CAPÍTULO 4: NOITE AGRADÁVEL
NARRADOR: HECTOR
Eu não esperava terminar a noite em uma unidade de Pronto Atendimento (UPA). Enquanto sentia o gosto metálico do sangue em meus lábios, um médico idoso me atendeu e não parecia nada feliz em estar ali. Ele mal olhou para o meu rosto e afirmou que não havia nenhum tipo de concussão. "Uma briga de bar", essas foram as palavras ditas pelo médico ao definir o meu caso.
Droga, eu falei para Nataly que não precisava de atendimento, principalmente com a atitude do médico de plantão, um retrato de má vontade em forma de gente. Em todos os atendimentos do médico pude perceber uma aura de desinteresse.
Enquanto eu enfrentava a frieza do médico, do lado de fora, na sala de espera, estavam Nataly, João e José, o irmão gêmeo dele. A minha amiga mandou dezenas de mensagens, mas não respondi nenhuma. Só queria me livrar daquela situação chata e voltar para o meu apartamento.
— Coloque um gelo nesse machucado. — pediu o médico me entregando o prontuário. — E, por favor, nada de brigas. Existem pessoas com problemas reais. — soltou.
— Pode deixar, Doutor. — revirei os olhos, levantei e me segurei para não mandar esse idiota tomar no rabo.
Ao sair, encontrei uma ansiosa Nataly me esperando. Ela se aproximou e me deu um forte abraço, quase chorando, pois não tinha dinheiro para mandar me enterrar. Não muito longe dali, o João esperava de maneira tímida, enquanto o seu irmão dormia profundamente em uma das cadeiras da sala de espera.
Os tranquilizei e avisei que não havia quebrado nada de importante, além da minha dignidade, afinal, levar um soco em uma festa lotada pode ferir o orgulho de muitas pessoas, inclusive, o meu. Ainda retraído, o João se desculpou pela atitude do irmão e pediu para que eu não prestasse queixa na delegacia.
— Relaxa, João. Na verdade, o seu irmão estava coberto de razão...
— Hector, levar um soco de um estranho é inaceitável. — interveio Nataly, que cruzou os braços em forma de defesa.
— Amiga, eu o beijei. — ressaltei. — Ele é hétero. Pensei que fosse o João e o beijei. Se fosse o contrário, um estranho me beijando do nada, eu tenho certeza que agiria da mesma forma. — expliquei, pegando no ombro da minha amiga e piscando.
— Você o beijou? — quis saber João, fazendo uma careta engraçada.
— Sim. — respondi, morrendo de vergonha.
— Isso é verdade, mas violência não resolve nada. — soltou Nataly, suspirando fundo e apontando para José, que continuava dormindo. — O que vamos fazer com a bela adormecida? Ele arruinou nossa noite.
— Bem, se vocês quiserem... — João sugeriu, mas logo parou de falar.
— Aceito qualquer rolê, só quero sair deste hospital. — pedi, juntando as mãos em forma de súplica.
— A minha casa não é longe daqui. — ele disse sorrindo. — Vocês gostam de bolo?
B-O-L-O. Quatro letras e um significado que amo tanto. Eu sou o louco dos doces. Só Deus sabe o que eu sofro para me controlar no dia a dia. Receber a notícia, que a mãe dos gêmeos é uma doceira de mão cheia é um manjar dos deuses, literalmente.
No caminho, João envia uma mensagem para mãe e pede para que ela prepare a mesa. Pedimos um carro de aplicativo. O motorista ficou receoso ao ver José desmaiado, mas explicamos que ele não estava morto, apenas bêbado demais. Não demoramos muito para chegar a casa do João. Pagamos o motorista e descemos.
A casa de João não era impressionante à primeira vista, mas emanava um charme acolhedor. O jardim dianteiro, repleto de flores coloridas e arbustos bem cuidados, proporcionava um cenário encantador. Nataly sorriu, admirando a simplicidade que exalava ser um lar de verdade.
Observei cada detalhe com cuidado e curiosidade. Tive uma criação no mínimo estranha, já que a minha família valoriza muito mais o dinheiro do que as pessoas e os sentimentos. A casa de João transmitia uma autenticidade que não era facilmente encontrada nas melhores residências do Rio de Janeiro.
Ao entramos dentro da casa, fomos recebidos por uma calorosa mulher. Com certeza, deve ser a dona Esther, a mãe dos gêmeos. Ela exibia um sorriso enorme no rosto e usava uma touca na cabeça. "Sejam bem-vindos, meus queridos!", desejou para nós.
Em menos de um minuto, a minha amiga Nataly já se sentiu em casa e parecia uma metralhadora de informações, mas a atenção da dona Esther se voltou para o filho bêbado. Com a ajuda de João, ela levou o gêmeo alcoolizado para o quarto, enquanto a Nataly já estava à mesa se servindo com um pedaço de bolo.
— Nataly, — eu a chamo. — para com isso...
— Qual é, Hector. A tia é maravilhosa. Ela pediu para cortar o bolo. Quer um pedaço grande, pequeno ou médio?
— Quero um médio. — soltei, me dando por vencido e sendo servido pela minha amiga.
— Agora me conta essa história do beijo. — cochicha Nataly, contando o bolo e colocando em um pratinho. — Você pensou que fosse o João?
— Versão curta da história, — falei baixo, olhando para a Nataly. — o João é o ex-namorado do amante do Alex. A gente já se conhecia, mas perdemos o contato por um tempo. Eu vi o José, que pensei ser o João, e apertei o foda-se. Beijo o garoto. O garoto errado.
— Caramba, Hector. Você se arriscou? Tô cho-ca-da. — a Nataly me entregou a fatia de bolo.
Ao provar o bolo senti uma explosão de sabores em minha boca. O bolo era simples, mas delicioso, com certeza, um reflexo da paixão de Esther pela produção de doces. Olhei para Nataly, que saboreava cada mordida com a expressão de pura felicidade.
— Isso é melhor que uma balada universitária. — ela soltou de boca cheia. Assenti, pois era verdade.
De repente, mãe e filho (o filho certo) aparecem na cozinha. Começamos a bater um papo sobre diversos assuntos, mas decidimos evitar o tema 'beijo no José' para não pesar o clima. A doce voz de Esther é um tão agradável e tenho certeza que ela passa toda essa doçura para os seus quitutes.
"A melhor noite de todas!", pensei comigo mesmo. Passamos mais tempo do que o esperado na casa do João, porém, precisamos ir embora, mas a vontade é ficar para conversar mais e mais com ele. É como dizem: o que o cifre união, ninguém consegue separar.
— Eu posso tirar uma foto? — questionou Nataly, pegando o celular e assustando dona Esther.
— Não minha filha, eu não gosto de fotos. Vocês podem ficar conversando mais. Boa noite. — desejou a mulher, pedindo licença e indo para o seu quarto.
— Então, somos só nós três e esse bolo de morango delicioso. — disse Nataly, tirando a foto e nos marcando em suas redes sociais.
Na volta para casa, a Nataly afirmou que amou a mãe dos gêmeos, mas que sentiu uma vibração estranha dela. A minha melhor amiga é cheia de sensações. Eu amei o bolo e a doçura daquela mulher. O João tem sorte por ter alguém tão acolhedora e amável ao seu lado.
De volta à rotina, após uma noite divertida. Na noite anterior, troquei de número com o João e passamos a conversar sobre os mais diversos assuntos. Eu nunca imaginei fazer amizade com o ex-namorado-do-amante-do-meu-ex-namorado. De repente, o meu celular apitou é uma mensagem de Jayme Telles.
***
JAYME T.:
Confirmo a tua presença?
HECTOR:
Presença?
JAYME T.:
É o aniversário do papai. Mandamos o convite pelo correio. É importante a sua presença, viu. Estamos com saudades.
***
É verdade. O aniversário de Fernando Telles. Ele que me criou desde a morte dos meus pais. No papel de órfão, a família Telles me acolheu em um momento de necessidade. Dentro daquela casa, eu era tratado como um intruso pela maioria dos parentes, pois eles temiam que eu roubasse a herança deles.
A minha sorte é que meus pais possuíam diversos investimentos e deixaram vários documentos valiosos. Graças ao destino, o Sr. Fernando Telles teve toda a paciência para me auxiliar e entender todas as ações. Com isso, pude investir o dinheiro e consegui adquirir o meu apartamento, mas para não bancar todas as despesas resolvi dividir o espaço com a Nataly.
Enfim, todos os anos, lá estava eu, enfiado em um terno elegante, pronto para encarar o aniversário do Sr. Fernando. Como um filho do 'coração', eu também era obrigado a participar de todas as cerimônias e homenagens. Ao entrar na vasta propriedade da família Telles, fui recebido por olhares julgadores e sorrisos falsos. Eu era o estranho no evento, o intruso que não pertencia ao seleto círculo da alta sociedade.
Os convidados, todos trajados em roupas de grife, cumprimentavam-me com cortesia superficial. Eram sorrisos que não alcançaram os olhos, apertos de mão que mais pareciam formalidades vazias. Eu podia sentir o desdém, a desconfiança que pairava no ar sempre que meu nome era mencionado.
As conversas giravam em torno de negócios, propriedades e alianças familiares. Eu, que vinha de uma realidade distinta, me sentia como um peixe fora d'água. O mundo dos Telles era um espetáculo de fachadas, onde a riqueza comprava a lealdade, e as aparências eram mais valorizadas do que a verdadeira conexão.
No entanto, entre as figuras pretensiosas e os olhares de desaprovação, havia dois pontos de segurança para mim: Jayme e Patrícia Telles. Eles, ao contrário da maioria, me cumprimentaram de maneira amistosa. Jayme, com sua expressão de paz, e Patrícia, com seu olhar compreensivo, eram os únicos a enxergar além da minha origem.
Infelizmente, por trás daqueles olhares serenos pairava uma história horrível. O único filho de Patrícia e Jayme havia sido roubado da maternidade, um drama da vida real, que não teve um desfecho satisfatório. Por anos, os dois procuraram pelo filho, mas sem sucesso. Inclusive, parte do dinheiro da família foi investido em detetives e ações policiais, só que o herdeiro nunca foi encontrado.
A pior parte da festa foi ter que ouvir o discurso do Jorge, o filho mais velho do sr. Fernando. Ele é o responsável por gerir as empresas da família e sempre enxergou a minha existência como uma ameaça. Gastei muito dinheiro em terapia por causa desse babaca. Olhei para a Patrícia, que, dessa vez, não me olhava tão serenamente.
Ela estava com o celular em mãos e, de relance, vi a foto que a Nataly tirou na noite anterior. Com as mãos trêmulas, a Patrícia começou a me questionar sobre a pessoa na imagem. Ainda confuso, peguei o aparelho e confirmei as minhas suspeitas. Eram a Nataly, o João e eu.
— Amor, o que está acontecendo? — quis saber Jayme, querendo evitar um barraco na festa de aniversário do pai.
— Olha isso, Jayme. — Patricia puxou o celular das minhas mãos e mostrou a foto para o marido. Jayme analisou a imagem com cuidado e seus olhos arregalaram.
— He... Hector, quem é este rapaz na foto? — ele perguntou, olhando para o celular.
— É um amigo, o João. Porque?
— Não pode ser. — soltou Patrícia, antes de desfalecer e cair no chão.
— Amor?! — Jayme ajudou a esposa e a pegou no colo.
— E agora? — pensei, coçando a cabeça e seguindo o casal para dentro da casa. — O que o João aprontou?