(na sequência do conto “Doutoramento em amputação”)
Depois do sexo da noite, com prolongamento matinal e cumpridas as habituais tarefas com que se inicia cada dia, merecíamos o repouso dos guerreiros. Fomos até à sala de estar, a Gui tirou a perna de pau com que normalmente andava em casa e sentou-se, como na noite anterior, com a perna dobrada e o coto aconchegado na sola do pé. Sentei-me ao seu lado com o braço sobre os seus ombros.
Na mesa de apoio estava um volume de “Homo Deus”, um livro de Yuval Harari. Peguei-o e perguntei “Andas a ler isto? Já o li há uns anos e gostei bastante”; e começámos a falar daquele e de outros livros. Depois passámos para a música e ela “A propósito, porque não pões qualquer coisa a tocar para ouvirmos?” Fui até à estante dos discos e enquanto íamos falando fui dedilhando as capas dos vinil, hesitante na escolha, até que esbarrei com o álbum “The Future” de Leonard Cohen. “Olha, já que estamos em maré de israelitas, vamos ouvir o velho Cohen”.
Quando voltei para o sofá, a Gui tinha-se recostado sobre uma almofada com a perna estendida. Levantei-a gentilmente, sentei-me, coloquei-a no colo e comecei a massajar-lhe o pé. O ponto de vista era magnífico! O pé lindo, quente e macio nas minhas mãos, em primeiro plano, em segundo plano adivinhava-se a forma do coto sob o robe e, finalmente, a cara da Gui com um sorriso de satisfação. Talvez esse sorriso me tenha dado confiança para perguntar como é que tinha sido descoberto o tumor que lhe havia roubado a perna esquerda.
“É uma loooonga história. Era muito jovem e já andava há tempo com umas dores, mas ninguém ligou importância; pensavam que eram as dores do crescimento, mas certo dia dei uma queda estúpida, que à partida não devia ter consequências, só que parti a perna. Exames para cá, exames para lá, descobriu-se um osteossarcoma no fémur, perto do joelho. A partir daí foi uma via-sacra, cirurgia para recuperar o osso quebrado e raspar o tumor, vários meses de quimioterapia, outra cirurgia, mas nada conseguiu vencer a voracidade do cancro e no dia 10 de fevereiro de 1977, mais ou menos um ano depois, tornei-me oficialmente amputada. É o meu ampuaniversário! Enfim, antes uma perna que a vida…”
“E como é que uma menina de catorze anos encara essa situação?”
“Quer dizer, quando não há alternativa não há problema. Claro que isto é muito fácil de dizer agora, mas é muito difícil superar uma perda destas, sobretudo numa idade em que passamos a vida a olhar para o espelho. A notícia de que tinham de me amputar a perna para poder viver fez-me chorar até não ter mais lágrimas. Mas por outro lado, por incrível que possa parecer, tive uma sensação de alívio, porque durante o último ano tinha sofrido muito com as dores constantes, as cirurgias e as sequelas dos tratamentos.
Dei-lhe um beijo carinhoso no pé, para a consolar e ela continuou, “O choque maior foi quando me foram mudar o penso e puxaram os lençóis para trás. Eu sentia a perna no sítio, mas ela já não estava lá. A minha perna agora era uma bola de ligaduras e quando a enfermeira as começou a desenrolar eu virei a cara para o lado e recusei-me a ver. Só consegui olhar para o coto vários dias depois.” E ao dizer isto afastou o robe para o descobrir, ergueu-o, afagou-o com as mãos e continuou, “Mas hoje acho que fizeram um bom trabalho, gosto da forma do meu coto! Podia era ser um mais comprido que ajudava a controlar melhor a prótese…”
“Gui, o teu coto é lindo e é muito sexy! Dá-me a volta à cabeça… às cabeças!” disse, enquanto me estirava para o beijar repetidamente e acariciar. “Que bom gostares do meu cotinho! E ele também gosta de ti… sabem tão bem as tuas mãos!” e enquanto falava ia movendo o coto cuja forma mudava conforme os diferentes grupos de músculos se contraíam ou descontraíam em torno do que restara do fémur.
“Mas tenho que te perguntar e preciso de uma resposta sincera: gostas mesmo de mim com um coto, ou gostas mesmo é do coto comigo?”
“Gui, há mais de um ano que nos conhecemos e que trabalhamos de perto. Tive tempo de perceber que és uma mulher inteligente, culta e com mundividência. E esta semana, na intimidade, percebi que também és apaixonada, independente e autónoma… e muito bonita! A perna amputada é apenas mais uma característica tua… bem interessante, por sinal.” . Ela puxou-me para si e apertou-me nos braços em silêncio durante longos segundos.
“Bom, continuando, um ano sempre em tratamentos e depois a fisioterapia e a reabilitação, atrasei-me muito na escola. A minha sorte é que eu era espertita… sou!... (riu-se) e apanhei rapidamente as matérias. Além disso, acho que o meu sucesso escolar funcionou como mecanismo de compensação para a minha nova condição de deficiente.”
“Namoros?!”
“Pois, aí é que foi pior. Tive várias paixonetas daquelas de morrer de amor, mas depois eles falavam em ir à discoteca dançar, à piscina, à praia… e eu não podia. Ou melhor, pensava que não podia! Comecei a retrair-me e fui-me afastando dos rapazes para não apanhar mais desgostos. Por essa altura, iniciei uma amizade íntima com uma colega que também tinha um ‘handicap’ – era muito gordinha e complexada como eu. Apoiávamo-nos muito e partilhávamos as nossas ‘dores’. Passámos muitas noites na minha casa, ou eu em casa dela e ganhámos confiança a ponto de dormirmos juntas. Ela dava-me muita segurança com o meu corpo e, por exemplo, massajava-me o coto com naturalidade quando me apareciam aquelas sensações do membro fantasma. Aliás, durante muito tempo senti cócegas no pé que já não tinha, ou as mesmas picadas no joelho de quando o tumor se tinha instalado, ou dores fortes na ponta do osso. Agora já só aparecem muito esporadicamente.
Bem, eu e a Ana ‘flirtámos’ muito e até acho que vacilámos na certeza sobre a nossa orientação sexual. Trocávamos muitos carinhos e gostávamos muito de nos masturbarmos uma à outra, mas, no fundo, sempre sonhámos com príncipes encantados. Ela foi muito importante para mim. Depois a vida afastou-nos e só nos reaproximámos recentemente, depois de ela se ter divorciado. Continua a ficar comigo muitas vezes e ainda dormimos juntas!...” disse com um sorriso malandro.
“Mas, definitivamente sou mais heterossexual que homo e o que eu procurava era um homem. Quando fui estudar para a Universidade de Coimbra ainda não tinha tido verdadeiramente um namorado e sentia-me tão incompleta fisicamente, tão pouco merecedora, tão feia e inferior, que aceitei namorar com o primeiro imbecil que me apareceu - um colega de curso que se dedicava a tudo (e a todas…) menos a estudar. Não tínhamos nada em comum! Ele não tinha nada que eu admirasse… mas eu achava que não podia escolher! O nosso relacionamento mal durou um ano. Foi o tal fulano que, como te contei, quando lhe disse que precisávamos de rever a nossa relação, me respondeu que me tinha aceitado como eu era e que outros não o fariam. Foi o ponto final no namoro e o ponto de viragem na minha autoconfiança. A partir daí decidi que quem quiser gostar de mim tem de gostar como eu sou. Por isso até lhe estou agradecida.”
Arrastei-me por ela acima como uma serpente e interrompi o relato com um beijo “Eu gosto de ti como tu és!” e, intencionalmente, cobri-lhe a extremidade do coto com a minha mão. Comecei a ganhar um volume no baixo-ventre e a entusiasmar-me, mas ela empurrou-me “Não, agora não, não podemos queimar os cartuchos todos de uma vez! Vamo-nos vestir e tu vais levar a tua perneta favorita a almoçar fora”. E fomos.
Fomos passeando pela marginal do Estoril até ao Guincho, atravessámos a serra de Sintra, descemos até Colares e parámos num restaurante da Praia das Maçãs. Escolhemos uma mesa na esplanada para podermos ver, ouvir e inalar o perfume do mar. No final do almoço, enquanto esperávamos pela sobremesa, apertei as pernas da Gui entre as minhas. A direita quente e macia a esquerda rígida e angulosa. Daí a pouco vi-a recostar-se um pouco e logo de seguida senti o seu pé descalço, só com uma meia de nylon, a tatear-me o pénis e os testículos, tal como tinha feito na noite anterior. Repetiu a pergunta, a mesma da noite anterior, “Sinais exteriores de riqueza?!”. Segurei-lhe o pé entre as minhas mãos “Olha, olha, a sobremesa aqui! Adoro este pé, sabias?!” Quando o empregado veio servir a sobremesa ela tentou libertar-se, mas eu não o soltei. O empregado viu, sorriu e quando se foi embora desatámos os dois a rir, com ela a insultar-me “Doido! Maluco! Ele viu tudo!” e eu, ainda a segurar-lhe o calcanhar, a massajar-lhe a sola e a entrelaçar os meus dedos com os dela, “Sim, reparaste como ficou cheio de inveja?!”
Antes do regresso fomos passear pela praia que naquela tarde de fim de inverno estava deserta. Quando parámos defronte ao mar abracei-a por trás e segredei-lhe “Querida Gui, estou a medir bem as palavras: acho que te amo!”. Ela virou-se para mim “Só achas?!” e selámos o início do nosso namoro com um beijo tão estonteante que quase caímos no areal.
Chegámos a Lisboa já anoitecia e parei o carro em frente à porta do prédio. Despedimo-nos para enfrentar os nossos afazeres profissionais do dia seguinte com a promessa que lhe telefonaria para combinarmos o fim de semana. Vi-a subir os 5 degraus da entrada, um a um, depois a virar-se e enviar um beijo soprado.
Nesse momento já sentia saudades dela.