CONTOS DO FIM DO MUNDO
No final do século XXI, o clima do planeta mudou subitamente. Ondas mortais de calor e tempestades glaciais assolam regiões que antes eram densamente povoadas, áreas gigantescas de cultivo se perderam, a indústria colapsou, mananciais inteiros foram contaminados. O desespero tomou conta do mundo. A civilização como a conhecemos foi destroçada.
AVISO: Esta parte da história apenas apresenta duas personagens e não possui conteúdo sexual.
01 - DUAS PUTAS SOB O SOL
As duas garotas caminham lado a lado; suas cabeças, braços e pernas totalmente cobertos por tecidos grosseiros que as protegem do sol gigantesco que arde sobre suas cabeças. Tinham se acostumado a viajar à noite, com a brisa refrescante e a lua a lhes iluminar o caminho, mas em regiões como aquela os bandos de salteadores atacavam à noite e dormiam durante o dia, então o sol seria sim um companheiro de viagem indesejado.
"Falta muito, Cecília? Não estou aguentando mais o calor. Nem essa mochila pesada. Quando voltaremos a viajar à noite?"
"De acordo com esse mapa, Eldorado deve estar logo adiante. E viajaremos à noite quando estivermos em locais seguros, tá bem? Já perdi a conta de quantas vezes lhe disse isso." Sem parar de caminhar, segura o mapa com ambas as mãos, revezando o olhar entre o papel empoeirado e amarelado que segura firmemente, e a paisagem desértica diante de si. Não vê vegetação ou animais; insetos, pessoas ou automóveis. Apenas terra brilhante, céu sem nuvens, uma estrada abrasadora sob as botas pesadas e, ladeando a estrada, tubos metálicos quebrados e parcialmente fincados no solo, onde antes estavam placas. E o silêncio. Silêncio de morte no ar parado.
Cecília gostaria de oferecer algum conforto à pequena Bia, mas não há onde repousar naquele lugar, e sua própria mochila a sobrecarrega e lhe fere os ombros cobertos. Bia, por outro lado, pensa na sorte que teve há seis meses, quando Cecília a encontrou numa enorme tubulação pluvial abandonada. Estava faminta, sedenta e febril; a única sobrevivente de uma família atacada por salteadores. Sozinha, não teria durado por muito tempo. A garota não consegue, pelo menos por enquanto, ver em Cecília a figura materna de que necessita, mas certamente a vê como uma irmã mais velha, que está sempre lhe dando lições.
Uma das lições que Bia assimilou é que homens são perigosos. Cecília está sempre atenta para evitar que ambas cruzem o caminho dos homens. "Mas Ceci... eles poderiam nos ajudar, não?", perguntou certa vez, num acampamento improvisado que ergueram numa encosta rochosa. "Não. Você ainda não entende, mas nunca peça ajuda pra nenhum homem, entendeu? Nunca chegue perto de nenhum deles. Eles vão querer fazer coisas ruins com você. Maldades. Se algum dia me pegarem, não tente me ajudar. Fuja. Tá?" Os olhos verdes e amendoados de Bia estavam confusos e assustados; não queria ficar sozinha novamente. "Tá? Se você vir algum homem, fuja. Só fuja. Entendeu?" A garota balançou a cabeça afirmativamente. Obedeceria, ainda que sem entender o medo da companheira.
Noutra ocasião, quando Cecília retornou de uma invasão a um armazém abandonado e escuro, Bia lhe perguntou: "Eu não teria coragem de entrar lá sozinha. Você não ficou com medo?" Cecília abria uma latinha de cerveja quente pra si, e entregava para Bia uma garrafinha recém-conquistada de suco, igualmente quente. "Medo de quê?" Bia pensou em dizer "fantasma", mas sabia que Cecília a acharia boba. "Cachorro. Poderia ter algum cachorro bravo lá dentro. Ou algum bicho. Aranha, escorpião... sei lá." Cecília deu um gole na cerveja, e fez uma careta. "A única coisa da qual tenho medo é de homem de pau duro. Isso sim é perigoso. E eu sabia que lá dentro não tinha nenhum. Agora beba seu refrigerante; precisamos seguir viagem."
Distraída com tais lembranças, Bia sequer percebe que, ao longe, surge Eldorado, a cidadezinha no norte da região antes conhecida como Minas Gerais, onde finalmente se abrigarão. Com sorte, encontrarão lá também comida ou água que os saqueadores teriam largado para trás.
Cecília então começa a realizar o procedimento de segurança já conhecido por Bia. Dirige-se para um terreno elevado próximo à entrada da cidade e, de lá, meio escondida, vasculha cuidadosamente Eldorado, com o auxílio de um binóculo. "Tá vendo algo, Ceci? Tem homem lá?", pergunta a jovem, ajoelhada a seu lado. "Não. Nenhum. Parece abandonada. Hmmm... Aquela loja azul. Vê? A com dois pavimentos. De esquina, bem na entrada da cidade. Ficaremos lá." Entrega o binóculo para Bia, que em poucos segundos localiza a construção. "Ah, estou vendo! Rei dos Reparos. TV, Computadores e Celulares. Por que lá, Ceci?" Devolve o binóculo, que Cecília enfia na sua mochila enorme. "Porque está próxima, e estamos exaustas demais pra procurar um lugar melhor. E a porta está aberta. Provavelmente foi saqueada há algum tempo. Acredito que será fácil nos trancarmos por dentro, escorando a porta com algo pesado. O balcão, talvez. Mais tarde, depois de descansarmos, vasculharemos a cidade em busca de algo de valor. Agora vamos. O sol está me matando."