Acordei com mamãe sentada ao meu lado, tinha uma sacola, ela levantou cedo e foi comprar mais peças de roupas, bermudas e camisetas básicas, além de um conjunto de ginástica para na verdade usar na faxina, pediu para me vestir que iria no seu quarto aguardar.
De tudo que vi ali, escolhi um shorts jeans, um corpete, troquei o sutiã por um menor, como explicar era um que a parte de tecido era menor, que aparecia mais minha pele, calcinha combinando, uma meia soquete e um tênis meu mesmo.
Tomamos café e mamãe me elogiou, aí fomos para a maquiagem, nossa como foi difícil entender todos aqueles produtos e coisas, mas uma coisa eu adorei, já tinha visto sobre lápis e desenhos nos olhos, e depois que ficamos por umas 2 horas ali, mamãe me liberou, eu subi e no meu quarto, ajeitei a câmera do computador e assim criei meu espelho, na outra tela fui vendo um tutorial e modifiquei para um lápis afinando até o além dos olhos, coloquei então a roupa que era um vestidinho floral, nossa ele era tão leve e solto, que percebi que o sutiã atrapalhava, retirei e ajustei a alça do vestido, peguei a calcinha branca e coloquei, optei por vestir o calçado de salto menor.
Que delicia sentir-se de vestido, não imaginava algo tão bom, mas minha consciência começou a ficar perturbada, será que eu estava fazendo certo, comecei pensando em meu pai, aquilo foi me dando um ruim, vendo meu quarto com coisas de menino, os armários abertos e coisas também de meninas, a bola, etc., comecei a tremer, suando frio, e comecei a chorar, indo para sala, fiquei um tempo lá até que mamãe percebeu eu chorando e veio conversar.
- Oi, minha pandinha querida, sabia que chorar com maquiagem, principalmente lápis, é totalmente terrível para nós mulheres?
- AI me deixa e subi correndo, brava. Entrei no quarto e fui pro banheiro enxugar, aí que vi o que mamãe havia falado, acabei me lavando, tirei toda roupa, coloquei uma roupa que eu tinha surrada de menino, me deitei na cama e fiquei assim até mamãe bater na porta avisando do almoço.
Ela percebeu, pela vestimenta e olhos inchados que passei o tempo todo chorando, não falou nada, mas quando ia sair da mesa ela delicadamente disse:
- Lembre-se, estou aqui pra te ajudar, basta confiar em mim!
Olhei, voltei a chorar e subi. Foi assim o dia todo, eram umas 19 horas quando apareci na sala, mamãe não deu bola, sentei e fomos assistir o jornal, ela quieta, no celular e na televisão e eu incomodado, ali sem saber como falar algo para quebrar o clima.
- Filho, vou fazer pipoca, quer?
Nossa ouvir o filho, foi inusitado, mas olhei pra mim, estava muito estranho, tinha trocado de roupa ok, mas primeiro estava de shorts, mas as pernas depiladas, estava de chinelo de dedo, mas as unhas dos pés pintadas, mesmo com o camisão de futebol, via pontudo os bicos dos seios esticando a roupa, peguei o celular, ok, tinha tirado toda maquiagem, mas restava os dois brincos de prata em cada orelha que tinha esquecido, e por fim olhando as mãos, eram sem esmalte, mas os dedos eram mais afinados, realmente eu era um ser andrógino.
- Filho, estou falando com você, quer pipoca?
- Sim mãe, quero, desculpe, estava distraído.
- Sim, percebi.
Saiu dali sem falar mais nada, eu ainda parado. peguei o celular e escrevi uma palavra, na verdade um monte de letras amontoadas, dei o enter. Fui lendo e parei exatamente quando apareceu o descrito abaixo.
LGBTQIA+
LGBTQIA+ e o significado de cada letra
O Manual de Comunicação LGBTI+, elaborado pela Aliança Nacional LGBTI+ denomina as identificações na sigla da seguinte forma:
L (lésbicas): Mulheres que sentem atração afetiva/sexual pelo mesmo gênero, ou seja, outras mulheres;
G (gays): Homens que sentem atração afetiva/sexual pelo mesmo gênero, ou seja, outros homens;
B (bissexuais): Diz respeito aos homens e mulheres que sentem atração afetivo/sexual pelos gêneros masculino e feminino. Ainda segundo o manifesto, a bissexualidade não tem relação direta com poligamia, promiscuidade, infidelidade ou comportamento sexual inseguro. Esses comportamentos podem ser tidos por quaisquer pessoas, de quaisquer orientações sexuais;
T (transgênero): Diferentemente das letras anteriores, o T não se refere a uma orientação sexual, mas à identidades de gênero. Também chamadas de “pessoas trans”, elas podem ser transgênero (homem ou mulher), travesti (identidade feminina) ou pessoa não-binária, que se compreende além da divisão “homem e mulher”;
Q (queer): Pessoas ‘queer’ são aquelas que transitam entre as noções de gênero, como é o caso das drag queens. A teoria queer defende que a orientação sexual e identidade de gênero não são resultados da funcionalidade biológica, mas de uma construção social;
I (intersexo): A pessoa intersexo está entre o feminino e o masculino. As suas combinações biológicas e desenvolvimento corporal –cromossomos, genitais, hormônios, etc– não se enquadram na norma binária (masculino ou feminino);
A (assexual): Assexuais não sentem atração sexual por outras pessoas, independentemente do gênero. Existem diferentes níveis de assexualidade e é comum essas pessoas não verem as relações sexuais humanas como prioridade;
+: O símbolo de “mais” no final da sigla aparece para incluir outras identidades de gênero e orientações sexuais que não se encaixam no padrão cis-heteronormativo, mas que não aparecem em destaque antes do símbolo.
Não percebi minha mãe se aproximando, logo em seguida a mensagem desliguei a tela e fiquei olhando para baixo, era nítido que olhava meus seios quando mamãe já cansada de segurar a vasilha de pipoca falou:
- Coma, ajuda a pensar melhor de barriga cheia.
- Não, não é pensar, é entender-se.
- E o que você não entende?
- É que mãe, durante algum tempo, quando ainda me lembrava de eu vestido de fadinha, a sensação de pertencimento, de aceitação das meninas na festa, foi algo surreal, mas eu não tinha a menor ideia do que era aquilo, não na época, apenas que foi bom, que poderia repetir. Entende?
- Sim, continue!
- Depois, convivendo com papai, nossa fizemos muitas coisas divertidas e legais, com ele aprendi jogar futebol, aprendi tanta coisa bacana, andar de bike, skate, consertar as coisas, era também um sensação tão igual quanto a outra de pertencimento, que até esse momento não entendia o por que? Tá acompanhando?
- Sim, sim! Disse isso se aconchegando ao meu lado, com as pernas dela sobre as minhas mas encostada no sofá, e eu com a bacia de pipoca ao lado.
- Daí, junto a isso fui recebendo as informações de que, embora tivesse as boas lembranças, elas estavam erradas, não pertenciam ao meu mundo, não deveriam estar convivendo juntas com papai e eu, essas coisas quando gerava um curiosidade, eram abruptamente descartadas, meu pai demonstrava exatamente o mal que elas significavam. Mas ...
Ai entre eu comer um pedaço de bacon da pipoca e falar minha mãe falou:
- Mas o que?
- Mas eu intimamente, não aceitava essa postura que era errado, sabia que era uma boa lembrança, queria reviver, mas não queria ver meu pai bravo ou irritado, pois ali tínhamos apenas eu e Ele. Hoje percebi que isso me fazia me esconder, pelo menos foi me deixando com medo de pensar e ele descobrir ou achar que eu não era o que ele queria.
- Entendo, filho, continue.
- Mas aí veio esse crescimento dos seios, eu me escondia mais ainda, de você, dele de todos, vivi um pânico em que se fosse descoberto eu seria expulso de casa, já tinha lido sobre homofobia, mas não era eu ali, não me via por que não entendia o que de fato ocorria, era fisiológico, mas me perturbava o pensamento dos outros, os meus pensamentos não importavam, e novamente eu me sentia mais recluso, me aprofundando mais ainda em um mundo solitário.
- Nossa filho, que triste, perdoe-me jamais imaginei isso.
- Não, nem você nem papai tem culpa, mesmo porque eu escondia de vocês tudo, aí no colégio, numa brincadeira besta de socos, um menino me socou, no peito, e espantado viu eles se mexendo, até então ninguém havia percebido, e iniciou a pior fase da escola, comecei a virar alvo de tudo, inclusive mexiam em minha bunda e tudo, consegui escapar da educação física pois foi na época que entrei na fanfarra, e os treinos dela eram nessas aulas.
- Puxa, por que não nos procurou para resolver na escola.
- Mãe, eu tinha que resolver isso sozinho.
- Tá não concordo mas tudo bem, resolveu?
- Sim, parou um pouco, outros meninos viraram chacota, tinha um assumidamente gay, ele foi o alvo, e eu não fiz nada pra mudar isso.
- Mas o que faria?
- Ai que tá, na minha mente, eram as frases e observações de papai, na minha consciência, era que eu me vi certas vezes ali sofrendo como o menino, não fiz nada, me deprimiu tudo aquilo, eram muitos contra ele, contra 2 então, não mudaria nada.
- Continue.
- Agora estou aqui, não sei o que sou, nunca desejei um menino, já tive desejos pelas meninas, quando os seios cresceram, me apaixonei por eles, eram meu segredo, eram meus, vivi alguns momentos pensando neles como algo de bom, mas eu era menino e voltava o conflito.
Nisso me virei para ela, deixei a pipoca de lado.
- Veja, tô aqui meio menino, meio menina, sei que preciso tomar uma decisão, ambas me levam para caminhos diferentes, sei que nenhum deles ficarei livre de preconceito, mas não sei o que quero pra daqui 2 anos, quero pra daqui um ano, poder decidir, sim eu não descarto a possibilidade do universo feminino, ele me deu até agora prazer, desejos, alegrias, mas mesmas que agora vem na mente de coisas do passado.
Parei e antes de começar a chorar, engoli o choro, esfreguei os olhos e falei.
- Todo o tempo que convivi com Papai, sei que feri pessoas, sei que fui rude, homofóbico, fiz aos outros o que nestes últimos meses eu sofri, amo todo o universo masculino, futebol, games, festas.
- Mas quem disse que mulheres não podem jogar futebol, jogar videogame, ir a festas, basta olhar suas amigas de sala, tem times de vôlei, tem festas que vão!!!
- É, mas mentalmente não desprendi isso ainda do universo masculino, na verdade mamãe, eu quero experimentar viver um ano assim, desde que a doutora falou eu fiquei atentada, por isso não fui tão reticente, mas meu medo, maior são os meninos.
- No colégio terá só meninas, fica tranquilo.
- Não mãe, e se eu gostar de meninos, se eu me descobrir não alguém fingindo ser menina, mas me descobrir um gay?
- Vestida de menina, gostar de menino, você se parecerá uma menina, é natural.
- Mas mãe eu ainda serei biologicamente um menino, terei um pênis, como que isso será possível alguém gostar de uma menina com um pênis?
- Filha, quer dizer, filho, isso é precipitado você achar, dizer ou pensar, tem tantos casais homo, heteros, bissexuais.
- Tá vendo que nem a senhora me define direito?
- Tá e eu consigo olhar para você que nem é um nem é outro do jeito que está vestida e se comportando neste momento?
- Verdade. Perdão. Um silêncio se aplacou, voltei a sentar, comendo pipoca, mas as lágrimas escorriam sem eu perceber.
- Me desculpe, não quis te magoar! Como posso te chamar?
Levantei, pedi licença e sai, fiquei dali em diante, no quarto no escuro, porta aberta mas ouvia-se apenas um sussurro, chorava de olhos fechados, encolhida.
Percebi a mamãe passando, ficou um tempinho ali na porta, como não me movi, saiu, mas era nítido que ela também chorava.