Passou janeiro. Fevereiro as aulas começaram. Março, bem... março é quando a coisa começa a complicar.
Há um ano eu fingia pra minha mãe que eu tinha ido a um congresso, que eu tinha que dormir na casa do Vagner ou de outro colega pra fazer trabalhos, que tinha coisas pra fazer. Um ano!
Desde que me entendo por gay, minha mãe sempre cobrou namoradas. Mas eu nunca a satisfiz.
Se tinha uma coisa que me apavorava era quando a minha mãe me dizia do nada: faz tempo que eu quero te perguntar algo...
E eu retrucava: ah...pergunte.
Durante anos a minha mãe fez isso. Mas as palavras que se seguiam eram sempre perguntas bobas do tipo ...Onde você deixou a escova de cabelo? ...Você vai pra festa da sua prima? ...Cadê o dinheiro que eu te dei semana passada?
Me acostumei a ouvir aquela frase que a minha mãe usava pra fazer perguntas.
Não lembro o dia, mas em março de 2001 eu estava no computador. Minha mãe chegou da rua, entrou no quarto, ouvi o barulho de chuveiro, depois saiu do quarto e veio ao meu.
- Faz tempo que eu quero te perguntar algo.
- Fala mãeVai falar? Ah olha só, a Dona Fabrícia deixou um pacote pra você.
- Me diga com sinceridade: quem é o cara que vem te buscar de carro na esquina?
Hã? Como assim? Que pergunta é essa? O que ela sabe?
Olhei pra ela fixamente. O olhar dela era de tristeza, era como se ela soubesse, mas quisesse ouvir da minha boca, ou desconfirmar o que sua consciência já tinha confirmado, ou alguma vizinha fofoqueira tivesse deixado escapar.
Meu coração simplesmente não batia. Meus dedos ficaram pousados sobre o teclado do computador, enquanto um monte de kslmalddklsnmmmmmmmmmmmdksalllllllllllsmkdllllllll eram digitados no Word.
Minha boca se abria de leve e eu só queria que ela tivesse entrado no quarto e tivesse perguntado se eu queria pão ou bolo pro jantar.
- Não entendi a pergunta.
Isso foi o bastante pra que o tom de voz dela mudasse do tom aflito e dócil para um tom acusativo e agressivo.
- É claro que você entendeu. Você, às vezes, entra no carro de um cara nas esquinas por aí. Por que ele não pode buscar você aqui na porta de casa?
O que você tem a esconder?
- Mãe, é sério; não estou entendendo. - lágrimas começavam a surgir em mim.
- Como não está entendendo? Você acha que eu sou burra? É o tal de Vagner?
- Não mãe, o Vagner tem moto.
- Então quem é o macho com quem você anda saindo?
- Haha... – nervosíssimo - Como assim, mãe? Você acha que eu sou gay?
- Eu não sei. Me diz você se é gay ou não.
Meu falso sorriso se desfez e a minha boca queria expressar o que a minha cabeça já concluíra: não dá mais pra voltar atrás. Respirei fundo...
- Tá bom, mãe; vamos conversar. – ela me interrompe.
- Ah, não acredito! Eu sabia, eu sabia. O que eu fiz pra você fazer isso comigo?
- Você não fez nada.
- Então por que você está fazendo isso comigo?
- Mas eu não fiz nada contra a senhora...
- É; só jogou a educação que eu te dei no lixo!
- Mas mãe eu... nem sei como dizer.
- Você é um viado! Como é que se explica isso?
Não se explica! Realmente, isso não se explica. Alguém aqui já tentou se explicar pra si mesmo? Aposto que perguntas não faltaram e não faltam até hoje, mas ninguém nunca me explicou o tal do por que eu?
- Mãe, eu não tenho controle sobre isso... aconteceu.
- E você não pode evitar?
- Como se evita isso?
- Ele te corrompeu? Ele te corrompeu!
- Mãe, ele não fez nada, eu já sinto isso há muito tempo.
- Quem abusou de você?
- Haha... mãe isso... – ela interrompe.
- NÃO RIA! ESTÁ ACHANDO GRAÇA?
Quando ela me perguntou isso, eu só pude sentir uma pancada no meu rosto.
Aquela mesma mão que um dia me fez cafuné quando eu estava doente, que fazia o lanche da minha escola, que me puxava pelo braço pra ir ao shopping e me comprar brinquedos, agora me batia em sinal de repreensão.
Quando a mão dela voltou junto ao seu corpo, o meu sorriso nervoso voltou a se desfazer e as lágrimas não se contiveram.
Se tem uma coisa que eu sempre tentei segurar em anos me reprimindo, foram as lágrimas.
Elas, ao contrário do resto do meu corpo, sempre teimavam em desobedecer os meus comandos. Se eu me censurava e o meu corpo sofria com isso, as lágrimas tratavam de me mostrar que eu estava me enganando, ou pior, me matando.
Esse dia não foi diferente; só que essas lágrimas tinham outro sentido, elas iam rolar por cima de um rosto e não mais uma máscara.
- Você acha que é fácil pra mim? – falei em tom sóbrio, sério.
- E pra mim que tenho um viado como filho?
- Eu não escolhi nascer assim, eu simplesmente nasci. Quer culpar alguém? Ótimo, se culpe! Porque eu não me culpo, eu não tive escolha. Você nasceu morena, mulher, cabelos encaracolados e olhos escuros. Você não teve a chance de escolher tudo isso, mas nasceu assim.
- Não compare... isso não tem nada a ver.
- Você sente tesão quando vê um homem que te atrai, você não escolheu por sentir isso, você simplesmente sente, você não tem controle, eu também não.
- Isso não é normal.
- Normal ou não, eu não tenho escolha, se eu pudesse escolher, você acha que eu escolheria isso? Pra quê? Pra viver escondido? Temer dedos apontados pra mim dia e noite? Ser censurado na escola, faculdade e trabalho? Sentir o peso da mão da minha mãe na minha cara?
- Trate de parar de sair com esse viado. Você vai virar homem e que ninguém saiba que você teve uma recaída - disse isso saindo do quarto, encerrando a conversa.
- Pare! Isso não é uma recaída. Por acaso você já teve uma recaída e trepou com uma mulher?
Ela veio furiosa pra cima de mim e eu me esquivei.
- ME RESPEITE, SEU CACHORRO!
- É justamente isso que eu quero que a senhora entenda: isso não é desvio de comportamento ou de personalidade, isso não é passageiro. Eu sou assim e ponto.
- Pois bem; pegue o seu ponto, junto com as suas coisas e saia da minha casa.
- Hã?
- SAIA DA MINHA CASA, EU NÃO QUERO VER VOCÊ NUNCA MAIS!
Agora era eu quem não queria mais papo.
Desliguei o computador, peguei uma mochila, pus algumas roupas, um tênis, desodorante, todos os meus livros e materiais da faculdade e passei no quarto dela.
Ela estava de bruços na cama, deitada, chorando. Quando me viu, fez cara feia.
- Já estou indo embora. Espero que saiba o que está fazendo.
Peguei o celular e o carregador. Abri a porta, passei pro portão, fechei-o com a chave e depois joguei-a por cima do muro.
Depois de uma boa olhada naquele muro, não olhei mais pra trás.
Cheguei no ponto de ônibus e por sorte ele estava vazio. Peguei o celular, disquei o número do Henrique.
- Oi, amor! Não posso falar agora porque estou em aula. - o que ele disse nada influenciou, foi só ouvir a voz dele que me desabei no choro e desliguei.
Sentei no ponto, pus o celular do lado, coloquei as duas mãos no rosto e chorei.
Segundos depois, ele liga.
- Onde você está que eu estou indo te buscar agora?
- Eu... eu... Rique...
- NÃO ME DEIXA NERVOSO, B, ONDE VOCÊ ESTÁ? FALA!
- Eu estou no ponto.
- QUE PONTO?
- De ônibus.
- ONDE?
- Perto da minha casa.
- ONDE, B; EXPLICA MEU AMOR, FALA COMIGO! - berrando como nunca tinha ouvido antes; parecia até uma bronca.
- Aquele perto do bar. - ouço um desligar de telefone.
Não entendi. Até o meu choro cessou. Fiquei achando que ele viria logo mas, como eu já disse aqui antes, Einstein me disse que quando queremos que algo aconteça logo, demora a acontecer.
Relativisando! Minutos viraram horas na minha cabeça e eu já achava que o Henrique não viria.
Então, cismei em pegar um ônibus e ir para o apê dele e esperá-lo. Por sorte, nenhum ônibus estava passando e logo vi um carro familiar surgindo no horizonte. Veloz.
Ele freou bruscamente, desceu do carro como um foguete, bateu a porta agressivamente. Correu em minha direção e me abraçou.
- Menino, o que houve?
- Minha mãe me expulsou de casa.
- Por quê?
- Ela descobriu.
- Que você é gay?
- Tudo! Ela perguntou quem era o cara que me buscava nas esquinas do bairro.
- Tá, B, não fala mais nada. Entra e você vai pra minha casa.
Precisei de ajuda pra entrar.
Joguei minha mochila no banco de trás e pedi pra ele pegar o meu celular que estava no banco do ponto.
Ele entrou, pôs as duas mãos no meu rosto e me olhou com lágrimas nos olhos.
- Você não precisa chorar mais, você está livre agora!
Ele me abraçou forte, choramos um pouco no ombro um do outro; ele ainda passou a mão no meu rosto e arrancou com o carro.
Ele me levou para o apê dele e me ajudou a tirar a roupa.
Fiquei peladinho e ele me deitou na cama.
Saiu em direção ao banheiro. Acho que apaguei, dormi. Depois de um tempo, eu sinto que estou flutuando e quando me dou conta, ele estava me carregando para o banheiro.
Eu senti o meu corpo sendo invadido por uma substância relaxante e de temperatura alta. Eu estava numa banheira com água morna.
Quando a minha cabeça repousou no encosto da banheira, abri os olhos e vi o Henrique ajoelhado me olhando.
- Esse banho quente vai te fazer bem.
Me deixou lá e senti meu corpo relaxando, os nervos se aquietaram e eu
voltei a dormir.
Quando dei por mim, era noite e eu estava vestindo uma blusa branca enorme e uma cuequinha.
O Henrique estava deitado do meu lado, comendo sucrilhos e com uma caneca de café em cima do criado mudo.
Ele assistia o jornal e eu somente abri os olhos e o observava. Tive medo de mostrar pra ele que eu estava acordado. Tive medo do que ele poderia dizer.
Depois de acordar daquele sono sem sonhos, tive medo do que o novo dia me reservava.
O intervalo comercial apareceu na tv e ele voltou o seu olhar pra mim.
- Nossa! Que susto, B; que olhão aí me olhando! - a cara de susto mudou para uma cara de amparo - Tudo bem? Se sente melhor? - balancei a cabeça com um sinal positivo. - Hum, vem cá vem, deixa eu te abraçar.
Colocou a caixa de cereais no criado mudo e me abraçou. Ele estava quente e eu um pouco frio, porque mesmo tendo tomado banho quente, a minha pele molhada deve ter tido contato com o ar, me esfriando.
Eu só lembro de ter sentido as mãos dele nas minhas costas me acariciando. Acho que dormimos assim, sem dizer uma palavra.
A manhã era diferente porque nada seria como antes a partir do meu
espreguiçar.
O Henrique não estava na cama quando acordei, mas logo senti cheiro de comida que deveria vir da cozinha. Fiquei um pouco deitado na cama, pensando no que seria a minha vida dali pra frente. Tudo novo: teto novo, vida nova, esconderijo novo... Não é só porque a minha mãe sabia que eu
ia sair por aí gritando aos quatro ventos o que eu era.
Me agarrei aos lençóis e pensei nas pessoas que iriam me afastar de suas vidas quando descobrissem. Várias mãos me empurrando apareceram na minha mente: meu pai, meus avós, primos, tios, amigos... o Vagner, a Ana.
Agora eu só conseguia enxergar poucas mãos se oferecendo para me ajudar nessa nova empreitada. Eram pessoas totalmente desconhecidas... a família do Henrique, principalmente os seus pais. Me agarrei mais aos lençóis e chorei.
Saí da cama, escovei os dentes, lavei o rosto e desci.
Encontrei um homem lindo e contente fazendo ovos mexidos. É, parece que estava valendo a pena o sacrifício.
- Bom dia, marido!
- Bom dia! Mas não casamos ainda.
- É questão de tempo... aliás, é questão de outras coisinhas também.
- Do quê?
- Nada. Vem comer que você já está atrasado pra faculdade.
- Ah, não sei se vou hoje, Rique. - com uma cara meio chorona.
- Hum... entendo; talvez seja melhor mesmo. Eu comprei muita comida esse mês pro apê, fique!
Comi, lavei o prato e o abracei por minutos. Ficamos em pé, na cozinha, sem dizer uma só palavra.
Ele passou a mão no meu rosto, me beijou e disse que tudo ia acabar bem, que eu não devia me preocupar, pois ele cuidaria de tudo.
Tomou banho, vestiu a roupa, pôs o jaleco nos ombros e seguiu pra faculdade.
Se eu já me sentia minúsculo naquela cobertura, nesse dia me senti um grão de areia no meio daquelas paredes.
Era estranho saber que, a partir de agora, elas seriam a minha morada. Com a roupa que dormi, fiquei o resto do dia. Não fiz nada de nada. Além de não ter cabeça, não tinha forças.
Tomei sorvete no almoço e biscoito no jantar. Vi TV o resto da noite.
O meu celular tocou.
- Oi, Vagner.
- Nem foi hoje, por quê?
- Coisas...
- Se são coisas, é porque você não quer contar, né?
- Como foi a aula hoje? - mudando o assunto.
- Boa e importante, por isso liguei. Professor passou trabalho em grupo, você está no meu, tá?
- Hum...
- Você está bem?
- Trabalho sobre o quê? - sou especialista em mudar o assunto.
- Antropologia aplicável, tipo, estudar algum grupo social e aplicar o assunto já passado, na matéria, na análise desse grupo.
- Sei, gostei! Que grupo é?
- Não está definido ainda. O trabalho é longo e é pra próxima semana que ele quer. Você vem amanhã pra gente resolver?
- Aham.
- Tá ok, era só isso... Você está bem mesmo?
- Hum... olha só, acho que amanhã mesmo eu já levo umas ideias de grupos sociais.
- Por que nunca me surpreendo com esse seu humor?
- Não sei do que você está falando, mas espero que seja um elogio. Haha.
- Sei... ok; Tchau, cara!
- Tchau!
- Ei!
- Fala.
- Conte comigo sempre!
Desligou.
Será que eu poderia contar? Correr o risco de o Vagner ser um homofóbico e eu perder a sua amizade? Sei lá... isso não importava muito agora; só conseguia pensar na minha mãe. Ela deveria estar muito mal, pior que eu.
Não por ser mulher, por ser mais velha ou por ser mãe. Ela estaria pior que eu porque emocionalmente falando, já aguentei mais que qualquer outra pessoa que conheço.
O coração de um gay reprimido é uma arca de chumbo, feita para suportar os maiores golpes que o mundo pode desferir contra ele. Eu sei o que é esconder o que se sente!
Henrique chegou e me encontrou no sofá, deitado, com um pote de bolachas em cima da barriga, o controle na mão e uma cara de nada.
- Viu? já estou treinando pra ser seu marido, só falta eu te mandar buscar a cerveja na geladeira e sair da frente da TV pra ver o jogo.
- Você nem gosta de futebol. – ele falou irônico.
- Não importa; vai já pegar a cerveja - apontando pra cozinha.
- Nem depois do que aconteceu você para de brincar...
- Meu humor sempre foi a minha armadura pra me proteger do mundo; não sei viver sem.
- E eu não sei viver sem você!
- Oh! Para; está me deixando vermelho.
- Casa comigo, Benjamim?
- Caso, quando aprovarem no congresso, eu caso.
- Sério, B; casa comigo?
- Como assim?
Ele tira uma caixinha do bolso e vejo que dentro, uma aliança dourada brilha.
Ele me olhava com uma cara de pidão, enquanto a minha boca se abria de tão surpresa.
- Você é louco!
- Casa comigo?
- Você... você, nossa!
Não contive as lágrimas e comecei a chorar.
Nos abraçamos, beijamos; ele pegou minha mão, foi colocando a aliança no meu dedo anelar e depois me deu a aliança dele pra eu pôr.
Parece que casamos. Agora, eu sou um homem casado.
- Te declaro meu marido e meu amante pro resto da vida .
Nos beijamos e ficamos ali, deitados no sofá, assistindo TV. Eu nos braços dele, com a cabeça sobre o peito, deitado de bruços e ele me fazendo cafuné.
O dia foi ociosos, mas curiosamente eu estava cansado.
Acho que assumir algo assim pra minha mãe me fez perder muitas calorias.
Acordei no dia seguinte sem o Henrique de novo na cama.
Já estava acostumado com isso. As únicas vezes em que eu acordava e ele estava ao meu lado era porque ele não iria estudar ou residir no hospital.
Só que dessa vez, parece que eu tinha dormido demais e vi que estava atrasado pra faculdade. Lembrei do trabalho que o Vagner tinha me ligado pra comunicar. Saí da cama como um louco, tomei banho às pressas, vesti qualquer coisa, peguei umas bolachas na cozinha e pus na mochila. Saí
correndo.
Quando passei pela portaria, o porteiro disse bom dia senhor pra mim.
Achei aquilo estranho. Acho que era porque eu não tinha o costume de sair pela porta da frente; sempre saía pelo estacionamento, mesmo quando estava sem o Henrique.
Estranhei também o senhor, mas estava atrasado demais para questionar as estranhesas da minha cabeça naquele momento.
Parecia que eu estava há anos fora de casa e que vivia numa outra realidade.
Foi uma sensação estranha saber que a partir de agora aquele seria o percurso que eu faria comumente pra faculdade. Era estranho saber que o meu endereço tinha mudado e que eu era órfão de mãe.
Subi no ônibus pensando sobre qual grupo social merecia um estudo antropológico mais aprofundado. Devia isso ao Vagner, por ele ter livrado a minha cara no trabalho e por eu ter prometido também.
Não me veio nada, a não ser os homossexuais.
Não, isso não! - retruquei na cabeça.
Me veio os mendigos, as patricinhas, os roqueiros, as empregadas domésticas, mas todos pareciam temas gastos e clichês.
Homossexuais, Benjamim, homossexuais.
Desci do ônibus brigando comigo.
Cheguei na biblioteca e fui aplaudido ironicamente pelos meus companheiros:
- Aê! Viva, ele veio.
- Olha só, me sinto menos pobre agora, ele parece que se importa conosco; haha... – a Ana.
- Desculpa aí o atraso!
Começamos a fazer um cronograma do trabalho. Sempre fui bom em ser objetivo e em organizar isso. Pra mim era moleza, então, logo o esquema estava amarrado.
.
- Falta o grupo social agora. - o Vagner, me olhando.
- É, eu sei que eu prometi, mas eu não pensei em nada. – menti.
- Eu só pensei naqueles que todo mundo faz: mendigos, empregadas domesticas. – disse a Clarinha.
- Eu soube que o grupo do Murilo vai fazer sobre o pessoal do candomblé.
- Poxa! super criativo, dá pra fazer um estudo antropológico bem complexo e legal.
- Do jeito que você gosta, hein?
- Pois é.
Fiquei relutando contra a ideia de fazer a pesquisa sobre um grupo de homossexuais. Eu sabia que poderia ter outras ideias tão boas quanto essa, mas nada vinha na cabeça.
O Vagner é especialista em matéria X, os outros nas matérias Y, Z... Eu era especialista nessa e todos sabiam disso e contavam comigo.
Apesar da minha mãe já saber, achei que os meus amigos não precisavam. O controle sobre esse segredo sempre foi forte em mim. Eu tinha que fazer algo e soltei:
- Homossexuais.
Todo mundo ficou me olhando sem entender nada e eu fiquei desesperado por dentro.
Mas o Vagner me olhou estranho e disse:
- Você escolheu isso e não foi à toa.
- Como assim?
- Você deve ter uma estratégia.
Apesar do pânico que me invadiu a alma, eu realmente tinha uma estratégia. Dentro do esquema que eu esbocei, eu poderia dominar qualquer assunto e grupo. Soltei o verbo:
- Então, dentro desse esquema aqui, eu acho que eu consigo desenvolver bem e tal... Tendo em vista a importância desse trabalho na nota e da complexidade dos outros grupos, acho que deveríamos escolher algo polêmico e que levassem as pessoas a discutirem. Isso põe em xeque as opiniões, praticamente obriga as pessoas a discutirem. Os temas dos outros grupos são bons, de fato, mas esse é muito atual e presente, quem sabe até mesmo presente nas famílias deles. Se soubermos dominar o assunto e passá-lo de forma clara, a gente ganha a maior nota.
Nunca defendi uma ideia com tanto fervor! As palavras pareciam ter sido decoradas para aquele momento.
- Acho que ninguém discorda, né? – A Ana perguntou.
Diante da minha defesa apaixonada, não houve ideias contrárias.
Agora só bastava sair em busca de um grupo, estudá-los e registrar tudo em palavras e ideias.
Eu sentia medo, porque sempre soube que os gays têm feeling pra saber quem é gay ou não.
Pesquisamos sobre alguma associação ou tipo de ONG que se dedicasse ao assunto. Não imaginava que tinham tantas.
Mais surpreendente para mim era o número de pessoas, homens e mulheres, que se assumiam. De mim, tinham admiração pela coragem, algo que, se eu pudesse, nunca faria.
Tarde demais!
Ligamos para algumas associações, fizemos alguns contatos, principalmente com o núcleo gay na nossa universidade.
Universidade Federal tem uma coisa estranha: parece que você literalmente, dependendo do curso onde você esteja, lá é uma área onde as opressões conservadoras não têm espaço. Mesmo se houver alunos que sejam homofóbicos, racistas, contra algum tipo de manifestação religiosa ou artística, talvez no mundo real, essas pessoas teriam seus espaços garantidos, mas na universidade, essas pessoas têm vergonha de ser quem são.
Usamos isso a nosso favor. Procuramos os núcleos de minorias e fomos bem recepcionados.
Fizemos um bom trabalho no nosso primeiro dia e já deu pra amarrar bem as ideias de pesquisa de campo. Entramos em contato com uma associação que tem muita credibilidade no meio social da nossa cidade e marcamos visita.
Fizemos tudo isso sem sair do campus. Depois de tudo decidido, cada um seguiu o seu caminho, mas eu sempre ficava um pouco na biblioteca, então fui pra lá.
- Espera Benjamim, eu também vou. – Vagner.
- Cadê a Ana?
- Foi pra casa.
- Tá.
- Faz um tempo que eu quero ter uma conversa séria com você.
Não.
Outra dessa na mesma semana não rola! Que mania que esse povo tem de introduzir uma fala desse jeito tão angustiante, me causando aflição, deixando um suspense no ar.
- Fala - temendo o que viria.
- Você tem estado estranho ultimamente. E mais estranho essa semana.
- Não sei do que você está falando.
- É simples; você não é mais o mesmo cara que eu conheci no início do nosso curso.
- Claro que não... a vida no campus muda uma pessoa... Você também mudou.
- Não é disso que eu estou falando. Você está diferente, eu não gosto de estar de fora da sua vida; somos amigos, amigos de verdade.
Não sei se isso aconteceu, acontece ou acontecerá na vida de um universitário, mas o fato de você se inserir num ambiente totalmente novo, ares novos, pensamentos novos... te assusta, ao mesmo tempo que te seduz e te encanta.
Isso aconteceu comigo e com todos os meus amigos, semestre a semestre, inclusive o Vagner.
Estou falando isso porque à medida que nos encantamos, ficamos perdidos e assutados naquela situação tão inusitada. Bons tempos de calouro!
E é justamente nessa aflição que as amizades fortes se formam, porque vemos no outro um pouco de segurança, de início, um apoia o outro. Depois de um tempo, é como se nos tornássemos irmãos de tão unidos.
Isso aconteceu entre mim e o Vagner.
Era estranho e ao mesmo tempo tão bom...
Eu sabia que o Vagner não era gay, mas o que rolava entre a gente ia além do que se entende por comportamento homossexual.
Agíamos na ingenuidade e dizíamos que gostávamos um do outro sem se importar com as convenções morais. Ele tinha o direito de me perguntar, ele tinha o direito de saber, eu só não queria era ter que contar e correr o risco dessa amizade tão linda acabar.
- Você não pode esconder isso de mim; eu te conheço, sei que você está passando por uma fase estranha; você está diferente; até hoje eu nunca perguntei pra onde nem com quem você ia quando você me pedia pra eu te ajudar com a sua mãe. Quer dizer, perguntar eu perguntei, mas você nunca respondeu e eu te deixei em paz. A menos que você não leve a nossa amizade a sério, acho que mereço explicações e estou aqui na cara de pau exigindo isso de você.
- Eu tenho medo de contar e perder você. Se até hoje não contei é porque eu quero preservar o que temos.
- Você matou alguém? Roubou um banco? Tá usando drogas? Estuprou alguém ? O que de tão grave você fez?
- Eu não fiz nada! Não é nada disso.
- Então não vejo porque você não pode me contar. É algo contra mim?
- Não, não tem nada a ver com você.
Falávamos isso enquanto caminhávamos pra biblioteca.
- Então conte logo, tá me deixando preocupado.
- Eu vou contar. Vamos sentar em algum lugar?
Fomos até uma pracinha que tem lá na universidade e sentamos. Sentei no banco já prevendo o fim de uma amizade.
- Eu sei que te devo isso. Quando eu contar, não fique acanhado em dizer que a partir daqui, você vai ter outra postura diante de mim, que você não vai mais ser o mesmo e nem se comportar igual. Eu sei disso, portanto é melhor que depois que eu te contar, você seja sincero; pelo menos não vai me magoar.
- Fiquei com medo agora, Benjamim. É tão grave assim?
- Não sei; decida você se é grave ou não.
- Vai, conta!
- Eu sou gay.
- Eu sabia disso já...
- Hã? Como assim?
- O seu jeito de ser... – eu o interrompo.
- Eu sou afeminado?
- Não mesmo. Mas eu não estou falando disso, eu quero dizer o seu jeito de se comportar; essa sua repressão de sentimentos que você tem; você sempre me falava que queria ser mais solto, mas livre, eu ficava analisando a sua vida e não conseguia enxergar nada que te acorrentasse. Não sei como, mas uma vez eu pensei que algo que faz com que a gente se reprima muito é um grande segredo, Mas não consegui imaginar nada de tão grave que você poderia fazer, sendo que você é tão certinho, é tão CDF que as vezes até me irrita. Mas aí eu pensei que pudesse ser algo que você não escolheu pra si e logo me veio homossexualidade na cabeça e passei a enxergar você assim e tudo começou a se encaixar.
- Nossa, Vagner! E isso desde quando?
- Faz alguns meses.
- E você não se importa?
- Claro que não! Até gosto.
- Gosta? Você também é?
- Haha... não, né! Sai pra lá, eu sei eu sou gostoso, mas não vem dar desculpas pra dar em cima de mim não, hein? Meu assunto é outro
- Haha... Então por que você disse que até que gosta?
- Ah, porque eu sempre fui de expressar muito os meus sentimentos pelos outros, você sabe. E quando eu tinha os meus amigos homens na escola, eu nem podia abraçar, dizer que admirava, senão iam me zoar, mas não fui educado assim e isso me perturbava muito. Mas com você eu posso fazer tudo isso e eu sei que você não vai estranhar.
- Que fofo!
- Também não precisa ser tão gay, né? Haha...
- Hehe... Tem outra coisa que eu quero te falar: estou namorando, quer dizer, estou até casado. - disse isso mostrando o anel.
- O quê?
- É... Estou morando com ele e tudo - estava com um sorrisão no rosto.
- E a sua mãe?
Meu sorriso se desfez instantaneamente.
- Ela me expulsou de casa.
- Por quê?
- Porque ela não quer ter um filho viado.
- Não acredito!
- Acredite!
- Ei, quem é?
- Você nem vai acreditar se eu contar.
Depois que eu contei tudo...
- CARACAAAA! Você tá transando com o meu médico!
- Ai, Vagner! Haha... é muito mais que isso.
- Espera... Se você conheceu ele quando eu fui internado, então vocês... Caraca! Vocês estão juntos há muito tempo, então.
- Um ano.
- PQP! E você nem pra me contar...
- Agora você sabe; mas tem outro probleminha.
- O quê?
- Eu estou morando com ele, mas... sei lá... estou com vergonha, é estranho.
- Por que é estranho?
- Ah, eu nunca trabalhei, meus pais sempre me sustentaram; acho que a fase adolescência realmente passou, né?
- Pois é. Já está procurando emprego?
- Ohei os classificados hoje, mas não fui atrás de nada ainda, nem conversei com ele sobre isso.
Depois do papo, senti como se o Vagner fosse, agora definitivamente, o meu melhor amigo.
Era incrível conversar com alguém que realmente sabia quem eu era.
Isso era um sonho!
Voltei pro apê do Henrique, ou melhor, pra casa e decidi que, quando ele chegasse, eu conversaria com ele sobre emprego.
Ele chegou e eu o recepcionei como uma dona de casa faz: o abracei, beijei, peguei as coisas dele e pus em cima da mesa; fui tirando a blusa dele, sentando-o no sofá, tirando os sapatos e meias dele e perguntando como tinha sido o seu dia. Depois do papo Amélia, eu iniciei:
- Rique, estava pensando... Acho que eu deveria arrumar um serviço.
- Serviço? Pra quê?
- Uai! Agora não tem mais a molezazinha de pai e mãe me bancando.
- Claro, agora você tem a mim.
- E você vai me sustentar.
- Eu posso fazer isso.
- Não, obrigado! Prefiro trabalhar.
- Mas amor, eu ganho uma mesada boa, que dá pra mim e pra você tranquilamente.
- Não, Henrique... vai parecer oportunismo, ou melhor, é parasitismo, não quero isso .
- Que besteira, B.
- Não é besteira não senhor.
- É claro que é. Já disse que ganho o suficiente pra nós dois vivermos confortavelmente.
- Já disse, Rique. Mas não quero isso, quero ser independente.
- E por que você quer ser independente de mim?
- Porque não é justo que eu viva às suas custas, sou grandinho já.
- Além do dinheiro ser suficiente, eu não me importo com isso.
- Mas eu me importo.
- Não quero que trabalhe.
- Mas eu quero trabalhar, já estava na hora mesmo.
- Você não vai conseguir conciliar trabalho e estudo.
- Uai! Você consegue conciliar residência e estudo.
- Residência e estudo são a mesma coisa!
- Tá bom, Rique; não vamos brigar, tá decidido, vou trabalhar.
Ele fechou a cara e ficou chateado.
Mas aparentemente ele aceitou; viu que eu seria intransigente.
Ele estava super cansado do plantão e eu tinha peninha dele todas as noites. Imaginem aquele homenzarrão, lindo, todo cansadinho.