TRAVESSIA [10]~ Um amor leve!

Da série TRAVESSIA
Um conto erótico de BERNARDO
Categoria: Gay
Contém 5093 palavras
Data: 06/05/2024 16:11:47

- Bernardo! Onde você se meteu, eu estava te procurando?

- Ahh, me perdi dentro dessa casa. É muito grande.

- Sua mãe já está lá fora nos esperando, vamos.

- Ok, vamos nos despedir do Felipe antes.

Nos despedimos dele. Apesar de ter sido como meros colegas, os olhares trocados exprimiam nossa vontade de nos beijar ali mesmo.

Fui embora feliz. Entrei no carro e minha mãe, vendo minha alegria, riu demonstrando ter percebido tudo. Não quis conversar com ela sobre isso, nem mesmo quando Renata desceu do carro e ela me perguntou.

Respondi que depois lhe contava. Chegamos em casa e me joguei na cama, ainda com a roupa da festa. Feliz, adormeci cantarolando:

“Estranho mas já me sinto como um velho amigo seu

Seu All-Star azul combina com o meu, preto, de cano alto”

- Bernardo, telefone para você!

Fui acordado assim naquele domingo de manhã. Eu ainda estava sonolento, mas sorri ao lembrar do sonho que havia acabado de ter com Felipe. Finalmente as coisas pareciam estar dando certo na minha vida.

- Alô? - disse pegando o telefone.

- Bernardo?

- Felipe?

- Eu sim, te acordei?

- Ah... Sim. - rimos.

- Me desculpa, mas já era tempo. Já está quase na hora do almoço.

Olhei no relógio da parede e me assustei.

- Nossa, dormi demais!

- Estou vendo! - falou rindo.

- Ah, é que sonhei a noite toda com um carinha aí.

- Ah é? Posso saber quem é?

- Hum, acho que você não o conhece. É um garoto lindo de olhos azuis escuros e brilhantes e voz doce de quem eu estou gostando muito.

- Hahaha, você conseguiu me deixar vermelho pelo telefone.

- Vitória! - ficamos rindo os dois no telefone.

- Bom, te liguei para te convidar para fazer algo.

- Certo, o quê?

- Não sei, que tal um cineminha à tarde?

- Por mim está ótimo. Vamos marcar às três no Diamond Mall (shopping de BH e muito requintado).

- Combinado então, às três no Diamond. Até lá, beijo.

- Outro.

Me derreti todo com aquela micro conversa. Saí pulando da cama, me arrumei e fui para a sala. Minha mãe e minha tia já foram perguntando a razão do meu entusiasmo. Contei para elas tudo o que aconteceu, não tinha motivo para manter segredo.

- Fico feliz por você, meu filho, mas vai com calma.

- Eu sei, mãe, estamos indo com calma justamente para não me machucar.

- Tem mais é que se jogar, você não terá quinze, para sempre. Daqui a pouco estará como eu, aos trinta e nove e divorciada. - falou minha tia.

Eu e minha mãe nos olhamos.

- Há quanto tempo você tem trinta e nove anos tia?

- Há sete; resolvi parar o tempo um pouco.

Ficamos os três rindo até a hora do almoço. Minha mãe me deu a ideia e chamei Zeca para almoçar conosco. Eu estava doido para contar para ele as novidades. Ele veio, nós almoçamos todos juntos no apartamento mesmo e já fui o arrastando para o meu quarto.

Ele entendeu que eu estava louco para contar o que tinha acontecido.

- E então como foi a festa?

- Não sei, estava muito ocupado prestando atenção no Felipe. - falei rindo.

- Bobo, como foi?

- Foi ótimo, foi numa casa muito grande, que depois fiquei sabendo que era dos avós dele; tinha muita gente, garçons, a família dele parece ter muito dinheiro...

- Bernardo, - ele disse me interrompendo - não foi isso que eu quis perguntar.

- Eu sei. - ri - Ele se declarou para mim e nos beijamos!

- Que ótimo! Agora sim, garoto. Me conta tudo, quero os detalhes mais sórdidos.

Contei tudo para ele, que me ouviu atentamente, só fazendo comentários breves.

- Bernardo, já percebeu que sua vida amorosa parece estar atrelada à música?

- Já percebi; irônico não?

- Não. Talvez seja uma mensagem para você dar uma segunda chance para a música.

- Ah, nem vem com esse assunto de novo, Zeca.

- Venho sim, meu caro, é um pecado alguém com sua voz não usá-la.

- Você sabe tudo o que aconteceu...

- Sim, sei, e acho que já está mais do que na hora de deixar isso para trás. A música faz parte de você, enquanto você a renegar vai se sentir incompleto.

O assunto terminou ali. Ele tinha uma certa razão, a música fazia parte de mim, eu realmente sentia que alguma coisa estava faltando. Mas eu também tinha certeza que aquela não era a hora certa de tentar de novo. Ainda não estava pronto.

Logo depois Zeca foi embora e eu tratei de me arrumar para encontrar Felipe.

Como era perto, fui a pé mesmo para o shopping.

Eu já estava me acostumando a caminhar por BH. Eu gostava de ver os prédios e o movimento das ruas. Cheguei cerca de dez minutos antes do combinado; não gostava de deixar ninguém esperando.

Fui para a praça de alimentação e ele já estava me esperando.

Me recebeu com um sorriso imenso e um brilho especial nos olhos. Me cumprimentou com um abraço meio desajeitado, mas entendi que era por estarmos em público. Nossa vontade era de um beijo cinematográfico, o que, infelizmente, era impossível.

- Estava com saudade. - falei.

- Já?

- Você não estava?

- Não. Eu ainda estou com saudade, e ela só vai ser saciada com um mega beijo, que vai ter que ficar só na vontade.

Fiquei muito vermelho na hora, mas também muito feliz de estar sendo desejado por ele.

Além dele ser um garoto especial para mim, elogios são sempre bons para o ego.

- Gostou da minha camisa? Eu estou adorando mesmo.

- É muito show! - rimos.

Ele estava usando a camisa que dei a ele de presente de aniversário. Era uma polo branca com detalhes em vários tons de azul que combinavam com aqueles olhos hipnotizantes dele. Eu não conseguia parar de olhar. Lindo demais...

Como a sessão já estava começando, não demoramos muito tempo conversando ali. Assistimos “Chocolate”, com a Juliette Binoche e o Johnny Depp. Nem preciso falar que ao assistirmos aquele romance juntos, rolaram carícias leves nos braços e mãos um do outro, mas não passamos disso; a sala estava cheia de gente. Ao sairmos, fomos comer alguma coisa no Burger King e conversamos para nos conhecermos melhor.

- Seus pais sabem de você? - ele perguntou.

- Moro com minha mãe e minha tia, as duas sabem de mim.

- E seu pai?

- Mora em Morro Velho, minha antiga cidade, e não sabe de nada. - menti depressa, não queria conversar sobre aquilo.

- Hum. E você sempre vê seu pai?

- De vez em quando. - tentei mudar de assunto rapidamente. - E seus pais sabem de você?

- Não, ninguém sabe. E acho que nunca vou contar, não tenho necessidade disso.

- Tenho um amigo que pensa assim também, mas para ele é fácil porque os pais moram a quase 200 quilômetros de distância. Seus pais nem desconfiam?

- Acho que não, faço de tudo para que eles não percebam nada.

- Não é ruim viver desse jeito, escondido?

- Ruim é, mas seria pior de outro jeito. Eu conheço muito bem minha família, eles nunca me aceitariam.

- É um assunto complicado mesmo...

Como o clima ficou meio pesado, resolvi mudar para um assunto mais alegre.

- Você e os garotos realmente têm uma banda?

- Sim, sim, mas acredita que até hoje não temos um nome?

- Sério? - perguntei rindo.

- Sério. - ele riu também.

- E como vocês se apresentam?

- Ah, não nos apresentamos, chegamos de surpresa e tocamos.

- Loucos!

- Gostou da nossa música?

- Gostei, vocês tocam bem, apesar daquele não ser meu estilo favorito de música.

- E que estilo você gosta?

- Ah, prefiro os rocks mais leves, com menos barulho desnecessário e mais voz. Aliás, lá vai uma crítica construtiva: tenta usar mais a voz e menos os instrumentos, você canta muito bem.

- Obrigado! Eu digo isso com os meninos, mas eu sou voto vencido, eles adoram heavy metal!

- E você não?

- Não tanto como eles, prefiro os nacionais, como Cazuza e Renato Russo.

- Eu amo os dois!

- Sério?

- Aham, sou muito fã deles.

- Bom, então já descobrimos interesses em comum. E que outros estilos você curte?

- Deixa eu ver, além do rock eu gosto de MPB, jazz, blues, bossa nova, e até um pouco de samba, mas os bons, não suporto pagode!

- Nem eu! Pronto, já temos um inimigo em comum.

Rimos juntos. Estávamos realmente nos divertindo ao nos conhecermos melhor.

- E você, nunca se interessou por música. Digo, além de só ouvir?

- Bom... - fiquei em dúvida, mas decidi arriscar. - De vez em quando eu canto também.

- Eu desconfiei disso, você tem uma voz muito bonita. Chega a dar inveja.

- Exagerado! - ri.

- Sério, um dia você ainda vai fazer um dueto comigo e meu violão.

- Quem sabe... - ri nervoso. - Então você toca violão também?

- E muito bem.

- Convencido. Eu também toco um pouco de piano, mas só o básico que minha mãe me ensinou.

- Sua mãe toca? Que legal.

- Aham, ela é professora de música, tudo o que eu sei sobre o assunto aprendi com ela.

- Nossa, isso é muito bom. Queria que meus pais fossem assim, eles acham que músico é profissão de vagabundo.

- Que maldade! Tem muita gente séria nessa área.

- Eu sei, falta só convencê-los disso.

O papo continuou naquele clima descontraído por muito tempo, horas talvez. O assunto não acabava, íamos sempre emendando um no outro, até que chegamos num assunto delicado:

- Bernardo, posso te fazer uma pergunta bem pessoal?

- Claro, manda.

- Você... Você é virgem?

Eu estava tomando refrigerante e engasguei. Ela era bem direto.

- Humm, sou. - falei tentando decifrar sua expressão - E você?

- Sim. Mas tentei com uma menina ano passado, o que só me fez perceber que não era daquilo que eu gostava. Aí nem aconteceu. E nunca tive nada com meninos. Você é o meu primeiro.

Ele sorriu e voltei a corar com suas palavras. Decidi abrir um pouco meu coração para ele, mesmo que não completamente. Ele merecia, estava me contando coisas suas muito íntimas.

- Eu cheguei a me envolver com um menino na minha cidade, mas nunca passou de um beijo.

- E você gostava dele? - pude ver uma certa apreensão nos seus olhos que não entendi naquele momento.

- Não. - menti, ele não precisava saber da história toda - Era só tesão.

- Que bom. - ele sorriu.

- Bom por quê?

- Porque assim eu tenho a chance de ser o seu primeiro amor.

Amor. Pronto, agora eu estava me sentindo horrível. Eu estava o enganando. Ele acreditava que seria meu primeiro amor. Ele era um garoto tão especial, merecia alguém melhor do que eu, alguém menos complicado, com quem pudesse realmente viver uma história de amor. Ele queria algo sério, era queria amar. Ele queria me amar. Isso me assustou, mas ele não percebeu e continuou:

- Bernardo, eu estou morrendo de medo e não devo estar no meu juízo perfeito, mas eu estou sentindo algo diferente por você. Algo que eu nunca senti antes, por ninguém. É muito mais do que tesão ou carinho. Desde o primeiro momento que te vi entrando naquela sala de aula essa coisa gigante começou a crescer no meu coração. - ele falava emocionado.

- Felipe... - tentei pará-lo.

- Eu estou assustado com o tamanho desse sentimento. Demorei um pouco para entender o que estava sentindo, porque foi muito repentino, foi à primeira vista. Sempre ouvia histórias de amor e sentia um tom de exagero nelas, mas agora sei que não era exagero. É realmente assim, avassalador, gigante, seu peito parece que vai explodir quando vê o outro, e apenas poucos minutos afastados já são suficientes para morrer de saudade.

- Felipe... - tentei novamente.

- Eu te amo! – ele falou.

Pronto.

As três palavrinhas mágicas que todo mundo quer ouvir. Todos menos eu. Eu não queria magoá-lo, eu não sentia aquilo que ele sentia por mim. No máximo eu sentia paixão e carinho por ele. Não era amor. Meu coração estava fechado para esse tipo de sentimento.

- Eu...

- Me diz Bernardo. - ele falou muito emocionado e com um sorriso enorme no rosto.

- Eu tenho que ir embora.

O sorriso dele aos poucos foi perdendo a forma até se mostrar torturantemente triste.

Lágrimas silenciosas começaram a rolar pelas suas bochechas.

Eu não aguentava ver aquilo, eu me senti um monstro por fazer aquele menino maravilhoso sofrer. Me levantei da mesa e fui em direção à saída do shopping.

Ele se levantou também e começou a caminhar lado a lado comigo, nós dois em silêncio, cada um com sua dor, a dele de rejeição e minha de medo.

Medo de quê? De amar ele?

Mas eu não merecia depois de tudo? Eu queria amar ele, me jogar de cabeça naquele sentimento e me perder no seu beijo. Eu queria muito aquilo. E eu podia. Eu tinha que me dar essa chance de ser feliz novamente.

Puxei ele rapidamente para uma área deserta do shopping, próxima aos banheiros. Ele me olhou com os olhos tristes e ainda cheio de lágrimas. Eu também já estava quase chorando.

- Olha, eu já passei por muito coisa, o que não vem ao caso, mas me machuquei demais e tenho medo que ocorra de novo. Amor é uma palavra que me assusta muito. Mas eu quero amar de novo, eu quero viver o lado bom desse sentimento, já que só conheço a parte ruim. Eu não sei se você me aceita, mas se me der uma chance eu vou te amar. Quero muito isso. Eu te quero muito.

Ele me escutou atentamente e mantinha seu rosto indecifrável. Aquilo me agoniou. Eu esperava por uma resposta negativa, não sei se no lugar dele eu aceitaria. Eu estava pedindo que ele me esperasse por um tempo indefinido. Continuei a olhar para ele, aflito, e a resposta veio na forma de um sorriso. Sorri também todo bobo.

- Me desculpa, combinamos em ir com calma, e vai ser assim. Lógico que eu posso te esperar.

Ele rapidamente olhou para os lados, não viu ninguém e me beijou carinhosamente, sem pressa, sem medo.

Se sentir amado era uma coisa boa demais. Senti uma felicidade incontrolável dentro de mim e uma vontade de gritar de alegria.

Naquele momento eu senti que estava pronto para viver um grande amor, desta vez com final feliz.

Maio chegou. Meu romance com Felipe ia de vento em popa.

Nos últimos dias tínhamos nos falado todo dia, fosse na escola ou por telefone.

Todos os dias íamos tomar sorvete juntos depois da aula, o que não era recomendando, pois o outono já deixava o tempo frio, mas quem disse que nos importávamos com esses detalhes? O que nós estávamos vivendo era lindo.

Nesta história toda, só uma coisa me afligia e muito: a mentira, ou melhor, a omissão de fatos do meu passado. Como tinha que desabafar com alguém, sobrou para o Zeca.

Ele entrou no meu quarto e se sentou na cama onde eu estava.

- E aí, tudo bom?

- Tudo ótimo comigo e meu namorado!

- Ai que mel esse dois, minha gente! - disse zombando de brincadeira. - E quando vou conhecer o famoso Felipe dos olhos azuis?

- Em breve, depois combinamos. Te chamei aqui por outra coisa.

- Então fala.

- Eu fico sem graça de ficar te incomodando com meus problemas...

- Ah, parou! Você sabe que não me incomoda, você é meu amigo e tenho prazer em te ajudar.

- Obrigado! Bom, é que estou me sentindo mal por estar mentindo pro Felipe.

- Mentindo como?

- Eu não contei nada para ele sobre o que aconteceu.

- Ah, Bernardo, isso não é mentira, é omissão. Foi uma coisa que te machucou muito, é difícil engolir o orgulho e remexer nesse assunto. Eu entendo assim, e aposto que esse Felipe também se sentiria assim. Quando vocês forem mais íntimos você conta, ele vai entender.

- Mas eu menti também. Ele me perguntou se eu já tinha me envolvido com alguém e eu disse que não. Não queria contar sobre o Vítor. Antes tinha me perguntado sobre meu pai, mas também menti sobre ele.

Ele ficou pensativo por um tempo.

- Ah, Bernardo...

- Fiz mal? - perguntei preocupado.

- Acho que sim. Não precisava disso, podia ter simplesmente dito que não queria falar no assunto.

- Eu sei, mas na hora desesperei. E agora, o que eu faço?

- Bom, conte para ele no momento que achar mais conveniente.

- É vou fazer isso mesmo... - falei pensativo.

- O bom é que é pouco provável que ele descubra tudo por outra pessoa, porque aí sim a coisa ficaria feia.

- É, pelo menos isso.

Ainda assim aquela situação me afligia, então continuei.

- O problema maior é que ele falou que me amava, isso é de um responsabilidade imensa.

- Eu sei como é.

- Então, e foi diferente da vez que você disse que me amava.

- Por quê?

- Porque por você eu sinto um amor fraternal, nunca vai passar disso, tenho certeza agora.

- Eu também. Num primeiro momento eu fiquei confuso porque era algo novo, mas hoje também tenho certeza que entre nós é amor fraternal. - ele disse me abraçando. - Você é o irmãozinho que nunca tive.

- E você é o irmão mais velho que todo mundo sonha em ter algum dia!

- Que bom que você pensa assim, porque minha promessa ainda está de pé: vou estar aqui do seu lado até você ficar velhinho.

- É bom você gostar disso mesmo porque pelo jeito sou do tipo de gente que vai precisar sempre de proteção.

- Ah, não faz drama. Você só é muito jovem, não aprendeu a lidar com tudo ainda, mas um dia vai aprender a se virar muito bem.

- Obrigado.

- Pelo quê?

- Por estar aqui.

- Bobo. - riu me fazendo cócegas.

Zeca havia me convencido: eu tinha que contar a verdade para o Felipe. Ainda não tínhamos formalizado nossa relação, mas eu sentia que isso era questão de tempo. Ele tinha o direito de me conhecer por inteiro antes de se comprometer comigo. Agora eu só precisava da ocasião perfeita e coragem, lógico.

No dia seguinte fui para a escola determinado a contar tudo para Felipe. Nos últimos dias ele tinha pegado o hábito de chegar antes de mim e ficar me esperando no portão, e naquele dia não foi diferente. Ele me aguardava escorado na mureta e abriu um largo sorriso quando me viu. Quando olhei aquele sorriso arrebatador e seus brilhantes olhos azuis toda a coragem foi embora. Me derreti todo por aquele lindo garoto e por aqueles olhos e também com um grande sorriso fui o cumprimentar.

- Bom dia, Lipe.

- Bom dia, Bê.

Não nos cumprimentávamos de forma mais carinhosa em público para que não houvesse suspeitas. Não era nenhum tipo de combinado entre nós; aquele cuidado era natural. Ainda não tínhamos conversado sobre quem deveria saber sobre aquele namoro.

- Vamos entrar? Está frio aqui.

- Vamos.

A escola ainda estava vazia, era muito cedo. Aproveitando-se disso, ele me puxou de surpresa para dentro de um dos banheiros e me lascou um beijo de tirar o fôlego. Fui ao céu e voltei feliz. Aqueles beijos repentinos já tinham virado rotina entre nós, mas nunca perdia o gostinho da surpresa porque ele se esforçava para me dar um beijo cada vez melhor. Foi um meio que nós achamos para extravasar a falta que um fazia para o outro durante o dia inteiro.

- Agora sim matei as saudades. - ele falou.

- Nossa, se é assim que você mata as saudades, vou te privar da minha presença mais vezes. - brinquei.

- Nem sonha! Não consigo ficar longe de você muito tempo, chega a doer, amorzinho.

- Oh, neném fica dodói?

- Aham. - respondeu manhoso e lhe dei outro beijo.

- Agora vamos, senão a gente se atrasa.

- Ok, ok...

Fomos para a sala e nos sentamos juntos, como adotamos o costume de fazer. Eu não queria ficar longe da Renata e das outras pessoas do nosso grupinho, do mesmo jeito que o Lipe não queria ficar longe dos seus colegas de banda, então combinamos de sentar juntos mais ou menos no meio da sala, entre as duas turmas. Essa se mostrou uma medida eficiente, pois amortecia um pouco da estranheza gerada pela nossa “grande amizade” repentina.

A professora de sociologia foi entrando e passando um trabalho em dupla sobre os tempos de ditadura no Brasil. A Renata se virou para me convidar, mas Felipe foi mais rápido.

Percebi ela um pouco frustrada, mas não podia fazer nada, afinal era ele que eu realmente queria perto de mim. Eu gostava muito da Renata, mas nunca trocaria a presença do Felipe pela dela.

No recreio ela foi reclamar comigo por causa disso:

- Poxa, agora você só fica grudado com aquele garoto de olho azul, nem liga pra mim.

- Ih, que mentira! Nós continuamos amigos, e muito! Só que agora eu descobri no Felipe alguém com quem eu me identifico mais.

- Mas eu continuo sendo sua melhor amiga, certo?

- Claro! - até porque o Lipe era bem mais que isso meu.

- Que bom, porque eu já estava começando a pegar antipatia desse garoto.

- Ah, ciúme! - ri.

- Ciúme nada! - falou constrangida. - Aliás, ciúme sim, mas de amiga, você não faz meu tipo.

- Isso; fere meus sentimentos! - falei me fingindo de triste.

- Oh, que dó gente, vem cá. - disse me abraçando.

Eu já devia muito à Renata e ao Felipe. Naqueles pouco mais de três meses de aula eles conseguiram fazer eu me tornar uma pessoa mais leve, solta, extrovertida. Eu estava mais feliz, não só pelo meu namoro, mas porque finalmente tudo parecia encaminhado na minha vida. A cada dia eu lembrava cada vez menos de tudo que havia acontecido, agora parecia apenas um passado distante.

As últimas aulas eram de educação física, de longe minha matéria menos favorita. Eu nunca me dei bem com esportes, porque além de ser preguiçoso para atividade física, era bem desajeitado. Enfim, sem traumas, eu entendia que cada um era bom numa área e essa não era a minha.

Felipe, diferente de mim, gostava bastante. Ele não era um craque do futebol, mas enganava bem. Mas sua especialidade era o vôlei, assim como a da Renata. Vê-los jogando em times adversários era algo entre lindo e assustador.

Para meu azar, naquele dia jogaríamos futebol. Colocamos nossos uniformes e fomos para a quadra. Felipe ficou no time adversário do meu, o que era ótimo porque sempre nos “esbarrávamos sem querer”.

Meus colegas já haviam percebido que aquele não era meu forte, mas naquele dia aconteceu algo diferente. O capitão do meu time era o Pedro, aquele fortão mal-encarado e monossilábico que quase me derrubou no primeiro dia.

Nosso time perdia por um gol de diferença. Por uma piada do destino a bola caiu no meu pé enquanto eu estava sozinho com o goleiro de frente para o gol. Lógico que eu errei o chute e a bola foi torta para fora de campo. Todos riram e eu fiquei constrangido, mas sem ligar muito para aquilo. Pedro, por outro, lado ligou muito para aquilo e veio tirar satisfações comigo. Atravessou a quadra bufando em minha direção:

- Você é lesado ou o quê?!

- Desculpa, você sabe que não sou muito bom.

- Mas isso que você acabou de fazer nem um perna de pau é capaz! - ele gritava e eu me assustei. O resto da turma veio acompanhar a confusão mais de perto.

- Desculpa de novo, mas relaxa, é só um jogo.

- Só um jogo porra nenhuma! Futebol é coisa séria, coisa de homem, sua bicha!

Lembrei na hora da última vez que alguém me chamou assim, ainda em Morro Velho. Senti meu sangue subir e gritei usando o mesmo tom que ele:

- Vai tomar no seu cu, idiota!

Ele se zangou com aquilo e só vi seu punho vir em direção ao meu rosto muito rápido. Senti uma dor enorme no nariz e o sangue escorrer. Caí sentado no chão, e antes que mais alguém tivesse alguma reação, vi Felipe voar para cima do Pedro. Naquela hora até esqueci a dor e o sangue e assisti os dois rolarem pela quadra trocando socos e pontapés. Os outros garotos logo foram separá-los, e com alguma dificuldade conseguiram, mas eles continuavam se xingando exaltados.

Nunca tinha visto o Felipe daquele jeito. Fui levado para a enfermaria e Felipe fez questão de me acompanhar. A enfermeira disse que eu não tinha quebrado o nariz, mas me deu um saco com gelo para deixar na região até desinchar e parar de sangrar. Ela saiu deixando eu e Lipe a sós.

- Obrigado por me defender.

- Era o mínimo que eu podia fazer pelo meu namorado. - ele falou emburrado.

- Está bravo?

- Estou. - ele viu minha cara de preocupação e corrigiu. - Mas não contigo e sim com aquele idiota do Pedro. Era só um jogo!

- Ah, deixa pra lá, esquece isso.

- Não esqueço, não! Qualquer um que mexer com você vai ter que se entender comigo!

Naquela hora me derreti todo com ele me defendendo. Me senti tão bem de ser protegido por alguém. E olha que ele era mais novo e tinha menos corpo ainda que eu.

Me senti tão bem que ali mesmo peguei de leve no seus rosto e lhe dei um beijo carinhoso. Soltei seu rosto e vi que ele estava sorrindo com os olhos fechados.

- Obrigado por me defender, meu herói.

- Nossa, se essa é minha recompensa vou ter que arranjar mais brigas por aí.

- Se fizer isso vai ficar solteiro, porque badboys não fazem meu tipo.

- E quem faz seu tipo?

- Guitarristas, novinhos e bem gatos, bem branquinhos, de franja, cheirosos e de olhos azuis da cor do céu! - falei rindo.

Ele gargalhou e me deu outro beijo carinhoso. Ficou me fazendo companhia até o último sinal tocar para irmos embora. Na saída íamos nos despedir, mas tive uma ideia melhor:

- Você podia ir almoçar lá em casa hoje!

- Ah, Bê, não sei. Fico constrangido, sua família deve estar lá...

- Minha tia e minha mãe devem estar lá sim, mas você vai adorá-las.

- Não sei...

- Ah, por favor, Lipe! - fiz cara de manhoso.

- O que você não me pede com essa carinha e eu não faço? Deixa só eu avisar lá em casa.

- Ok.

Ele avisou e pegamos o caminho para a minha casa. Íamos conversando, mas percebi que ele estava um pouco preso.

- O que foi, Lipe?

- Hã? Nada.

- Você está estranho, calado.

- É nervosismo.

- Por quê?

- Porque vou conhecer minha sogrinha.

Ri bobo com sua confissão.

- Ah, que graça! Mas não fica assim não, ela já te adora.

- Como assim?

- Uai, ela sabe tudo sobre nós. - falei inocentemente.

- Tudo?

- Claro, ela me dá a liberdade de contar esse tipo de coisa para ela. Lógico que não fico detalhando tudo e fazendo ela de diário, mas relato a ela coisas importantes da minha vida, e, se ainda não percebeu, você é uma parte bem importante.

Foi a vez dele rir que nem um bobo apaixonado.

- Sou mesmo?

- Tem dúvidas disso?

- Ah, é que você ainda não disse “eu te amo”.

Me assustei um pouco com aquele assunto vindo novamente à tona, mas respirei fundo e falei.

- Bom, é porque quando eu falar quero que seja de verdade, e não só para te agradar.

- Eu sei, não quero te apressar. - ele corrigiu rápido.

- Você diz que se apaixonou por mim à primeira vista, mas comigo não foi assim. Eu estou construindo meu amor por você a cada dia. Cada vez que você me puxa para o banheiro me beijando, ri das minhas bobagens ou se mete em brigas para me defender, eu me apaixono mais. Você está no caminho certo, garoto. - falei piscando.

O sorriso dele se alargou ainda mais com aquela minha declaração.

- Bom saber disso porque posso me dedicar mais a essas pequenas coisas. - falou rindo.

- Ainda bem, porque se nós cairmos na rotina eu te deixo, hein? - falei brincando.

- Nossa, até deu medo agora.

- Não precisa ter, vai ser muito difícil se livrar de mim.

- Tomara!

Continuamos nosso caminho rindo das bobagens que falávamos.

Logo chegamos ao meu prédio, entramos no elevador e começamos a subir. Percebi que seu nervosismo voltou, então segurei na sua mão. Ele sorriu e pareceu se acalmar. Entrei primeiro no apartamento e minha mãe acabava de cozinhar. Apesar da minha tia ter empregada, minha mãe não abria mão desse seu prazer de cozinhar para nós.

- Cheguei mãe, e trouxe visita.

- Olá, meu filho. Quem é?

Ela veio na porta nos recepcionar. Tive que puxar Felipe que olhava tudo ainda tímido.

- Esse é o Felipe, mãe.

- Então você é o famoso Felipe? Muito prazer, Luiza.

- Prazer, senhora! - ele respondeu lhe cumprimentando com um beijo no rosto.

- O almoço já está quase pronto, vão lavar as mãos e se sentar. Sua tia já chegou.

Ela não notou o soco que eu levei porque realmente não tinha ficado marca. Inchou na hora, mas foi só isso. Logo tia Marta, que estava em algum lugar dentro do apartamento, veio nos receber.

- Olá Bernardo, e quem é esse gatinho ao seu lado?

Ele ficou da cor de um pimentão de tanta vergonha.

- Esse é o Felipe, tia. Lipe, essa é minha tia Marta.

- Prazer, senhora! - ele falou lhe cumprimentando.

- O prazer é meu. Então você é o famoso Felipe? Já estava na hora mesmo do Bernardo nos apresentar seu namorado lindo dos olhos azuis.

Foi a minha vez de ficar vermelho. Felipe pareceu até ter ficado sem ar.

- Para tia, ele é tímido.

- Ah, já, já deixa de ser. Não tem como continuar tímido sentado ao meu lado.

E assim foi.

Nos sentamos os quatro para almoçar e logo ele já estava mais solto conversando com elas. Pareciam ter se dado muito bem. Quem visse a cena de fora, nunca diria que éramos namorados. Apesar de eu ter essa liberdade dentro de casa para fazer carinhos em Lipe, ainda não me sentia muito confortável fazendo isso na frente da minha tia e da minha mãe. As duas voltaram ao trabalho e nos deixaram a sós com a dona Rita, nossa empregada.

Eu nem tinha me tocado da possibilidade de ficar sozinho com Felipe a tarde toda, e agora eu estava assustado com aquilo.

E se ele quisesse fazer alguma coisa? Eu estava pronto? Querer eu queria, lógico. Além de um rosto lindo, Lipe aparentava esconder um belo corpo por baixo do uniforme. Mas eu não tinha certeza se aquele era o momento certo. Fomos para o quarto com a desculpa de pensarmos o trabalho que a professora pediu, e por hábito tranquei a porta quando ele passou. Percebi que aquilo tinha deixado nós dois constrangidos, mas como o mal já estava feito, decidi deixar como estava para não piorar. Sentamos na cama.

- E aí, o que vamos fazer para a nossa apresentação? - perguntei para quebrar o gelo.

- Não sei, mas já tive uma ideia, só não sei se você vai gostar.

- O que é?

- Vamos apresentar uma música! Eu entro com o violão e você com a voz.

Lá estava ela, a música novamente invadia minha vida.

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