TINHA QUE SER VOCÊ - 20: FAMÍLIA (HECTOR)

Um conto erótico de Escrevo Amor
Categoria: Gay
Contém 2270 palavras
Data: 04/04/2024 02:50:49

CAPÍTULO: FAMÍLIA

NARRAÇÃO: HECTOR

Você se acostuma com a dor, sabia? Eu passei horas jogado no chão, apagava e voltava. Vários carros passavam, mas ninguém queria se envolver, afinal, o cenário parecia ter saído de um filme de terror.

Um corpo no chão e um carro todo destruído. Quem vai se meter? Rastejei com as últimas forças que tinha para tentar encontrar o meu celular, porém, desmaiei antes de conseguir ajuda.

Minha mente ainda está turva, meus pensamentos se entrelaçam em uma névoa de dor e confusão. As imagens do sequestro de João ecoavam incessantemente dentro de mim, como um filme de horror do qual não consigo escapar. Estou impotente, como se estivesse preso dentro de um pesadelo sem fim.

Graças aos céus, uma patrulha da polícia passou na rua e me acudiu. Pela gravidade dos meus ferimentos, eles me encaminharam para o hospital mais próximo. Ainda abalado, passei o contato de Jayme para um dos policiais. Nem sei como ainda estou vivo. Será que foi sorte?

Fui espancado pelos bandidos, meu corpo ainda dói em cada centímetro. Após ser examinado, os enfermeiros me levaram para uma das camas do hospital. Estava cercado por outros pacientes e pelos sons dos equipamentos médicos. Minha boca ficou inchada e machucada, tornando difícil a fala. Mas apesar da dor física, minha mente parecia alerta, clamando por justiça, e preocupada com João.

Não demorou muito e as famílias de João vieram até mim. Seus rostos marcados pela angústia e pelo desespero. Eles olharam para mim com uma mistura de compaixão e horror, incapazes de compreender completamente a extensão do que aconteceu. Usei o celular de Jayme para escrever tudo o que lembrava sobre os bandidos, o carro, e sobre a tag localizadora que coloquei na meia do meu namorado, enquanto apanhava dos bandidos.

— Meu Deus! — exclamou Jayme, mostrando a mensagem para o pai e Seu Josué. — O João foi sequestrado. Pai, por favor, ligue para os advogados. Talvez, os meliantes entrem em contato logo.

— Pode deixar. — afirmou o Sr. Fernando, pegando o celular e saindo do quarto.

— Cara, — José se aproximou de mim. — o que eles fizeram com você? Eu sinto muito. — pegando em meu braço sem conseguir esconder a tristeza.

— O que vai ser do nosso filho? — questionou uma chorosa Patrícia, que se amparou com dona Esther, afinal, as duas nutriam um amor enorme por João.

— Vai dar tudo certo, Patrícia. O João é forte. — afirmou dona Esther, acariciando a mãe biológica de João.

— Vocês são os parentes do paciente? — perguntou um médico ao entrar no quarto.

— Somos. — afirmou José, pegando no meu braço e me senti muito acolhido por todos.

— Bem, os exames mostram várias escoriações pelo corpo dele, mas nada que devamos nos preocupar. Só estou esperando os resultados de alguns exames para liberá-lo. — avisou o médico para o alívio de todos. — A enfermeira vai passar uma lista de medicamentos e, também, direcionar sobre a retirada dos pontos no rosto dele. Fora isso, sinto muito pela violência e, por favor, qualquer questionamento estarei no consultório 3. Com licença. — saindo.

— Precisamos voltar para casa. — disse Jayme ao receber a mensagem de um policial. — A polícia vai montar um QG para acompanharmos as ligações.

— Podem ir. — anunciou dona Esther, sentando ao meu lado e segurando minha mão. — Eu vou ficar com Hector. Amor, — olhando para seu Josué. — vá com o Jayme e a Patrícia. Você está mais preparado para essas coisas.

— Tudo bem, querida. — concordou seu Josué se aproximando de mim. — Vai dar tudo certo, filho. Obrigado por proteger o João. Sei que fez o seu melhor.

Proteger? Melhor? Por minha causa, os bandidos levaram o João. Talvez, se eu fosse mais forte ou soubesse lutar, o meu namorado não estaria desaparecido. Lágrimas começaram a molhar o meu rosto, pois, apesar de tudo, todos estavam me oferecendo apoio e conforto. A dona Ester, por exemplo, os seus olhos transbordavam de empatia, e sua presença me deixou mais confortável e seguro.

Todos seguiram para a casa dos Teles. O José seguiu para o quarto do irmão, ele precisaria do notebook de João para rastrear a tag. A família toda estava apreensiva, pois a tag era o único elo de ligação entre nós e o João. Será que essa tecnologia funciona mesmo? A dona Esther segurava um terço e fazia uma prece silenciosa.

Ela é uma mulher pequena, de pele morena e traços marcados pelo tempo. Seus olhos carregam a sabedoria de quem já enfrentou muitas batalhas, mas seu semblante nunca perde o brilho da esperança. Enquanto observo dona Esther cuidando de mim com tanto carinho, não consigo evitar que meus pensamentos se voltem para meus próprios pais. Filho de um pastor e de uma cantora gospel, fui criado em um ambiente onde a religião e a moralidade eram inquestionáveis.

Porém, nunca tive coragem de revelar a eles a verdade sobre minha bissexualidade, com medo de ser rejeitado e condenado por aqueles que mais amava. Por esse motivo, enquanto me recupero, não posso deixar de me perguntar como meus pais reagiriam se soubessem a verdade. Será que eles seriam capazes de aceitar e amar seu filho, independente de quem eu amasse? Ou será que sua fé os cegaria para a verdadeira essência do amor e da compaixão?

Cansado e dopado pelos remédios, acabei adormecendo, mergulhando em um mundo de sonhos e fantasias. Em meu sono, sou transportado para um universo onde sou amado e aceito por meus pais, que criaram uma igreja inclusiva, acolhedora e amorosa, onde todas as pessoas, independente de sua orientação sexual ou identidade de gênero, são bem-vindas e celebradas.

Neste mundo utópico, sou livre para ser quem sou, sem medo de julgamento ou condenação. E enquanto me deixa envolver pela paz e pela aceitação que encontro neste lugar de sonhos, sinto uma chama de esperança renascer em meu coração. Pois, mesmo em meio à escuridão, sempre há luz e amor para nos guiar em direção à verdadeira liberdade e felicidade.

— Querido, acorde. — pediu dona Esther, tocando suavemente em meu rosto, mas como reflexo me afasto assustado e ofegante. — Ei, tá tudo bem. Ninguém vai te machucar. Por favor, fique tranquilo. A enfermeira trouxe o resultado dos exames e está tudo certo. Podemos ir para casa. Você precisa tomar um banho e trocar essas roupas sujas. — ela arrumou meu cabelo. — Tá tudo bem, viu. Estou do seu lado, querido. O Sr. Fernando deixou um motorista no estacionamento.

Os corredores dos hospitais sempre me deixam desconfortáveis. Sempre lotado de pessoas que aguardam com ansiedade, seja por um atendimento ou resultado de algum exame importante. Meu corpo ainda está anestesiado pelos remédios. A sensação é boa, mas não posso me deixar seduzir. Querendo ou não, medicamentos também são drogas e podem viciar. Vou ter que aprender a lidar com a dor ou diminuir a dosagem dos remédios.

Ao passar na frente de uma sala cheia de vidros, eu tenho a noção do que os bandidos fizeram comigo. Sou um festival de hematomas. Tenho dois cortes feios, um próximo ao olho e outro na boca. Eles me renderam pontos. O meu cabelo está uma bagunça ambulante e tenho certeza que comer a partir de agora será doloroso.

— Merda. — pensei.

— Vamos, querido. — a dona Esther, mesmo sendo melhor, fez questão de me ajudar a andar. Sério, eu não mereço uma sogra tão boa. — O Sr. Luís está no esperando no estacionamento.

Ao sair do hospital, ainda fraco e cambaleante, vou em direção ao carro, onde um novo capítulo desta saga angustiante parece estar prestes a se desdobrar. No caminho, o motorista 'passeia' entre as estações de rádio, mas nenhuma anuncia o sequestro de João Teles. Típico, o sr. Fernando jamais deixaria um assunto desses ganhar proporção nacional.

Depois de alguns minutos, estou no estacionamento da mansão. Quando entramos, sou recebido por um cenário surpreendente: o ambiente se transformou em um verdadeiro quartel-general da polícia, com uma equipe de especialistas em resgate e uma infinidade de equipamentos tecnológicos espalhados por todos os lados.

Aparentemente, os bandidos entraram em contato, e a equipe policial está agora empenhada em rastrear a tag localizadora que implantei na meia do João Com a ajuda de José, os policiais conseguiram acessar o notebook dele, buscando formas de ativar a tag e, assim, traçar o caminho até o cativeiro.

— Já avisei a equipe financeira, pai. Eles estão preparando os R$ 10 milhões. — disse um ansioso Jayme, que nem percebeu a minha presença na sala.

— Ok. Estou indo para o escritório, filho. Acho que ainda tenho uma mala que cabe essa quantia. — afirmou o Sr. Fernando. — Hector. — pegando no meu ombro. — Vá descansar, por favor.

— Ele vai sim, Sr. Fernando. — falou dona Esther, que estava ao meu lado. — Vou preparar uma sopa bem gostosa para o Hector. — ela olhou em volta e tentou processar o que estava acontecendo na sala. — O Hector vai tomar um banho e descansar.

— Eu não quero tomar banho. — pensei, mas a minha sogra é implacável e me levou para o quarto de hóspedes.

Após horas de tensão e espera, o cansaço tomou conta de mim, e me vi obrigado a recuar para o quarto a fim de descansar. O caminho até o banheiro foi uma jornada dolorosa, cada passo parecia uma luta contra as dores. Infelizmente, não existe uma única parte que escapou ilesa, todos os golpes que sofri geraram marcas e escoriações.

— Eu sei que dói. — disse dona Esther me oferecendo uma toalha. Tentei falar obrigado, mas não consegui. — Sabe, Hector. Quando o João assumiu que gostava de homens, — ela parou de falar, pois ficou emocionada. — eu fiquei muito preocupada. Criamos os filhos para o mundo, mas nunca estamos preparados para perder eles. O João era um menino sensível e que confiava em todos. No início, fiquei temerosa por causa dos relacionamentos futuros dele. Será que ele vai achar um cara legal? As dúvidas eram tantas. Por incrível que pareça, o Josué levou mais na boa do que eu. E agora estou aqui. — dando uma risada fraca. — Ajudando meu genro a tomar banho. Eu sei que você sofreu muito com a perda dos teus pais, mas eu estou aqui viu. Nunca vou tomar o lugar da tua mãe, porém, vejo em você um filho. — me abraçando e chorando. — Obrigada por ser tão bom com o João, meu filho.

Eu não consegui segurar as lágrimas. Estava chorando por causa das palavras e da dor no meio peito, que parecia expandir a cada minuto. Com a ajuda da minha sogra, eu tirei as roupas e fiquei apenas de cueca. Ela avisou que ia fazer uma sopa e voltaria para que eu pudesse almoçar.

Ao me olhar no espelho, sou confrontado com a imagem de um homem desfigurado pela violência. Meus olhos estão inchados e manchados de vermelho, meu rosto uma tapeçaria de confusões e cortes. É difícil reconhecer o reflexo que me encara de volta, tão distante da imagem que costumava refletir.

Cada gota d'água me dá um lembrete doloroso das feridas que carrego. Mas mesmo assim, persevero, determinado a limpar não apenas meu corpo, mas também minha alma, da sujeira e da dor que continuam dentro de mim. Após o banho, coloco roupas confortáveis. Elas parecem novas e são de um número maior do que eu uso.

A dona Esther aparece com uma tigela fumegante de sopa de legumes triturados. Mesmo sem apetite, sei que preciso me alimentar para recuperar as forças e ajudar João. Tenho dificuldade para engolir a sopa, porém, sou agradecido por estar vivo e pelo carinho da minha sogra ao cuidar de mim.

Escutei um barulho vindo do lado de fora e uma atribulada Nataly entrando no quarto. Seus olhos estão marejados, sei que ela quer passar força, mas não conseguiu ao ver a minha situação. Ela pediu para ficar na mansão Teles para ajudar na minha recuperação, e eu aceitei de bom grado.

— Você foi muito forte amigo. Eu sei que tudo vai dar certo. — Nataly estava deitada ao meu lado e segurava a minha mão. Alguém entrou pela porta e por um segundo pensei que era o João, mas era José, o seu irmão gêmeo.

— A polícia conseguiu rastrear a tag. Eles estão indo para lá. Eu vou junto e te deixo informado. — José não demorou no meu quarto e me deixou mais aflito do que nunca.

— Posso ficar aqui? — questionou dona Esther ao entrar no quarto e sentar na cama. — O João tem que conseguir. Ele é um garoto esperto. Ele vai conseguir. Ele vai.

— Vai sim, dona Esther. — Nataly se levanta e abraça a minha sogra. — Vamos todos pensar em coisas positivas.

— Coisas positivas. — pensei. Fechei os olhos e lembrei do sonho que tive com os meus pais me aceitando.

Sei que nunca vou ter uma resposta sobre isso. No caso, ser aceito ou não. Porém, olhando para frente. Vejo duas pessoas que me amam e que estão do meu lado. Seja através dos Teles ou do João, eu tenho uma família.

No meio da minha solidão, encontrei pessoas que, mesmo sem laços de sangue, me acolheram como parte de suas vidas. Eles me deram amor, apoio e cumplicidade, transformando minha existência solitária em uma jornada compartilhada.

Foi com eles que aprendi o verdadeiro significado da palavra "família". Descobri que não precisa ser de sangue para ter uma conexão real, que a verdadeira família é formada pelo amor e pela dedicação mútuos. E com essas pessoas ao meu lado, finalmente encontrei meu lugar no mundo.

Por favor, João. Lute! Lute por nós. Lute pelas nossas famílias. Eu não quero perder mais alguém importante na minha vida. Eu não saberei seguir sem a sua ajuda. Por favor, João. Volte para mim.

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