado, lembra?
- Claro que me lembro, foi lá que eu tomei meu chifre. - Falei, inconformado, chateado e cutuquei, sarcasticamente: - Bom… Pelo menos o real, porque o virtual em já tinha tomado há tempos, né!?
O olhar da Lucinha era de pura derrota. Pela primeira vez, acreditei piamente que ela havia entendido o tamanho da burrada que havia feito, em todas as suas vertentes. Eu, pessoalmente, não acreditava na reconciliação, mas queria sair dali, pelo menos, sabendo tudo o que havia acontecido e ela parecia bastante disposta em falar:
- É, eu… - Suspirou profundamente e me olhou triste, mas disposta: - Ah… O Roger quando soube que nós iríamos imediatamente imaginou ser uma ótima oportunidade para me conhecer pessoalmente e perguntou se eu estava disposta a “jogar um jogo” para testar seus limites. Acabei topando, mesmo com um pouco de medo da sua reação e, bem… aconteceu o que aconteceu.
- Meu chifre! - Fingi comemorar.
- Gervásio, por favor… - Mark o recriminou: - Deixa a moça falar.
Balancei a cabeça afirmativamente, desculpando-me sem a mínima vontade de me desculpar e ela retomou:
- A princípio, a ideia era só ficarmos no flerte, apenas para testar suas reações, mas conforme conversávamos e avançávamos pouco a pouco nas conversas, toques, na intimidade de uma forma geral, você não reagia, apenas me olhava, às vezes invocado, às vezes sorrindo, eu… eu fiquei perdida! O Roger, por sua vez, disse que você provavelmente tinha um tal de “tesão de corno enrustido”. Como eu não entendia muito bem essa coisa, ele me explicou que você queria ser corno, mas não tinha coragem de assumir e, por isso, ficava nessa de ficar invocado, mas sem reagir.
- E você acreditou nele? - Perguntei, sob o olhar cada vez mais curioso da Fernanda que a encarava de olhos arregalados.
- E por que não acreditaria? A sua postura, suas reações confirmavam cada coisa que ele me falava. - Ela rebateu de forma firme: - E isso foi dando mais gás para as investidas dele que passaram a ficar cada vez mais ousadas. Daí, teve o leilão do colar que ele arrematou e me deu…
- Com o qual te comprou, você quer dizer… - A interrompi.
- Me comprou ou nos comprou? - Ela retrucou: - Porque você não reagiu ou se opôs em nenhum momento quando ele me deu, até o elogiou que eu me lembro bem.
- Isso não muda nada.
- Muda sim senhor! - Ela agora o enfrentava: - Se você não queria, se você estava incomodado com tudo o que estava acontecendo, por que não me falou? Você me cobra honestidade, transparência e o diabo a quatro, mas se esquece que você mesmo não foi honesto no dia, deixando tudo acontecer.
- Mas eu acreditei na sua fidelidade. Nunca imaginei que faria aquilo com uma pessoa que eu imaginava que tinha conhecido naquele mesmo dia.
- E eu acreditei na sua cumplicidade. Imaginei que você estivesse realizando uma fantasia comigo que tantas vezes encenamos em nossa cama. Eu errei!? Tudo bem, eu errei sim, mas você também errou e não pode negar isso, pode, Fernanda, Mark? - Ela dirigiu sua pergunta para o casal que ouvia tudo, calado.
O casal se entreolhou por um instante e notei que Mark levantou uma das sobrancelhas enquanto encarava a Fernanda, provavelmente um sinal entre eles. Fernanda, por sua vez, levantou ambas as sobrancelhas e baixou os olhos por um segundo, tempo suficiente para o Mark assumir a palavra:
- Eu não acredito que a minha conclusão possa ser útil para qualquer um de vocês, mas…
- Agorinha há pouco você apontou o dedo para mim, dando a sua opinião, praticamente dizendo que eu estava errada. Agora sou eu que quero ouvi-la sobre as reações do Gê naquele dia. Você acha que ele agiu certo?
O Mark se calou por um instante, sob o olhar de todos, olhando para mim e depois voltando seu olhar para a Lucinha:
- Ok… Não, não acho que o Gervásio tenha agido de forma correta também. Da mesma forma como ele cobra transparência de você, você tem o direito de cobrar dele também. - Mark falou e depois me olhou: - Desculpa a franqueza, mas no momento em que você viu que a coisa poderia desandar, deveria, ouça bem, deveria ter chegado na sua esposa e cobrado explicações. Daí em diante decidiriam juntos ou ela arcaria sozinha com as responsabilidades de seus atos.
Fiquei perdido com a invertida que o Mark deu em mim e fui procurar guarida nos olhos da Fernanda, mas ela também não quis aliviar:
- Ela errou, Gervásio, você também. Não sei nem se seria caso de avaliar quem errou mais, mas ambos erraram naquele dia.
Fiquei irado, quase a ponto de brigar com eles também, mas concluí que isso de nada adiantaria. Eu precisava pensar com calma antes de tomar qualquer decisão e pedi um tempo para ir ao banheiro. Levantei-me e fui, mijei, lavei o rosto e na volta notei que Fernanda e o Mark conversavam a sós na mesa:
- Por que você se insinuou para a Lucinha quando nós chegamos, mor? Eu te conheço e sei que aquele não foi um beijinho normal.
- Não mesmo! Eu só quis testá-la, tentar saber se ela não seria uma ninfomaníaca.
- Só com um beijo?
- Uai, Nanda, se ela fosse uma ninfo, tarada, só com um beijo e uma boa dose de charme, eu já a teria desconcertado inteirinha. Só que ela reagiu com tranquilidade à minha abordagem, até meio reticente, o que prova que um desequilíbrio aparentemente ela não tem.
- Tá, mas e daí?
- Ara, mulher, se ela não tem desequilíbrio algum, tudo o que ela fez foi de caso pensado e agora sabemos até meio premeditado. Então, ou ela fez porque quis, pouco se importando para o Gervásio, ou realmente ela fez porque achou que ele estava dando permissão.
Por mais dolorosa que aquela conclusão pudesse ser, não era de todo errada, mas agora, além da odiosa traição que eu sofrera naquele dia, tinha também tomado conhecimento que a minha esposa já vinha me traindo virtualmente há tempos e isso criou uma outra mágoa em mim. Voltei para a sala e eles se calaram com a minha aproximação. Perguntei onde estava a Lucinha e eles disseram que ela havia ido até a cozinha buscar alguma coisa, mas nem precisei ir atrás, pois em seguida ela retornou, trazendo tacinhas de licor de cacau para todos. Antes que ela nos servisse, me adiantei:
- Não precisa se dar ao trabalho, Lucinha, eu já estou de saída.
- Mas como? Por que? Eu… Eu pensei que a gente… Sei lá… Poxa, amor, por favor.
- Não! Por hoje eu já estou mais que satisfeito de informações e novidades. Chega! Vou embora, pensar em tudo o que ouvi e até amanhã te ligarei para decidirmos de vez nossa vida.
- Gê, Gê, por favor… Amor, fica… - Começou a gaguejar, inclusive choramingando.
Entretanto, eu, que já me sentia traído, independentemente de ter ou não parte da culpa no chifre que ela me pôs naquele evento, me senti um completo idiota por saber que ela havia premeditado todo um esquema com o Roger, ocultando tudo de mim. Aquilo tudo me dava um gosto amargo na boca e decidi sair antes de iniciar uma discussão. Lucinha abriu um verdadeiro berreiro quando abri a porta e se jogou de joelhos ao chão. Me doeu, mas ao mesmo tempo fiquei firme e saí porta afora, conseguindo ouvir apenas o Mark falar:
- Eu vou atrás dele e você fica com a Lucinha. A gente vai se falando.
Ele logo saiu pela porta atrás de mim, mas eu o contive:
- Nem precisa tentar, Mark, eu não vou voltar!
- Voltar!? Que voltar o quê? Vamos sair e tomar uma pra relaxar.
Como nós dois havíamos bebido, decidimos chamar um Uber e fomos até um bar que eu gostava de frequentar em “happy hours” com meus amigos, mas que, dado o adiantado da hora, não deveria ter ninguém da minha turma.
Chegamos e já fomos sentando numa mesa mais afastada. Eu pedi um uísque duplo com gelo e o Mark novamente no seu uísque cowboy. Eu ainda estava um pouco invocado com as conclusões dele e depois de virar meu copo, o confrontei:
- É sério mesmo que você acha que eu tive culpa no meu próprio chifre?
Ele deu um sorriso estranho, coisa de mineiro que eu não consegui entender de outra forma senão como uma brincadeira, pois veio seguido de um tapa em meu ombro e falou:
- Cara, “prestenção”: a Lucinha errou na recepção lá, isso é fato, mas não tem como você negar que também deu sorte pro azar. O relacionamento de vocês é relativamente novo e além disso você brincavam com a história do ménage. Então, ela tava ali… - Começou a falar segurando dois guardanapos, brincando sobre a mesa: - Palha e fogo, um chegando “pertin” do outro. Daí ela olhava para você, sabendo que vocês tinham aquela brincadeirinha entre vocês e você nada de se opor! E a palhinha chegando mais perto do fogo… Um presente do safado para ela e você nada! E a palhinha chegando mais perto do fogo… Uma dança agarradinha no meio do salão e você nada! Ó, ó, a palhinha quase encostando no fogo… Daí eles vão para um reservado e você nem “tchum”! Porra, a palhinha que já devia estar molhadinha de álcool fez “puf” quando encostou no fogo, cara.
Comecei a rir de nervoso com a forma que ele tentava explicar minha óbvia inação naquele momento, mas antes de eu reclamar, ele foi mais rápido:
- Agora, falando sério: ambos erraram, ela por agir sem a sua aprovação explícita e você por não fazer nada para evitar, mas eu entendo perfeitamente a sua situação naquele momento e talvez, digo talvez, eu tivesse agido da mesma forma. Só que, cara, quando a gente vê a merda quase acontecendo, tem que tomar a frente para não acontecer, e foi aí que você falhou.
- Você acha que eu deveria ter confrontado os dois?
- Não sei se os dois, mas ela!? Com certeza! Daí se ela assumisse tudo o que estava acontecendo nas “entrelinhas” e te pedisse permissão para ir em frente, você teria a possibilidade de concordar ou não, e ela de assumir as consequências, caso não concordasse com a sua decisão.
- Porra, Mark, e eu pensando que tinha sido tudo uma coisa de momento. Daí vem ela e me conta tudo o que falou… Caramba, cara, fui muito otário, muito, muito, muito…
- É como aquele ditado, meu caro, o corno é sempre o último a saber. - Ele retrucou e sorriu, desculpando-se na sequência.
Eu respirava lentamente, tentando colocar as ideias no lugar, fazendo um esforço imenso para não chorar, afinal, o conhecimento às vezes acarreta em dor e a minha era fortíssima. Logo, as imagens de lembranças de nossos bons momentos inundaram minha cabeça, bem como daqueles que sequer havíamos vividos ainda, de nossos planos, dos sonhos, filhos, família. Logo, o celular dele tocou e pela conversa, era a Fernanda:
- É, eu imaginei, mas está tudo controlado? Você consegue resolver aí?
- Isso é natural. Ela caiu em si e viu a merda que fez.
- Não sei. Não conversamos sobre isso, mas voltar hoje, eu não acredito.
- Tá. Fica com ela e qualquer coisa você me liga.
- Outro para você.
- Nanda, não força a amizade. Eu não vou falar.
- Tá bom, caramba, tá bom. Se eu não falar, você não vai me dar sossego, não é? Eu te amo! Tá bom assim?
- Tá, tá bom. Tchau.
Apesar dele ser muito hábil com as palavras, a verdade é que a traição da Lucinha havia começado muito antes da recepção e minha confiança nela que já andava muitíssimo abalada, agora praticamente inexistia. Não sei quanto tempo ficamos ali, mas ele respeitou meu silêncio e ficou ao meu lado em todo o instante. Depois de um tempo e boas doses de uísque, falei em alto e bom som:
- Vamos resolver isso de vez. Eu quero o divórcio. Resolva para mim, doutor.
OS NOMES UTILIZADOS NESTE CONTO E OS FATOS MENCIONADOS SÃO FICTÍCIOS E EVENTUAIS SEMELHANÇAS COM A VIDA REAL É MERA COINCIDÊNCIA.
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