Três dias. Três dias muda tudo. Eu ainda não sabia, mas em três dias minha
vida sofreria sua maior reviravolta.
Fazia uma linda manhã de Sol quando acordei. Eu ainda estava nas nuvens por causa da ótima tarde que tive com Vítor no dia anterior. Ele me amava, eu sabia disso agora. A felicidade que eu estava sentindo parecia ser pecaminosa de tão imensa. Tudo parecia ter mais cor, mais vida, mais alegria. Desci quase que saltitando as escadas.
Tomei meu café da manhã rapidamente e me dirigi ao piano para praticar com minha mãe. Como só faltavam dois dias para a apresentação, nossos ensaios eram mais intensos. Ficamos a manhã toda ensaiando as três canções que eu apresentaria. A cada minuto que passava, mais nervoso eu ficava com a proximidade do momento de subir ao palco.
Não deixamos ninguém saber as músicas, apenas os outros quatro garotos que tocariam os instrumentos, mas praticávamos separados já que nossos horários não batiam.
Após o treino, fui ajudar minha mãe a preparar o almoço. O Vítor iria almoçar conosco, então eu me empenhei na tarefa. Como mãe sempre capta coisas no ar, a minha logo percebeu meu estado de graça e ficou curiosa:
- O que te aconteceu para você estar nesse pique todo?
- Como assim, mãe?
- Uai, está me ajudando a cozinhar, acordou bem disposto, cantou como nunca hoje. Alguma coisa muito boa deve ter acontecido.
- Ah, só estou feliz... - tentei me esquivar do assunto.
- Tem alguma coisa a ver com ter passado o dia com Vítor, ontem?
Quase cortei o dedo enquanto descascava batatas, tamanho o susto. Como ela conseguia perceber essas coisas? Ela era algum tipo de médium? Devia começar a cobrar por esse tipo de serviço, ficaria rica.
- Nada a ver, mãe. - desconversei.
- Sei...
Pelo seu tom de voz percebi que não tinha sido convincente o bastante. Ela parou de cozinhar e olhou para mim de um modo acolhedor.
- Meu filho, seja sincero comigo, você gosta do Vítor?
- Claro, ele é meu melhor amigo.
- Não se faça de bobo, você entendeu o que quis dizer.
E agora? Será que contava tudo para ela; me abria? Seria estranho, ela é minha mãe, não me sinto à vontade para conversar com ela sobre minha vida amorosa. Prefiro deixar a coisa solta no ar.
- Ah, mãe, é complicado...
- Hum. E ele gosta de você também? - falou dando um sorriso amistoso.
- Não sei. - falei rindo também da capacidade dela de captar a verdade mesmo quando eu conto uma mentira.
- Vocês já... - ela ficou meio encabulada.
- Não!
Interrompi rapidamente antes dela terminar a frase e ficarmos os dois constrangidos. Caímos na risada com a situação. Ela recuperou o fôlego e continuou com o interrogatório.
- E o Zeca?
- O que tem ele?
- Vai continuar fingindo pra mim?
- Ah, sei lá. Ele é um amigo, um amigo bem especial.
- Verdade? Porque eu senti um clima quando ele veio aqui...
- Bom, ele disse que gosta de mim.
- E você? - ela perguntou assustada.
- Ai, - eu estava me abrindo, justamente o que não queria - eu respondi que não gosto dele na mesma intensidade, então resolvemos deixar por isso mesmo.
- Ufa, ainda bem! - ela pareceu aliviada.
- Por quê?
- Ah, meu filho, ele é bem mais velho que você. Não fico confortável com essa ideia.
- Nada a ver, mãe. Ele é uma ótima pessoa.
- Eu sei, acredito que seja mesmo, mas é uma preocupação natural de mãe.
Ficamos nos olhando por um tempo e ela continuou.
- Eles não se gostam muito, né?
- Não... - lamentei - o que é uma pena, pois gosto muito deles.
- E de qual você gosta mais?
- Que pergunta maldosa!
- Maldosa e legítima, responda. - ela se divertia com aquilo.
- Ah, não sei, é diferente.
- Diferente como?
- Ai, como posso explicar? - pensei um pouco - Digamos que com o Zeca é bossa nova e com o Vítor é rock’n roll!
Nós dois voltamos a rir como malucos na cozinha. Apesar de ser uma comparação meio absurda, era mais ou menos daquele jeito que eu via a situação. Meu amor pelo Zeca era como uma bossa nova: calmo, leve, feliz. Já com o Vítor era um rock: pesado, intenso, forte.
- Análise interessante. - ela falou ainda rindo - Quero ver como vai ser com os dois aqui no dia da apresentação.
- Como assim?
- Não te contei? Convidei o Zeca pra vir te ouvir cantar. - ela falou calmamente.
- Sério?! - eu devia ficar bravo por ela ter agido pelas minhas costas, mas estava é muito feliz por ter meu amigo de volta. Eu estava morrendo de saudade dele.
- Sério. Queria te fazer uma surpresa. Gostou?
- Adorei! Ele com certeza vai me dar mais coragem para subir ao palco.
- Foi o que eu imaginei.
Continuamos a cozinhar juntos naquele clima leve.
Eu realmente era muito sortudo por ter ela como mãe. Se fosse outra com certeza já teria me batido e me expulsado de casa, mas não, isso apenas nos deixou mais próximos. Nossa relação estava melhor do que nunca. Era bom ter um porto seguro assim, saber que se as coisas dessem errado lá fora, eu poderia voltar para o colo da minha mãe porque ela me acolheria sem questionar nada.
- Estou interrompendo?
Nós dois nos viramos pra ver quem era. Vítor estava parado na porta da cozinha nos observando. Me enchi de alegria quando o vi e abri um grande sorriso. Ele retribuiu com o mesmo sorriso largo.
- Claro que não, menino, você já é de casa. - falou minha mãe.
- É que vocês estavam tão entretidos aí.
- Uai, tinha que tá mesmo. Quantas vezes eu posso contar com a ajuda do Bernardo na cozinha?
- Que maldade! Eu sempre ajudo! - protestei.
Os dois trocaram olhares como se dissessem “mentira”.
Logo terminamos o almoço e nos sentamos para comer. Fui um momento ótimo. Conversamos e ríamos sobre coisas bobas, sempre tendo o cuidado de evitar o assunto “homossexualidade”. Ali eu me senti completo, me senti feliz.
Após o almoço, eu e Vítor fomos ajudar minha mãe a lavar a louça. Depois ela teve que sair, mas não sem antes me deixar constrangido:
- Vou sair, volto mais tarde. Juízo vocês dois, hein?
Vítor ficou da cor de um pimentão, tamanha a vergonha. Eu também fiquei com vergonha, mas o jeito que ele ficou foi tão cômico, que eu comecei a rir; e ele logo me acompanhou.
Seguindo nosso ritual, subimos as escadas em direção ao quarto para jogarmos videogame. Chegando lá, me joguei na cama e fiquei esperando ele fazer o mesmo, como sempre fizemos, mas não, ele ficou me observando, sem saber o que fazer.
Encarei ele com firmeza e ele entendeu como um convite. Ele se aproximou e, sem jeito, deitou ao meu lado na cama. Ele olhava para o teto, com a respiração alta. Fiz o mesmo. Os minutos passavam e nós dois ali, deitados lado a lado olhando para o teto sem dizer nada, apenas ouvindo a respiração um do outro.
Pode parecer uma coisa chata, mas não foi. Aquilo para mim era o paraíso. Só de estar tão perto dele eu me sentia satisfeito. Ele não parecia confortável daquele jeito, então falou enfim:
- Bernardo...
- Sim? - me virei para ele.
- Eu não sei o que estou sentindo. Ou melhor, sei, mas tenho tanto medo que não consigo nem mesmo transformar isso em palavras. - ele ainda encarava o teto - É tudo novo para mim, preciso me acostumar com a ideia, isso se um dia eu conseguir me acostumar com isso. Você vai ter que ser paciente comigo.
- Eu te entendo.
Qualquer um teria ficado triste com as palavras de Vítor, mas eu não fiquei. Eu conhecia muito bem meu amigo, sabia que para ele já era um esforço enorme estar ali deitado comigo enquanto poderia estar fugindo de mim ou me evitando.
O que ele estava sentindo ia contra tudo que ele aprendeu como certo e errado na vida. Seus pais, aliás, toda a sua família, eram bem interioranos e tradicionais, nunca o aceitariam. E eu o amava demais para pedir que ele escolhesse entre mim e eles.
- Obrigado.
- De nada.
Ele, timidamente, foi aproximando sua mão da minha até elas se esbarrarem. Meu coração bateu forte cheio energia. Tomei coragem e segurei sua mão firmemente. Ele não tentou fugir, aceitou meu gesto e retribuiu apertando forte a minha mão. Foi impossível segurar um sorriso aberto quando ele fez isso. Eu estava tão feliz! Dormimos daquele jeito, de mãos dadas, compartilhando daquele sentimento tão lindo que não podia ser verbalizado. Foi um daqueles raros dias perfeitos que a vida nos presenteia de vez em quando.
Mal sabia eu que essa era a calmaria que antecedia a tempestadeNo dia da apresentação acordei com uma sensação estranha no estômago. Alguma coisa me dizia que era um daqueles dias que não se deve sair da cama.
“Deve ser apenas o nervosismo” - pensei e levantei.
Fiz minha higiene matinal, feliz, relembrando do quão maravilhoso tinha sido o dia anterior. Apesar da sensação estranha, uma estranha força chamada felicidade me movia, não deixando espaços para dúvidas.
Desci e tomei café da manhã com minha mãe. Depois fomos para a escola, onde eu iria ensaiar com a banda. O ensaio foi tranquilo. Íamos cantar apenas três músicas. Como todos já havíamos praticado um pouco, só faltou ir acertando o tom, e conseguimos.
A apresentação ficaria muito boa.
Após o ensaio me levaram para conhecer o anfiteatro da escola. Eu já tinha ido lá muitas vezes, mas desta vez era especial: não era mais uma estrutura de madeira colocada em frente a fileiras de cadeiras. Era o meu palco. Seria o meu momento.
Novamente a sensação no meu estômago voltou, mas ignorei. Com o apoio de Vítor e a presença de Zeca eu sabia que não falharia. Com os dois ao meu lado eu sentia que poderia chegar aonde quisesse.
Por insistência da minha mãe, dormi pela tarde. Quer dizer, tentei dormir, não pregava o olho de nervosismo. As horas passavam lentamente, para meu desespero. Naquela altura do campeonato, eu já queria me apresentar logo para me ver livre daquilo. No meio da tarde finalmente consegui adormecer. Tive um sonho estranho.
Eu estava sentado numa cadeira de um amplo teatro lotado de gente. Sentia-se a ansiedade do público no ar. De repente os holofotes se acenderam e iluminaram um único ponto do palco. Era um homem postado em pé diante de um microfone. Vestia um smoking impecável, cada fio do cabelo estava perfeitamente no lugar e no rosto notava-se uma expressão forte típica de pessoas extremamente seguras de si. Aquele era eu, mas não parecia comigo. Sim, era o mesmo corpo, as mesma feições, mas não era eu. Eu era desengonçado, andava mal arrumado e, definitivamente, não era uma pessoa segura. Aquele homem era eu alguns anos mais velho. Senti todo meu corpo se sacudir com a vibração da plateia por aquele homem. Era incrível a força que ele transmitia apenas com sua presença. A orquestra começou a tocar de algum lugar da escuridão. A boca dele se abriu e uma voz forte tomou conta do teatro.
"Os sonhos mais lindos, sonhei
De quimeras mil, um castelo ergui
E no teu olhar tonto de emoção
Com sofreguidão mil venturas previ
O teu corpo é luz, sedução
Poema divino cheio de esplendor
Teu sorriso prende, inebria, entontece
És fascinação amor."
(Fascinação – F. D. Marchetti/M. de Feraudy vers. A. Louzada)
Todos se levantaram e aplaudiram de pé. Eu permaneci paralisado por causa daquilo que havia presenciado. Aquele cara diante de mim, aquele “eu” de uma realidade alternativa, não era apenas um cantor. Eu estava diante de um deus da música.
- Bernardo!
Alguém me acordou sacudindo.
- O que foi? - disse com voz de sono tentando entender o que estava acontecendo.
- Não vai me receber direito?
Abri os olhos lentamente e então o rosto de Zeca preencheu todo o meu campo de visão. Senti uma alegria imensa me tomar e escapar num largo sorriso.
- Zeca! - falei o abraçando.
- O sonho devia ser muito bom, hein? Não queria acordar!
- Foi mesmo...
Ficamos um tempo ali matando as saudades e colocando as novidades em dia. Ele estava de rolo com um garoto da faculdade. Fiquei feliz por ele, se havia alguém quer merecia ser feliz era meu amigo Zeca. Contei para ele como andavam as coisas com Vítor e ele pareceu feliz por mim.
- Bernardo, vai se arrumar, já está quase na hora. - falou minha mãe chegando na porta e depois saindo.
- Nervoso?
- Muito.
- Vai dar tudo certo, você é um ótimo cantor.
- Obrigado!
- De nada! Agora vai lá se arrumar. Vou voltar pra fazenda para me arrumar e buscar seus avós.
- Certo, até mais tarde.
- Até.
Zeca se foi e eu fui para banheiro. Me arrumei lentamente absorvendo cada gota do meu nervosismo. Parei em frente ao espelho e fiquei me admirando, tentando encontrar em mim aquele homem que vi se apresentar. Não era eu, não tinha como ser eu. Não éramos a mesma pessoa... E se aquele fosse meu futuro? E se eu me tornasse ele? A excitação de ser, ao menos durante algumas horinhas, aquele cara me encheu. Arrumei meu cabelo da forma como eu o tinha visto usar. Coloquei meu terno preto, que raramente usava, e novamente me olhei no espelho. Eu parecia tanto com ele. Será mesmo que aquele seria eu?
- Bernardo, está na hora, vamos! - gritou minha mãe do andar de baixo.
- Já vou!
Me despertei do meu pequeno devaneio e desci as escadas. Meus pais me esperavam e me olharam.
- O que foi?
- Você ficou ótimo, meu filho! - falou minha mãe me abraçando.
- Verdade, vai arrasar corações hoje, hein? - completou papai.
- Ai, gente, para de bobagem.
Entramos no carro e fomos para a escola. O caminho estava cheio, a maioria das pessoas estava indo a pé mesmo. Entrei sob olhares curiosos e fui em direção aos fundos do anfiteatro. Senti alguém segurar meu braço fortemente e me fazer parar. Era Mariana.
- Sua grande noite, hein?
Ela tinha um sorriso maldoso no rosto. Me arrepiei com suas palavras. Ela simplesmente se virou e sumiu do meu campo de visão. Por um tempo fiquei pensando nos significados que suas palavras poderiam ter, mas logo me lembrei de que já devia estar atrasado e voltei para o meu caminho.
Subi no palco, ainda com as cortinas fechadas, e pela primeira vez senti aquela energia boa me consumir. Era incrível como estar no palco me fazia sentir ser capaz de tudo. Naquela hora, todo o meu nervosismo, todo o meu medo se foi. Aquele era o meu momento.
- Bernardo.
Olhei para trás e era Vítor. Ele estava lindo, como sempre. Exibia para quem quisesse admirar, aquele seu sorriso radiante.
- Você está muito bonito... - ele me falou meio encabulado.
- Você também.
Ele me olhava admirado, como se estivesse se decidindo sobre o que fazer. Ele olhou para os lados rapidamente e me puxou para um canto escuro. Eu só conseguia ver o brilho nos seus olhos e ouvir sua respiração ofegante. Fechei os olhos para guardar para sempre aquela sensação na memória. Seus lábios foram aos poucos encostando nos meus, sua língua foi invadindo minha boca e a massageando. Eu passei meus braços sobre suas costas, o abraçando com força. Nos soltamos lentamente e ficamos nos encarando.
- Bernardo, eu... - ele parecia engasgado com aquelas palavras - eu queria tanto poder te dizer...
- Não precisa dizer, eu sinto.
Ele me deu um selinho carinhoso e saiu comigo do lugar onde estávamos. Eu estava em êxtase, mal conseguia raciocinar tamanha felicidade.
- Vítor?
- Oi?
- Eu não vou ter coragem de te dizer isso no microfone, mas saiba que a primeira música é dedicada a você.
- Hã?
- Você vai entender.
Ele, com um sorriso bobo no rosto, saiu em direção à plateia.
- Está na hora, Bernardo. - falou o guitarrista.
- Certo.
É agora! Me posicionei no centro do palco. Meu nome foi anunciado. As cortinas subiram. Naquela hora foi como se o mundo parasse para mim. Lá de cima eu via meus pais, meus avós, Zeca, dona Rosa e seu Alfredo, Rafinha, Vítor... Nossos olhares se cruzaram. Fechei meus olhos e soltei minha voz enquanto a banda começava a tocar:
“Quando a gente conversa
Contando casos besteiras
Tanta coisa em comum
Deixando escapar segredos
E eu nem sei que hora dizer
Me dá um medo (que medo)
É que eu preciso dizer que eu te amo
Te ganhar ou perder sem engano
É eu preciso dizer que eu te amo
Tanto
E até o tempo passa arrastado
Só pra eu ficar do teu lado
Você me chora dores de outro amor
Se abre e acaba comigo
e nessa novela eu não quero ser teu amigo
É que eu preciso dizer que eu te amo
Te ganhar ou perder sem engano
Eu preciso dizer que eu te amo
Tanto
Eu já não sei se eu to misturando
Ah, eu perco o sono
Lembrando em cada riso teu qualquer bandeira
Fechando e abrindo a geladeira a noite inteira
É que eu preciso dizer que eu te amo
Te ganhar ou perder sem engano
É eu preciso dizer que eu te amo
Tanto.”
Pude distinguir as lágrimas correndo pelo rosto do meu amor em meio à multidão que me aplaudia. Na letra daquela música estava toda a nossa história, todo o nosso sentimento...
O público ainda me aplaudia enquanto eu tentava me recuperar. Não imaginava que eles iam gostar assim. Eu estava um pouco assustado, porém feliz. Minha mãe e Zeca eram os espectadores mais animados, sem dúvidas, mas era Vitor quem mais me chamava a atenção. Seus olhos brilhavam enquanto aplaudia. Ele havia entendido a mensagem que eu havia passado para ele com aquela música.
Aos poucos as pessoas pararam de aplaudir, à espera da próxima música. E comecei a segunda canção que havia planejado para aquela noite:
“Quando eu soltar a minha voz por favor, entenda
Que palavras por palavras eis aqui uma pessoa se entregando
Coração na boca, peito aberto, vou sangrando
São as lutas dessa nossa vida que eu estou cantando
A música começava lenta, e eu cantava como se desabafasse cansado.
Quando eu abrir a minha garganta, essa força tanta
Tudo que você ouvir, esteja certa que eu estarei vivendo
Veja o brilho dos meus olhos e o tremor das minhas mãos
E o meu corpo tão suado, transbordando toda raça e emoção
O desabafo então ganhava força, e meu grito tomava conta do auditório.
E se eu chorar e o sal molhar o meu sorriso
Não se espante, cante que o teu canto é minha força pra cantar
Quando eu soltar a minha voz por favor entenda
Que é apenas o meu jeito viver
O que é amar...”
(Sangrando – Gonzaguinha)
Desta vez presenciei o público me aplaudir de pé. A emoção daquele momento me invadia. Eu estava em estado de graça, não havia no mundo sensação melhor. Aquilo era incrível. Meu Deus, eu quero sentir isso sempre!
Me acalmei, não podia me descontrolar justo agora. Os acordes da última música começaram:
“O compositor me disse que eu cantasse distraidamente
Essa canção
Que eu cantasse como se o vento soprasse pela boca
Vindo do pulmão
E que eu ficasse ao lado pra escutar o vento jogando
as palavras
Pelo ar
O compositor me disse que eu cantasse ligado no vento
Sem ligar
Pras coisas que ele quis dizer
Que eu não pensasse em mim nem em você
Que eu cantasse distraidamente como bate o coração
E que eu parasse aqui
Assim”
(O compositor me disse – Gilberto Gil)
Eles voltaram a me aplaudir. Agradeci ao público segurando as lágrimas que ameaçavam desabar dos meus olhos. Eu estava em paz comigo mesmo. Eu tinha encontrado meu lugar no mundo: o palco.
Eu me preparava para sair do palco, quando vi aquela menina ruiva caminhando em minha direção. Seu vestido verde claro, rodado, simples, lhe dava um ar angelical.
Mariana trazia no rosto o mesmo sorriso maldoso que havia me amedrontado momentos antes. A plateia se calou, talvez achando que ela fazia parte do show.
Meu coração estava pesado. Alguma coisa me dizia para sair correndo dali, mas eu estava paralisado. Eu sabia que uma coisa muito ruim iria acontecer.
- Palmas, para ele, minha gente, ele merece! - ela disse pegando o microfone da minha mão.
As pessoas aplaudiram mais. Eu me forcei a olhar para elas. Não pareciam desconfiar de nada, a não ser Vítor, que sabia que alguma coisa ali não estava certa. Voltei a encarar Mariana. Seus olhos pareciam estar em chamas. Ela olhou para o público e continuou com seu teatro:
- Quando soube que meu grande amigo Bernardo iria se apresentar para vocês hoje, senti que era meu dever homenageá-lo também; uma forma de retribuir esse show de boas vindas. Eu então pensei em como eu poderia homenageá-lo aqui. Pensei muito, e decidi que, como ele já estava lhes apresentando seu lado cantor, era muito justo que lhes mostrasse seu outro lado, o Bernardo que poucos conhecem.
Senti meu corpo estremecer. O que aquela maluca ia contar? A cidade toda estava ali! Eu estava sem saída.
- Conheci esse garoto de ouro há pouco tempo, assim que me mudei para Morro Velho. Ele se mostrou educado, discreto, carinhoso, um amor de pessoa. Sempre ao lado do seu melhor amigo, Vítor. - senti um tom de deboche em sua voz - Olha ele ali, oi Vítor!
Ela apontou e todos olharam para ele, que parecia ainda mais assustado do que eu com aquilo tudo.
- Bom, acabei conhecendo o Vítor também, nos aproximamos, tal, e ele acabou me pedindo em namoro. - falou com uma voz doce.
Todos riram como se estivessem achando aquilo bonitinho da parte dela.
- Depois de um certo tempo, percebi Vítor um pouco distante. Eu me perguntava, a todo momento, o que estava acontecendo com o meu amorzinho, mas ele não me contava.
Olhei novamente para o público. Todos estavam atentos à história. Procurei Vítor com olhos, mas ele havia desaparecido. Talvez ele tivesse percebido antes de mim o que estava prestes a acontecer. Eu estava só e aterrorizado ali.
- Finalmente consegui fazer ele se abrir comigo. Ele, chorando muito, me confidenciou que acordou uma noite com seu melhor amigo, Bernardo, abusando do seu corpo achando que ele dormia.
Um burburinho tomou conta do ambiente. As pessoas comentavam umas com as outras o que tinham acabado de ouvir. Não senti minhas pernas, aliás, não sentia nenhuma parte do meu corpo, apenas as lágrimas que começavam a cair. Eu não tinha coragem de olhar para as pessoas, apenas encarava Mariana, que me retribuía com um sorriso triunfante.
- Imaginem só, meu povo, como é para um garoto de 15 descobrir que seu melhor amigo, aquele que foi criado como seu irmão, é uma bicha, e ainda mais, uma bicha apaixonada por ele. Graças a Deus consegui confortar Vítor, mas e o Bernardo, minha gente, o que será da alma desse pobre garoto?
Ousei olhar para a plateia. Alguns cochichavam, outros riam olhando para mim, outros pareciam estarrecidos com aquela história toda. Olhei para os pais do Vítor, eles pareciam confusos. Meus avós também e procuravam explicações com Zeca. Minha mãe tentava conter meu pai, que, furioso, tentava se libertar dos seus braços. Meu mundo havia caído. Tudo o que eu conhecia estava destruído. Eu não sabia o que fazer. Tudo começou a rodar e vi a cortina se fechar na minha frente. Dona Margarida segurou a mim e à Mariana pelo braço.
-O que está acontecendo aqui?
Mariana se desvencilhou das suas mãos e foi embora dali com um sorriso triunfante e olhos brilhantes. Antes se cruzou com Vítor, que tinha os olhos inchados, provavelmente por causa de choro. Os dois trocaram olhares, mas nada disseram. Mariana sumiu na escuridão. Fui correndo em direção a Vítor. Paramos um de frente para o outro, ambos chorando muito.
- Vítor, eu não tive culpa, ela...
- Cala a boca! - me assustei com a raiva em sua voz - Você acabou com minha vida! O que vai ser de mim agora?
- Vítor... me escuta, eu te amo!
- Cala a boca!
Ele me empurrou e caí sentando no chão do palco. Vi apenas um vulto vir para cima dele e o derrubar num soco. Era Zeca.
- Encosta nele de novo e eu acabo com você!
Vítor se levantou limpando a boca, que sangrava.
- Pode ficar com ele. Ele não significa nada para mim.
Aquelas palavras foram o golpe final.
Eu não significava nada para ele. Anos de amizade e carinho jogados no lixo em alguns poucos segundos. Ele foi embora. Zeca me levantou. Eu ainda chorava muito.
- Calma, Bernardo, vai ficar tudo bem.
- Não, Zeca, não vai.
Olhei nos seus olhos. Lá estava a incerteza. Ele não poderia me garantir que tudo ficaria bem. Ele não acreditava nisso.
- Vamos embora daqui, eu te levo para casa.
Eu me deixei ser guiado. Ele foi me levando pelos corredores do fundo da escola, evitando a multidão. Não sei bem como, mas chegamos à caminhonete dele.
- Sua mãe pediu para eu te levar para casa, depois ela nos encontra lá com seus avós e seu pai.
Meu pai, meus avós. Como eles estarão reagindo a isso tudo? Como seria dali em diante? A quem eu estava tentando enganar, foi um golpe duro demais para eles, nunca vão me perdoar. Eu estraguei tudo. Zeca pareceu ler meus pensamentos.
- Não se torture por antecipação, eles vão ficar do seu lado.
O silêncio reinou durante o caminho. Ele não tinha o que dizer e eu não tinha forças para falar. Logo chegamos à minha casa. Entramos e sentamos no grande sofá da sala. A qualquer momento minha família chegaria e iria começar uma longa noite.
- Ela me pareceu uma menina tão meiga e boazinha. - ele começou.
- Ela se sentiu ferida quando Vítor a deixou e resolveu se vingar em mim, a quem ela julga ser o principal culpado.
- Ela é maluca.
- Com certeza.
A porta se abriu. Os primeiros a entrar foram meus avós, que olharam diretamente para mim. Meu avô tinha o olhar perdido, e o da minha avó parecia preocupado, como o da minha mãe, que vinha logo atrás. Então entrou o meu pai. Seus olhos estavam vermelhos, não de choro, mas de raiva, como eu bem pude constatar quando cruzaram com os meus. Ele veio correndo para cima de mim, mas minha mãe e minha avó se colocaram na frente. Recuei assustado.
- Calma, André, vamos devagar!
- Devagar, mãe?! Você acabou de presenciar a mesma coisa que eu? Fomos humilhados em frente de toda a cidade! Estão rindo de nós lá fora!
Ele gritava em plenos pulmões, o que só me deixava mais assustado. Nunca o havia visto daquele jeito.
- Mas não é assim que você vai resolver as coisas. Deixa o Bernardo falar.
- Então tá, fala. - ele olhava raivoso para mim - O que aquela menina falou é verdade? Você é bicha?
- Não ouse falar assim do meu filho! - minha mãe protestou.
- Fique quieta, você é culpada disso! Criou esse menino solto demais. E então, Bernardo, verdade ou não?
Eu estava assustado. Nunca havia visto meus pais brigarem antes. Aquilo só serviu para que eu me sentisse pior. Mas não dava tempo de remoer aquela dor; eu estava sendo questionado sobre a verdade.
- Ela mentiu. Eu nunca encostei no Vítor daquela forma que ela sugeriu. - não sei de onde tirei forças para respondê-lo.
- Você é bicha ou não? - vociferou.
- Sim, me desculpa!
Fechei os olhos esperando por alguma agressão física, mas ela não veio.
Naqueles instantes minhas palavras ficaram ecoando em minha cabeça. Estava feito. Minha família agora sabia da verdade, e da pior forma possível.
Ao perceber a permanência do silêncio, abri meus olhos. Meu avô continuava contemplando um canto qualquer da sala. Zeca acompanhava tudo, quieto, sentado no degrau da escada. Minha avó estava abraçada com minha mãe observando meu pai sentado numa cadeira com as mãos cobrindo os olhos.
- Pai, me desc... - comecei, mas ele me interrompeu.
- Vai embora daqui.
- O quê?
- Você não é meu filho. Meu único filho, aquele que eu vi crescer, morreu meia hora atrás em cima de um palco. Você não mora mais aqui. Vá embora.
Sua voz era calma, como se não estivesse falando nada de mais. Eu não tinha absorvido a informação ainda. Eu estava sendo expulso de casa? Eu não tinha mais um lar? Eu estava, definitivamente, no fundo do posso.
- André, você está de cabeça quente. Vamos todos dormir, amanhã conversamos com calma. - falou minha avó.
- Não, mãe... está decidido. Ele não passa mais nenhuma noite aqui.
- Se meu filho for embora eu também vou.
As palavras da minha mãe novamente trouxeram o silêncio para a sala. Ela e meu pai ficaram se olhando intensamente.
- Eu não vou te impedir. Olha ali a porta da rua.
Eles continuaram se olhando. Pude ver os olhos dela tremerem segurando o choro.
- Bernardo, suba e vá arrumar suas coisas. Pegue só o básico, amanhã buscamos o resto.
Demorei um tempo para entender a ordem da minha mãe.
Subi as escadas lentamente, fui ao meu quarto e o olhei com saudade. Eu não sei quanto tempo levaria até eu vê-lo novamente. Talvez aquela fosse a última. Fui colocando minhas roupas numa mochila e lembrando das coisas que eu passei naquela casa. Toda a minha infância estava cravada naquelas paredes. Eu nasci ali! Agora, aquele não era mais meu lar.
- Vamos para a fazenda com sua avó e o Zeca. Seu avô vai dormir aqui essa noite. - disse minha mãe quando me viu ao pé da escada, de mochila pronta.
Ninguém disse mais nada. Entramos os quatro no carro, em silêncio. Antes olhei mais uma vez para a fachada antiga daquele casarão colonial. Na janela estava meu pai, e pela última vez, trocamos um olhar. Naquela hora eu tive certeza, eu havia destruído minha própria família.
Passei a noite em claro na fazenda.
Pensava em tudo que havia acontecido nas últimas horas, Vítor, Mariana, meu pai.
Eu não sabia o que iria acontecer agora.
Eu não tinha casa, nem minha mãe, que se sacrificou por mim. Pobre mulher. Meu futuro era incerto e isso me dava medo. Tristeza eu nem sentia mais, havia sofrido tanto nos últimos dias que parecia ter secado minha lágrimas. Não tinha mais vontade de chorar. Eu não tinha vontade de nada.
Os primeiros raios de Sol invadiram o quarto e me aproximei da janela para admirar a manhã que nascia em minha frente. Nunca fui uma pessoa muito religiosa, mas naquele momento senti uma presença divina no horizonte. Fechei os olhos e pedi baixinho:
- Eu não sei quem está aí. Não sei se é Deus, Jeová, Alá, Jesus ou Cosmos; apenas peço que me guie para fora da escuridão que se tornou a minha vida. Faça com que tudo se ajeite, faça com que eu seja feliz de verdade; estou cansado de viver o tempo todo triste. Eu acho que mereço isso depois de tudo. Por favor, me ajude!
Fechei os olhos novamente pedindo que minhas preces fossem escutadas. Desci as escadas e só encontrei minha avó de pé. Ela preparava o café da manhã, mas parou para me receber com um sorriso.
- Bom dia, dormiu bem?
- Não dormi. Não consegui.
- Bom, coma um pouco e tente dormir, você passou por fortes emoções.
- Vó... - chamei com um nó na garganta.
- Sim, meu bem?
- Me desculpe!
- Pelo quê?
- Por tudo.
Ela veio, me abraçou e beijou o topo da minha cabeça carinhosamente.
- Não precisamos conversar sobre isso, apenas se lembre que acima de tudo você é meu neto e eu te amo.
Me senti reconfortado com suas palavras. Pelo menos ela também não iria me virar as costas. Lembrei do meu avô.
- E meu avô?
Ela deu um suspiro e continuou:
- Seu avô é um homem velho, antigo, criado com todos os preconceitos possíveis, mas é também um homem muito amoroso, que sempre põe a família em primeiro lugar. Não espere dele palavras de apoio ou abraços de consolo, mas pode ter certeza que ele não vai te abandonar.
Ele provavelmente vai fingir que nada disso aconteceu e que não sabe de nada. É o jeito dele de te aceitar.
Acho que aquilo me deixava feliz. Ao menos eu tinha a maior parte da minha família junto a mim naquela hora difícil. Comi meu café da manhã e voltei para o quarto. Finalmente consegui dormir um pouco. O cansaço era tanto que nem consegui lembrar do que tinha sonhado quando acordei. O Sol já estava alto quando abri os olhos. Já devia passar da hora do almoço. Troquei de roupa e desci as escadas. Parei quando vi todas as minhas coisas e da minha mãe no chão da sala.
“É definitivo” pensei.
- Como estão as coisas por lá Zeca?
Era a voz da minha mãe. Ela estava com Zeca e minha avó num canto do cômodo. Não haviam me visto ainda, então decidi ouvir a conversa deles em silêncio.
- Bem feias. O povo se aglomerou na porta da sua casa. Todos cochichando. Seu marido está trancado lá sem querer falar com ninguém. O seu Leopoldo que abriu para mim.
- É bem típico desse povinho mesmo.
- Calma, minha filha. - disse minha avó a consolando.
- André não falou mais nada?
Zeca pareceu hesitar por um instante, mas respondeu:
- Sim, culpou você e o Bernardo por aquele circo todo. Falou também que por ele é melhor que não voltem para a casa dele mais, que fiquem aqui na fazenda.
- Entendo... - minha mãe tinha o olhar triste - Mas não vamos ficar aqui na fazenda.
- E para onde vocês vão, Luiza? - perguntou minha avó.
- Liguei para minha irmã mais cedo e ela concordou que morássemos com ela. Eu e o Bernardo vamos nos mudar para Belo Horizonte.
- O quê?! - eu, minha avó e Zeca dissemos em uníssono, o que acabou revelando minha presença.
- Você estava aí esse tempo todo?
- Não, cheguei agora. Que história é essa mãe?
- Não tem jeito, meu filho. Ou nos mudamos para Belo Horizonte ou teremos que viver para sempre sob os olhares dessa gente. Nem digo por mim, que não me deixo afetar por eles, mas iria ser muito difícil para você.
Pensei naquilo. Nas minhas lembranças, Belo Horizonte parecia um lugar tão distante...
A última vez que havia visitado tia Marta lá foi quando eu era criança ainda. Agora, morar lá? Essa era realmente nossa única saída? Sim, era.
No fundo eu sabia que a cidade nunca esqueceria o que aconteceu e me deixaria em paz. Sem contar que eu teria que ver todo dia meu pai, Vitor e Mariana.
Não parecia algo bom. BH era mesmo nossa melhor opção.
- Então, vamos para BH. - respondi com uma falsa empolgação.
- Tem certeza? Vocês vão ficar tão longe de nós.
- Dona Maria, - começou a minha mãe pegando nas mãos da minha avó - eu não tenho palavras para agradecer tudo o que a senhora e o seu Leopoldo fizeram por nós. BH não é tão longe, duas horas e pouco de carro só. Vocês podem nos visitar quando quiserem, porque apesar de tudo ainda considero vocês parte da minha família.
As duas se abraçaram emocionadas e demoraram um tempo até se soltarem.
- Eu gostaria de ir para lá o mais depressa possível. Você pode nos levar Zeca?
- Claro, podemos sair daqui à noite.
- Que seja então.
- Vou colocar suas coisas no carro.
- Eu te ajudo. - completei, indo ajudá-lo a carregar nossas malas.
Caminhamos em silêncio até o carro e começamos a ajeitar as coisas.
- Você está bem, campeão? - ele perguntou.
- Não, não tem como.
- Acalme-se, tudo vai se resolver. Você está tendo uma oportunidade rara de reconstruir sua vida do zero. Aproveite-a.
- Será que eu vou conseguir?
- Claro! Se não, eu vou estar lá para te ajudar; ou você se esqueceu que agora moraremos na mesma cidade? - completou com seu lindo sorriso.
Eu nem tinha me dado conta desse fato. Isso me deixou mais feliz com a mudança. Eu teria Zeca sempre ao meu lado. Abri um sorriso.
- Nem tinha me tocado. Já estou começando a gostar de BH.
Ele sorriu para mim de volta. Vi aos poucos seu sorriso sumir ao olhar para algum ponto atrás de mim. Virei para que pudesse ver a razão.
Lá estava ele, parado próximo a uma grande árvore. O Sol batia forte e se refletia nos seus cabelos dourados.
Vítor, o motivo de tudo aquilo. Como Zeca, meu sorriso e minha alegria foram-se embora. Meu coração pesou.
- Eu vou lá resolver isso agora! - disse Zeca com raiva arregaçando as mangas para poder começar uma briga com Vítor, mas o segurei pelo braço.
- Essa briga não é sua, eu vou.
- Mas...
- Sem mas, eu que vou resolver isso.
Comecei a caminhar em direção a Vítor despido de qualquer sentimento. Naquele momento eu era como um robô, incapaz de sentir qualquer coisa, quanto mais amar. Vítor era um estranho para mim agora, suas últimas palavras na noite anterior foram um divisor de águas. Parei em frente a ele. Parecia abatido, mas não senti pena.
- Por que as malas? - sua voz era vazia, sem sentimento.
- Eu estou me mudando.
- Pra cá?
- Não, Belo Horizonte. Fui expulso de casa pelo meu pai.
Ele me olhou profundamente por um algum tempo. Depois seu rosto se transformou e eu vi raiva.
- Então é assim? Você faz merda e depois foge?
- Como é?! - respondi no mesmo tom agressivo não acreditando no que ele dizia.
- Você me humilha na frente da cidade e vai embora deixando tudo nas minhas costas! - nós dois já gritávamos.
- Eu? Foi aquela piranha da Mariana, se você não está lembrado! - Será que você é surdo e não ouviu que eu fui expulso de casa por causa daquela sem vergonha?
- Olha lá como fala dela!
- Por que eu deveria medir minhas palavras?
- Porque ela é minha namorada! - e exibiu a reluzente aliança de compromisso no seu dedo.
Depois de tudo que ela fez, ele a aceitou de volta? Eu não podia acreditar. Aquilo tudo só podia ser mentira. Mas não, era verdade, a única mentira ali era meu relacionamento com ele. Uma raiva que nunca havia sentido antes subiu pela minha garganta e me fez explodir. Concentrei todo o meu ódio no punho direito e soquei o rosto de Vítor com toda a força que consegui. Ele caiu deitado com o nariz sangrando. Me olhava assustado, com certeza não devia estar esperando aquela minha reação. Achei que ele ia revidar, mas não. Levantou, limpou o sangue e falou:
- Eu tinha que voltar com ela. Meus pais ficaram muito confusos com aquilo tudo. Eles chegaram a pensar que eu era gay! Tive que confirmar a história dela e reatar o namoro.
Sua explicação não me aliviou, apenas me deixou com ainda mais raiva.
- Você é um covarde!
- O que você queria que eu fizesse? Assumisse? Eu não podia perder tudo!
- Não, seu desgraçado! Por causa de você eu perdi tudo! Meu pai expulsou a mim e minha mãe de casa. A cidade toda está falando de mim. - eu falava apontando o dedo pra sua cara e ele recuava assustado - Você destruiu a minha família, minha vida!
- Eu?
- É! Você e esse maldito sentimento que eu nutria por você!
- No passado? Deixou a bichisse de lado? - falou de forma afetada.
- Não, continuou tão gay quanto antes, mas abri meus olhos. Abri meus olhos pra ver o quão egoísta, covarde e falso você é. Você não merece sentimentos bons vindos de ninguém! Aliás, merece sim, os da Mariana. Você e ela se merecem!
- Eu e ela vamos ficar juntos!
- Até quando? - ri desdenhosamente - Porque você é gay, Vítor... tão gay quanto eu, e um dia isso vai cair na sua cabeça!
- Eu não sou gay!
- É!
- Cala a boca! - e partiu pra cima de mim com tudo.
Ele me golpeava e eu revidava. Parecíamos dois selvagens rolando na grama entre socos e ponta pés. Senti braços fortes nos separando. Era Zeca:
- Parem com isso!
Ele conseguiu nos afastar. Vítor estava um trapo, com roupas rasgadas, manchadas de sangue e hematomas. Eu não devia estar muito melhor, meu corpo inteiro doía.
- Vá embora daqui, Vítor. - falou Zeca.
- Eu vou mesmo, espero nunca mais vê-los.
- Digo o mesmo. E fala uma coisa pra sua namoradinha: o mundo dá voltas. Quando ela menos esperar vai pagar por tudo.
Ele nem pareceu ter ouvido a última parte... saiu andando da fazenda, montou na bicicleta e foi embora.
Eu custava acreditar em tudo que havia acabado de acontecer. Se aquilo teve alguma boa consequência, foi a consciência de que eu só sentia ódio pelo Vítor. Eu realmente esperava nunca mais vê-lo, e minha mudança iria ajudar com isso.
- Você está bem?
- Estou. Agora tenho ainda mais certeza de que o melhor é ir embora daqui.
Ele me olhou intrigado, como se tentasse ler o que se passava em minha mente. Não lhe dei atenção, entrei rápido no casarão, corri para o banheiro me limpar para que minha mãe e minha avó não vissem meu estado. Tomei banho e vesti uma roupa qualquer. Me olhei no espelho e agradeci por ter sido golpeado apenas no corpo. Elas não perceberiam o que aconteceu. Desci e senti o cheiro bom que vinha da cozinha. Fui até lá e minha avó cozinhava.
- O cheiro está ótimo!
- A ocasião pede, não sei quando vou jantar com vocês novamente. - ela disse enchendo os olhos de lágrimas.
- Não chora, vó; a senhora sabe que não tem outro jeito. E, além disso, a senhora vai sempre poder nos visitar.
- Sim, eu sei. - ela falou enxugando as lágrimas no avental.
Passei aquele fim de tarde a ajudando na cozinha. Quando terminou, todos jantamos juntos. Nossa última refeição reunidos, em muito tempo. Obviamente, todos choramos muito.
Depois nos despedimos com um peso no coração e entramos no carro. Zeca ligou a caminhonete e lentamente fomos deixando a fazenda. Em poucos minutos chegamos ao alto das montanhas, de onde era possível ver todas as luzes de Morro Velho acesas.
Lá estava eu: sem esperanças, sem amor, sem meu pai, indo para um lugar totalmente novo e deixando para trás toda uma vida. Mas o engraçado é que eu não me sentia triste ou feliz. Meu coração parecia ter sido congelado. Com aquele pensamento, olhei para Morro Velho uma última vez me lembrando de tudo que vivi ali. Eu não voltaria a ter aquela vista por muitos anos...
Zeca, minha mãe e eu ficamos em silêncio durante a viagem. Eu e ela pensando sobre a nova vida que nos aguardava e ele respeitando nosso momento.
Como seria? Eu iria me adaptar? Iriam me aceitar aqui? Viver numa cidade grande é uma coisa completamente diferente. O que viria a seguir?
Às nove da noite, vindos pela rodovia Fernão Dias, entramos na região metropolitana de Belo Horizonte. Entrando naquela malha urbana, já se começava a sentir o ar pesado da metrópole. Passamos pela zona industrial das cidades vizinhas e em cima do viaduto, eu vi as luzes da cidade.
BH se mostrava ao fundo, imponente com altos prédios entre as montanhas. Fazia muito tempo que havia estado ali, não me lembrava daquela vista.
À medida que íamos entrando na cidade, mais eu me impressionava com suas luzes e prédios. Era um sábado à noite, as ruas estavam cheias de carros, agitadas, o que só me deixava mais fissurado naquilo. Ao passarmos pela região da Savassi, vi uma cena que me chamou a atenção: dois garotos, não deviam ser muito mais velhos do que eu, trocando carícias e selinhos em meio ao seu grupo de amigos. Aquilo me deixou tonto. Que mundo novo era aquele tão diferente de Morro Velho? Será que havia uma chance real de eu ser feliz ali do jeito que eu sou? Senti a esperança de uma vida melhor renascendo em mim.
Alguns minutos cruzando por ruas e avenidas, chegamos ao prédio da minha tia. Era um prédio alto, quase vinte andares, num bairro nobre da zona sul da capital. Minha mãe tocou o interfone e minha tia avisou que iria descer. Eu estava nervoso, fazia tempo que não via tia Marta. Logo vimos a porta do elevador se abrir e ela aparecer. Ela era alguns anos mais velha que minha mãe, com cerca de 45, loira de cabelos longos sempre armados. Usava pesadas joias e maquiagem forte. Eu me perguntei o motivo já que ela estava em casa. Não havia motivo, ela simplesmente era perua. E uma das grandes.
- Olá, meus queridos! - disse abraçando a mim e minha mãe de uma só vez.
- Oi, Marta, como vai?
- Maravilhosa! - ela pegou no meu rosto e perguntou: - E você, meu bem, como está?
- Bem, dentro do possível. - respondi constrangido.
- Ótimo, vamos subir então. - ela analisou o Zeca. - Humm, e quem é você, garotão?
Ele ficou vermelho de vergonha enquanto eu e minha mãe ríamos.
Tia Marta tinha aquele jeito estridente, alegre, que contagiava todos à sua volta. Ela já tinha sido casada três vezes, e assim foi construindo sua pequena fortuna pessoal. Ela era quase um exemplo de vida, era daquele jeito e não tinha vergonha de se mostrar inteira para quem quer que fosse.
- Zeca, prazer! Só vim trazê-los. - ele falou a cumprimentando.
- O prazer é todo meu. Marta Fonseca, às ordens. Vamos subir, minha gente?
- Vamos, sim. Ajude o Zeca com as malas, Bernardo.
- Certo, mãe.
Eu e Zeca pegamos a bagagem. Não era muita coisa, na maior parte roupa e objetos pessoais pequenos. Não quisemos trazer muita tralha para a casa da tia Marta. Subimos no elevador até o sétimo andar do edifício e a porta do apartamento já se encontrava aberta para a gente. Era um lugar luxuoso. Os móveis antigos de estilo vitoriano contrastavam muito bem com o vermelho e as estampas elegantes dos sofás e cortinas. O apartamento exalava vida. Era a cara da minha tia.
- Bom, meninos, deixem tudo aqui na sala mesmo, teremos tempo para ajeitar tudo depois. Fica conosco esta noite, Zeca?
- Não, obrigado dona Marta. Eu moro aqui com meus tios e eles moram do outro lado da cidade, tenho que ir. - ele ainda estava um pouco envergonhado.
- Ah, que pena! Mas espero que venha nos visitar.
- Claro, venho sim.
- Obrigado por tudo Zeca. - falou minha mãe.
- Era o mínimo que eu podia fazer pela senhora e pelo Bernardo; não precisa agradecer.
- Vou acompanhar ele até o carro, mãe.
- Certo.
Zeca se despediu das duas e entramos novamente no elevador.
- Gostou da sua nova casa?
- Não me senti em casa... - respondi triste.
- Anime-se, daqui a pouco você se acostuma. Você vai ver que a cidade é ótima, um belo lugar para recomeçar.
- Recomeçar... É o que eu preciso.
- Sim, e desta vez vai ser tudo diferente.
- Será?
- Tenho certeza, aqui você vai ser feliz de verdade.
- Obrigado pelo apoio.
- Não tem o que agradecer; faço porque gosto muito de ti e da sua mãe.
O elevador chegou ao hall e nos dirigimos para o carro.
- Bom, você tem meu telefone, qualquer coisa me liga.
- Certo. Tchau!
- Boa noite. - e me deu um beijo inesperado no rosto me fazendo sorrir.
Ele entrou no carro sorrindo para mim; lindo.
Naquele momento eu desejava mais do que nunca amá-lo de verdade, mas meu coração estava vazio no momento e não havia espaço para mais ninguém.
Subi novamente para o apartamento. Minha tia já veio logo me puxando.
- Venha, Bernardo, vou lhe mostrar seu quarto.
- Não precisa tia, eu durmo em qualquer lugar. - falei constrangido.
- Nem pensar, vou te instalar no quarto do Bruno.
Bruno era o filho dela. Fazia tempo que eu não o via, mas sempre nos demos bem. Ele era alguns anos mais velho que eu e tinha a mesma alegria de viver da sua mãe.
- Não precisa tia, não quero incomodar ele.
- Que incomodar o que, ele está fazendo faculdade na França, o quarto está livre para você.
Chegamos ao quarto. Era grande, o dobro do que eu tinha em Morro Velho. Parecia ter tudo o que um adolescente quer: uma televisão, um computador, aparelho de som, uma cama de casal, um banheiro e muito mais.
Fiquei meio bobo.
- Ah, tia, o quarto é muito grande, deixa ele para a minha mãe.
- Não, não precisa, ela vai ficar no quarto de hóspedes. Já mandei arrumar para ela quando me ligou mais cedo.
- Mas...
- Sem mas. Tenho certeza que o Bruno ficará muito feliz quando souber que está o ajudando.
- Obrigado, tia. - me rendi sem argumentos.
- De nada, meu querido! - falou me abraçando e beijando o topo da minha cabeça - Afinal, família é para isso, ajudar uns aos outros nos momentos difíceis.
Lembrei do meu pai naquele momento, mas decidi ficar quieto. Apenas fechei os olhos e aceitei o seu afago.
- Bom, arrume suas coisas, toma um banho se quiser. Pedi uma pizza para nós três, quando chegar venho te chamar.
- Certo.
Ela saiu do quarto, fechou a porta e me deixou sozinho lá. Olhei em volta admirando meu mundo novo. Fui até a janela e admirei a cidade desejando uma vida nova.
Meu futuro era incerto. Eu ainda não sabia que surpresas Belo Horizonte me guardava, mas desejei que estivesse ali meu final feliz. A vista era linda. Os prédios se mostravam imponentes na minha frente, mas por trás sempre se via a serra, mostrando que era maior que eles. Cada vez que eu parava para admirar a cidade, me apaixonava mais por ela.
Logo a pizza chegou e nós três nos sentamos à mesa para comer. Em nenhum momento tocamos no assunto delicado que era o motivo da nossa vinda. Estávamos todos tentando esquecer aquilo.
Minha tia nos comunicou que tinha conseguido falar com uma amiga sua, diretora de um grande colégio, e ela havia aceitado me entrevistar para uma vaga lá em pleno domingo. Se tudo corresse bem, na segunda mesmo eu estaria estudando. Confesso que senti um frio na barriga. Eu não sabia como essa nova turma seria. Se gostariam de mim e me aceitariam. Para falar a verdade, eu nem sabia se diria a verdade para eles. Achei que era melhor não. Tinha aprendido minha lição e prometi a mim mesmo que seria mais cuidadoso com essa questão.
Depois de comer, tomei um banho e fui arrumar minhas coisas. Tia Marta tinha esvaziado o guarda-roupas do Bruno para que eu o usasse, mas se mostrou desnecessário, pois minhas roupas não chegaram a ocupar nem metade do espaço disponível.
Não demorou muito tempo e fui me deitar, mas não consegui dormir. Ficava rolando na cama relembrando tudo o que tinha acontecido nos últimos dias. Decidi me levantar e ir beber água na cozinha. Fui na ponta dos pés para não fazer barulho, mas parei ao ouvir vozes vindas do quarto da minha tia. A curiosidade foi maior e encostei meu ouvido na porta. Ela e minha mãe conversavam.
- Você acha que o Bernardo vai conseguir superar tudo isso, Luiza?
- Não sei, eu espero que sim. O que aconteceu com ele é muito grave, eu mesma não sei se teria a força que ele teve para seguir em frente.
- Ele é um garoto muito especial.
- Sim, com certeza.
- E seu casamento, vai superar isso?
- Não.
- Nossa, tão decidido assim?
- No momento que ele renegou o próprio filho deixou de ser aquele homem que eu amava.
- Não tem volta mesmo?
- Não. Eu não quero, e pelo jeito nem ele. Meu casamento acabou.
- Oh, minha querida...
- Mas eu não posso demonstrar isso para o Bernardo, ele vai ficar se culpando.
- Eu te entendo.
As últimas palavras da minha mãe saíram com voz de choro, o que me feriu profundamente. Até aqui ela tinha sido forte, mas só na minha frente. Na verdade ela estava arrasada pelo fim do seu casamento e eu era, sim, o culpado. Voltei para o meu quarto e afundei minha cabeça no travesseiro tentando sufocar meus pensamentos. Dormi vencido pela exaustão.
No dia seguinte acordei tarde, o Sol já estava alto. Ouvi vozes na sala de jantar. Me arrumei, fiz minha higiene matinal e me dirigi até lá. Uma mulher baixa, um pouco gorda, cabelos negros presos em um coque baixo e um rosto fechado tomava café com minha mãe e minha tia.
- Esse é Bernardo, Glória. - nos apresentou minha tia.
Cumprimentei a mulher.
- Ela veio te conhecer, meu filho, é a diretora da sua nova escola. - completou minha mãe.
- Prazer, senhora!
- O prazer é meu. Vim te conhecer. Sua tia me ligou ontem contando sua história. Fiquei fascinada pela sua coragem, meu jovem.
- Obrigado! - respondi envergonhado, não tinha do que me orgulhar.
- Bem, quis te conhecer. Mas a sua vaga já estava garantida a partir do momento que sua tia me ligou; eu e ela somos amigas há anos.
- E que anos, hein Glorinha? Só dava a gente nos anos 80!
- Verdade, Marta. - desconversou. Por ser uma mulher muito séria, parecia querer disfarçar seus dias de festa. - Voltando ao assunto, Bernardo, quero te dizer que só eu sei a história toda e fica a seu critério contar para outras pessoas ou não.
- Eu ainda não sei bem o que dizer...
- Bom, então por enquanto diremos que você veio para cá com sua mãe após o divórcio dos seus pais. Não deve gerar muitos comentários. Depois, se você quiser, conte a história toda.
- Obrigado.
- Não tem de quê, faço tudo para ajudar meus alunos, mesmo que eles não concordem em ter minha ajuda às vezes. - riu.
Ficamos os quatro conversando por mais algum tempo. Me vi distante da conversa. Ainda pensava sobre o dia seguinte, como seria voltar para a escola. Era uma mistura de medo do desconhecido com esperança de que tudo seria diferente agora. Eu ainda não sabia como lidar com minha história, por isso decidi por mantê-la em segredo, pelo menos por enquanto.
Depois que Glória foi embora, saí com minha mãe e minha tia para comprar meu material escolar. Tia Marta fez questão de pagar tudo, apesar da insistência da mamãe de querer fazê-la economizar dinheiro.
Foi um domingo bastante divertido, me fez esquecer um pouco dos pensamentos ruins que rondavam minha cabeça.
Fomos a um shopping perto da casa dela e passamos o dia fazendo compras, almoçando, tomando sorvete, indo ao cinema, enfim, um descanso depois da intensidade dos últimos dias.
No fim do dia, minha mãe cozinhou para nós e ficamos jantando enquanto assistíamos televisão. Arrumei minhas coisas para o dia seguinte e fui me deitar. Minha tia, escondido da minha mãe, me deu um calmante leve para que eu dormisse melhor. Ajudou bastante, não perdi tempo com nervosismo pelo dia seguinte e logo adormeci.
Acordei cedo naquela manhã de segunda-feira e fiquei um tempo encarando o teto, tomando coragem para me levantar. Tomei banho, escovei meus dentes, coloquei uma roupa muito bonita, arrumei meu cabelo e fui tomar meu café. As duas já me esperavam com a mesa posta.
- Com fome?
- Uhum.
- Nervoso?
- Uhum.
Elas riram.
Conversamos sobre banalidades enquanto comíamos, mas eu ainda estava nervoso. Minha barriga chegava a doer um pouco tamanha a ansiedade. Minha tia me levou de carro e me desejou boa sorte.
Desci nervoso e admirei por um momento os grandes portões de ferro da minha nova escola. Muitos alunos já entravam conversando, provavelmente colegas de anos anteriores, outros entravam calados, talvez novatos como eu. Menos mal.
Entrei observando cada detalhe do prédio antigo. Minha tia havia me dito que aquele colégio era muito tradicional, quase tão antigo quanto a centenária Belo Horizonte.
Olhei meu nome numa lista exposta próxima à entrada, conferi o número da minha sala e saí procurando por ela. Não foi muito difícil, logo achei.
Respirei fundo, pus a mão na barriga para aplacar um pouco da dor de nervosismo que sentia e entrei.
Meu primeiro ano do segundo grau nessa nova vida...
Poucas pessoas haviam chegado, mas uma em especial me chamou a atenção.
Lá no fundo eu vi um menino de cabelos loiros, bagunçados, distraído olhando pela janela, não sei o que me atraiu nele, mas o encarei.
Quando ele virou seu rosto para mim, vi os olhos mais azuis que já tinha visto em toda a minha na vida...
Quando nossos olhares se cruzaram, senti uma sensação totalmente nova. Eu ainda não sabia, mas ali eu conhecia uma das pessoas mais importantes da minha vida.