No restante do mês de janeiro não tive mais contato com Felipe. Foi melhor assim; quando não cutucamos a ferida ela cicatriza mais rápido.
Zeca, mamãe e tia Marta me arrumavam vários programas para me distrair, e eu acabava indo para recompensar seus esforços, porque eu realmente não estava muito no clima para este tipo de coisa.
Uma pessoa que virou presença constante na minha casa foi Renata. Ela era uma pessoa para cima, divertida, e sempre conseguia me distrair fazendo muito pouco.
Longas duas semanas depois da minha última conversa com Felipe, as aulas começaram.
Eu não estava exatamente nervoso, mas apreensivo em relação a como seria nosso relacionamento agora, nos vendo todo dia.
Não haveria um rompimento brusco porque eu, e acredito que ele também, não aguentaria.
Cheguei cedo como sempre e ele não estava encostado no muro da entrada me esperando. Eu já devia esperar aquilo, mas lá no fundo eu ainda tinha um pouquinho de esperança de que ele estaria lá.
Olhei na recepção qual seria minha nova sala, encontrei com Renata e fomos juntos para lá. Ao entrarmos, a primeira coisa que percebi foi a presença de Felipe.
Ele estava sentado no lugar de sempre, onde eu e ele costumávamos sentar quando estávamos juntos.
Ele me deu um sorriso sem graça, mas sorri mais verdadeiramente para encorajá-lo.
Percebi então seu olhar se perder em algum ponto atrás de mim. Seu rosto se iluminou e eu senti uma sensação esquisita no peito. Olhei para trás e encontrei a garota mais bonita que já vi.
Sabe aquelas pessoas que concentram toda a atenção do lugar aonde chegam? Aquelas pessoas que tem algo especial, muito acima da simples beleza ou do carisma, que hipnotiza a todos?
Essa era Beatriz.
Nada do que eu escreva aqui vai estar perto de representar com fidelidade sua beleza.
Ela era branca, mas nada muito mórbido, aquele tom de pele saudável, sabem? Seus cabelos castanhos, longos e ondulados caíam livres por suas costas. Seu corpo era perfeito, tudo no lugar certo, nada em excesso ou em falta. Seu rosto parecia uma reunião das melhores características de cada uma das raças que compõem o Brasil: olhos claros como um europeu, olhos levemente puxados como os de um índio, nariz pequeno e arrebitado como os de um japonês, e lábios generosos como os de uma negra, mas todos na mais perfeita harmonia em seu rosto calmo. Como complemento, sua presença transmitia uma força, uma energia rara. Eu não tinha dúvidas que estava diante de um ser divino. Bom, nem eu, nem ninguém. Todos na sala estavam admirando sua beleza.
Ela pareceu não ligar muito para a atenção que despertou e foi se sentar. Talvez já estivesse acostumada àquele tipo de reação. Não tínhamos lugar marcado, então ela se acomodou na cadeira à frente de Felipe. Ele ainda parecia estar entorpecido pela sua presença, pois só olhava para ela. Nem notou quando eu me sentei ao seu lado
Tive que chamar sua atenção para isso:
- Felipe! - falei mais alto na terceira vez.
- Hã? Oi, Bernardo, beleza? - disse despertando do seu transe.
- Ótimo e você? - falei meio seco, nem sei bem o motivo.
- Bem, bem...
Ele desviou sua atenção de mim e ficou encarando o caderno em cima da mesa, mas eu percebia a toda hora ele olhando para os cabelos de Beatriz que caíam um pouco sobre a sua mesa. Fiz um aceno negativo com a cabeça em sinal de desaprovação. Renata riu na minha frente.
- O que foi? - perguntei um pouco mais rude.
- Nada. - e continuou abafando o riso.
Ficamos nós quatro em silêncio contrastando com restante da turma que falava sem parar. Sem nem saber exatamente o porquê, eu já não tinha ido com a cara dela. Renata, sempre muito expansiva, tomou a atitude:
- Oi, nova aqui? - perguntou para ela.
- Sim. - sua voz era calma, porém levemente rouca, linda. - Beatriz. - completou.
- Prazer, sou a Renata. Esses são Bernardo e Felipe. - ela falou nos apresentando.
- Prazer. - falei seco sem olhar para ela que me encarava.
- Pr... Pra... Prazer! - falou Felipe tão rápido que gaguejou.
Ri da sua falta de jeito e ele me lançou um olhar que parecia querer me fuzilar.
Não gostei nem um pouco daquilo. Fazia cinco minutos que eu a conhecia e já tinha instalado um clima ruim entre eu e Felipe.
Pedro chegou logo depois, e pela primeira vez em um ano que nos conhecíamos, me cumprimentou.
- E aí?
- Estou bem, e você? - respondi ainda surpreso.
- Estou beleza; depois a gente se fala. - e foi para o fundo me dando um tapinha no ombro.
Renata me olhou como se perguntasse a razão daquilo e lhe respondi com o olhar que também não sabia. Mas eu sabia sim. Ela estava sendo gentil comigo porque temia que eu contasse para alguém sobre suas aventuras na boate gay.
Incrível como as pessoas mudavam da água para o vinho quando queriam algo, mas relevei.
Talvez eu faria o mesmo que ele se tivessem me dado a chance de continuar dentro do armário. Para a minha raiva, Felipe e Beatriz já tinham engatado um papinho de apresentações. Renata olhava para mim e ria.
- O que foi?!
- Nada, uai!
Logo o professor de matemática chegou e fez todo mundo se calar. A aula foi seguindo normalmente até o recreio. Quando ia convidar o Felipe para ficar comigo, ele já foi logo se oferecendo para apresentar a cantina à Beatriz, que aceitou. Bufei de raiva e Renata riu descaradamente.
- O que foi afinal?
- Você com ciúme! É muito engraçado.
- Eu? Ciúme? De quem, minha filha?
- Uai, de quem, do Felipe, oras.
- Co-como assim? - gaguejei.
- Ah, tá na cara, Bernardo. Mesmo vocês tendo terminado, é normal que sinta ciúme dele com Beatriz.
- Hum... - falei sem concordar ou discordar.
- Deixa de bobeira, ela parece ser uma ótima pessoa, além de linda.
- É, ela é sim. - falei de cara fechada. - Vamos para o recreio.
Ela me fez companhia durante todo o recreio. De longe eu observava Felipe dando total atenção à Beatriz e morria de raiva. Seria mesmo ciúme? Mas nós nem mesmo estávamos mais juntos.
Depois do recreio teríamos aula de artes, e nos avisaram que seria com o Raul.
Pausa para explicação
Raul era um homem de meia idade, um pouco afeminado, que ocupava o cargo de diretor do coral da escola, onde só participavam os meninos menores. Um dia ele presenciou eu e Felipe brincando de quem conseguia fazer mais coisas com a voz (vibratos, falsetes, alcançar notas altas, etc) e passou a me encher para entrar para o coral como solista. Eu nunca aceitei, primeiro por vergonha, segundo por não gostar do estilo de música cantado por corais. Enfim, lá fomos a turma toda para a sala de música do colégio, onde tinha instrumentos e tals. Ao entrarmos, ele me cumprimentou primeiro.
- Ora, ora se não é meu aspirante a cantor favorito.
- Menos, Raul, menos. - falei constrangido por ele ter dito aquilo alto o suficiente para todos ouvirem.
- Que nada. E então, resolveu participar do coral esse ano?
- Sem chances.
- Que pena, mas um dia eu te convenço.
- Boa sorte.
Seus olhos então se desviaram para Beatriz, que vinha acompanhada de Felipe logo atrás.
- Mas o que temos aqui, meus caros, se não é um legítimo anjo.
- Obrigada. - ela agradeceu sem graça.
- Você é bonita demais, minha nossa! Qual é seu nome?
- Beatriz.
- Beatriz, Beatriz... Sabia que há uma linda canção com seu nome? Pena que eu não sei a letra de cor, senão cantaria para você novamente.
- O Bernardo conhece! - falou Felipe.
A minha vontade foi de estrangulá-lo ali mesmo. Ele sabia muito bem que eu não gostava de ficar dando motivos para o Raul me encher.
Não sei se ele disse aquilo para me irritar ou para agradar Beatriz, mas tive quase certeza que era a segunda opção.
- Mesmo Bernardo? - perguntou Raul interessado.
Nesta hora já estávamos todos sentados e a turma toda ouvia a conversa.
- Sim. - falei meio receoso porque já sabia o que viria em seguida.
- Que ótimo, então me acompanhe no piano.
Merda. E agora?
- Melhor não Raul, deixa para outro dia.
- Pare com essa timidez rapaz, vamos lá. - falou já se sentando ao piano.
Todos me olhavam atentamente esperando minha reação. Não tive outra escolha senão ceder.
- Ok. - falei me colocando de frente ao piano.
- Ótimo! - exclamou Raul, excitado.
- Mas você sabe que é uma música bem difícil, que eu não tenho treino e não vai sair legal.
- Meu querido, confio na sua voz. Aparentemente, mais do que você mesmo. - falou já começando a tocar os primeiros acordes.
A turma toda riu e se calou para ouvir. Engoli o nervosismo e comecei:
“Olha
Será que ela é moça
Será que ela é triste
Será que é o contrário
Será que é pintura
O rosto da atriz
Se ela dança no sétimo céu
Se ela acredita que é outro país
E se ela só decora o seu papel
E se eu pudesse entrar na sua vida
Olha
Será que ela é de louça
Será que é de éter
Será que é loucura
Será que é cenário
A casa da atriz
Se ela mora num arranha-céu
E se as paredes são feitas de giz
E se ela chora num quarto de hotel
E se eu pudesse entrar na sua vida
Sim, me leva pra sempre, Beatriz
Me ensina a não andar com os pés no chão
Para sempre é sempre por um triz
Aí, diz quantos desastres tem na minha mão
Diz se é perigoso a gente ser feliz
Olha
Será que é uma estrela
Será que é mentira
Será que é comédia
Será que é divina
A vida da atriz
Se ela um dia despencar do céu
E se os pagantes exigirem bis
E se o arcanjo passar o chapéu
E se eu pudesse entrar na sua vida”
(Beatriz – Chico Buarque/Edu Lobo)
Fiz direitinho, e para minha própria surpresa não errei as notas mais complicadas. Todos me aplaudiram e não posso deixar de confessar que isso fazia muito bem para meu ego. Anos mais tarde alguém me diria que as palmas são o combustível do artista, e eu não podia concordar mais.
- Ai, você no meu coral seria um sonho... - suspirou Raul.
- Vai continuar no sonho.
Tivemos uma aula básica de música e depois voltamos para a sala de aula. Beatriz me olhou durante todo o caminho, mas não me importei, eu queria conversar era com Felipe.
- Felipe, vem cá um minutinho. - chamei e ele veio de cara fechada por eu interromper seu papo com Beatriz.
- Sim?
- O que foi aquilo? - perguntei agressivo.
- Aquilo o quê?
- Você me jogando na fogueira me fazendo cantar. Está cansado de saber que não gosto disso.
- Ah, Bernardo, você precisa perder esse seu medo de palco.
- Ah é? - meu sangue subiu. - Então tá, mas da próxima vez que quiser se exibir para suas amiguinhas, vá você para o piano.
Não lhe dei nem tempo de responder e saí pisando duro. Era demais para mim ele querer me usar assim. Ultrapassava a barreira do ridículo. Notei alguém do meu lado tentando acompanhar meu ritmo. Era Pedro:
- Tá com pressa, hein? - riu.
- Hã? Ah, não, só raiva.
- Ah tá...
- Olha, Pedro, não precisa ficar puxando papo comigo... fica tranquilo que seu segredo está guardado.
- Ah, eu sei, confio em você. - ele sorriu quando disse isso o que me causou estranhamento. - Só queria te fazer companhia.
- Ah... Obrigado, eu acho...
- Já te falaram que você canta muito bem?
- Já.
Nos olhamos e começamos a rir feito bobos. A partir daquele momento surgiu entre nós uma relação esquisita. Ele supria minha carência do Felipe e eu a dele no geral, já que ele não costumava ser muito carinhoso com ninguém. Comecei a reparar mais nele também. Não era um rapaz feio, longe disso, só que tinha traços fortes, másculos, diferente do Felipe com seu rostinho de menino. O corpo dele era uma loucura, todo definidinho, uma delícia.
O restante das aulas transcorreu normalmente. Eu e Felipe não trocamos uma palavra sequer, mesmo estando um ao lado do outro. Na saída nos despedimos rapidamente, quase como se fosse por pura obrigação. Ainda passei no banheiro antes de ir pra casa. Quando saí encontrei com Beatriz, que parecia esperar alguém.
- Posso te acompanhar até a saída? - ela perguntou educadamente.
- Claro. - falei meio receoso, o que ela queria afinal?
- Gostei muito da música.
- Ah, isso, obrigado. Faço o melhor que posso.
- Você devia investir nisso, é realmente muito bom.
- Quem sabe um dia.
Ela se calou por um momento antes de continuar.
- Me desculpe se causei algum problema entre você e seu amigo.
- Hã? Como assim?
- Bom, vi vocês dois discutindo depois da aula de artes.
- Ahh, sem problemas, a gente às vezes se estranha, mas é coisa momentânea e é assunto só entre mim e ele.
- Desculpe! Espero que vocês fiquem bem.
- Vamos ficar. - eu espero.
Caminhamos em silêncio até a saída. Notei um carro preto muito bonito na porta, que logo percebi que esperava por ela. Ela se despediu de mim:
- Até amanhã.
- Até. - respondi.
- Não sei se é uma coisa legal de falar, mas é bom ter um rival.
Seus olhos brilharam estranhamente e eu me assustei. Será que ela tinha percebido alguma coisa a mais entre mim e Felipe?
- C-como assim? - gaguejei.
- É que eu sempre costumo ser o centro das atenções, mas hoje, enquanto você cantava, ninguém notou minha presença. Por alguns minutos fiquei invisível.
- Ah... - fiquei sem saber o que dizer.
- Boa sorte. - e entrou no carro sorrindo.
Ainda fiquei ali parado algum tempo refletindo sobre o que tinha acabado de acontecer. Ela me considerava um rival, pois eu atraía as atenções quando cantava? Que loucura! Aquela nossa breve conversa me encheu de dúvidas a seu respeito.
Eu ainda não sabia, mas aquela seria a base de toda a nossa convivência através dos anos. Como a atriz da música que tinha cantado mais cedo, Beatriz seria sempre um mistério para mim.
A cada dia Felipe e Beatriz estavam mais próximos, e eu mais puto com isso.
Renata estava certa, era ciúme, mas repetir isso como um mantra não fazia minha raiva passar. No fundo eu sabia que estava errado porque eles não tinham nada, e mesmo se tivessem, eu e Lipe agora éramos só amigos, mas quem disse que somos racionais nestas horas?
Eles passavam a aula e o recreio todo juntos conversando.
Felipe se limitava a me cumprimentar na hora da entrada e na hora da saída. Era como se ele tivesse me esquecido. É assim que ele quer? Bom, nesse jogo jogam dois.
Resolvi pagar na mesma moeda. Quase que do dia para a noite virei amigo de infância do Pedro.
Eu e ele fazíamos todos os trabalhos de escola juntos em sala, passávamos o recreio conversando e eu até convenci ele a se sentar perto de mim. Felipe passou a me olhar com certa curiosidade, como se achasse graça daquilo. Isso porque ele não sabia que Pedro gostava da mesma fruta que ele, pois senão ele já tinha subido pelas paredes de ciúme.
No começo eu fazia simplesmente para dar o troco em Felipe, mas confesso que com o passar dos dias comecei a gostar daquilo. Pedro se revelou uma pessoa totalmente diferente daquela que ele tentava se mostrar.
Ele sempre me dava atenção total, ria de todas as besteiras que eu falava e sempre adotava uma postura protetora quando os outros olhavam feio para nossa repentina amizade.
Mais tarde eu consegui entender que ele, por eu já saber seu segredo, não sentia comigo a necessidade de ficar se passando por uma pessoa que ele não era.
Pela primeira vez na vida ele estava sendo ele mesmo.
Renata entendeu a minha tática de fazer ciúme em Felipe e deu a maior força. Aliás, acho que ela era a única que realmente se divertia com aquela confusão toda, e devia mesmo ser cômico para quem via de fora.
Beatriz, por outro lado, já estava ligando as coisas. Um dia, assistindo a uma clara demonstração de ciúme por minha parte quando Felipe escolheu fazer um trabalho com ela, me olhou curiosa e soltou um sorriso de satisfação, como se tivesse acabado de descobrir um grande mistério. Agora, certeza mesmo ela teve em outra oportunidade.
Estávamos no recreio. Eu e Renata nos sentamos na arquibancada da quadra enquanto alguns garotos, Pedro entre eles, jogavam futebol. Felipe devia ter ido buscar algo na cantina porque Beatriz sentou-se sozinha ao nosso lado.
- Posso? - perguntou querendo se juntar a nós.
- Claro. - respondi. Mesmo com tudo, não conseguia ser rude com ela.
- O que estão fazendo?
- Nada de mais.
Uma hora, talvez com muito calor, Pedro tirou a camisa. Seu corpo era todo definido e lisinho. Ele estava todo suado, fazendo seu corpo refletir as luzes do ginásio. E para coroar aquela visão, ele balançou os cabelos. A cena toda se passou em câmera lenta na minha cabeça. Acho que o tesão foi tanto, que engasguei com uma bala que estava chupando e comecei a tossir.
- O que aconteceu, Bernardo? - perguntou Renata.
- Engasgou. Vai buscar água pra ele! - falou Beatriz.
- Tá. - e ela foi.
Beatriz começou a rir e aos poucos eu fui recuperando o fôlego. Olhei para ela como se perguntasse o porquê das risadas, e demorou um tempo até ela conseguir falar:
- Ai, Bernardo, agora tudo faz sentido.
- Tudo o quê?
- Ora, se eu tinha alguma dúvida, foi-se embora quando vi você engasgando por causa do Pedro.
- Hã? - merda! Ela percebeu, e agora?
- Não se finja de bobo, não combina nada com você.
- Beatriz, eu...
- Não precisa se preocupar, não sou do tipo fofoqueira, não vou contar para ninguém. Também não tenho qualquer tipo de preconceito. Então é isso, né? - falou olhando para o nada, como se elaborasse uma nova teoria da física quântica. - Você se apaixonou pelo Felipe, mas ele só te vê como amigo. Agora que ele se aproximou de mim e te deixou de lado, você se sente rejeitado.
- Não é bem isso... - tentei pará-la, em vão.
- Não se preocupe, Bernardo. - falou segurando minhas mãos. - O Felipe não te quer, mas você vai encontrar um carinha legal que te ame. Quem sabe até mesmo o Pedro? Boa sorte.
Ela se levantou e foi embora me deixando completamente sem ação ou palavras. Renata já vinha com um copo de água, me deu e eu bebi tudo num só gole. Que garota doida!
A partir daquele dia, toda cena implícita minha de ciúme por Felipe vinha seguida por uma risadinha irônica de Beatriz. Independente disso, não conseguia nutrir por ela algum sentimento ruim. Talvez inveja, mas no máximo.
Fazia parte da magia dela, envolver as pessoas de tal forma que elas não pudessem lhe desejar mal. E também, se formos analisar a situação, ela nunca me fez mal algum, pelo contrário, sempre me tratou bem.
Fevereiro foi passando e com ele o carnaval, quando fui novamente para o Rio. Março chegou me trazendo uma grande surpresa.
A professora de literatura nos passou um pequeno trabalho em dupla sobre um livro que lemos. Renata não foi rápida o bastante para me chamar e Pedro levou a melhor.
Àquela altura do campeonato eu já nem me lembrava de fazer ciúme em Felipe e realmente apreciava a companhia de Pedro.
Eu me divertia muito com ele enquanto fazíamos o trabalho juntos na sala.
- Bom, já que vocês conversaram a aula toda e não conseguiram terminar sua atividade, levem para casa e me entreguem na próxima aula.- falou a professora.
- Na minha casa ou na sua, baby? - me perguntou o Pedro com a voz de canastrão me fazendo rir.
- Pode ser na minha.
- Hoje?
- Se você puder.
- Posso. Não vou incomodar?
- De jeito nenhum, você nunca incomoda.
Ele riu bobo e, juro, ainda não tinha visto segundas intenções até ali.
O sinal bateu e ele saiu de sala. Beatriz, que fazia dupla com Felipe na minha frente, se virou para trás e falou:
- Ah, garanhão, hoje tem, hein?
- Hã? - falei sem entender.
- O quê? - Felipe se virou assustado.
- Nada! - completou Beatriz rápido quando viu a cagada que fez.
- Que nada o quê; com que sentido você falou isso, Bia? - a expressão de Felipe não era das melhores.
- Não quis dizer nada, apenas brinquei com Bernardo. - respondeu impassível.
Ele se calou. O inocente não tinha coragem para rebater nada do que ela dissesse. O clima ficou pesado e saí para beber água.
Felipe veio logo atrás, me puxou para o banheiro depressa.
- Que história é essa, Bernardo! - seu tom era agressivo.
- Você é louco? Acha que é quem para ficar me puxando assim por aí? - falei com raiva.
- Você vai dar para o Pedro?
- O quê?!
- Vo-cê vai dar para ele? - sibilou entre os dentes.
Uma raiva me subiu à cabeça e respondi à altura, para ferir mesmo:
- E se for? É da sua conta?
- Ah, então é assim? A gente termina e você já vai dando para o primeiro que aparece?
- Uai, se eu fosse esperar você virar homem eu ia criar teia de aranha!
Eu não devia ter dito aquilo. Aquilo foi equivalente a jogar limão na ferida aberta. Ele se sentiu assim porque sua reação foi vir com sua mão aberta em minha direção. Fechei os olhos para sentir menos o impacto, mas o tapa nunca veio. Aos poucos fui abrindo os olhos e vi Pedro segurando a mão do Lipe.
- Saia daqui!
- Não se mete! - Felipe enfrentou.
- Me meto sim; se você encostar em um fio do cabelo dele eu te mato.
E empurrou Felipe para fora do banheiro. Pedro veio em seguida e me abraçou.
- Ele não vai mexer com você.
- Obrigado.
Cedi ao seu abraço assustado com aquilo. Não sei se o que mais me machucou foi a intenção do tapa, o seu tom rude comigo ou a impressão de que nunca nos reconciliaríamos depois daquela briga.
Eu não devia ter dito o que disse, eu não tinha esse direito de machucá-lo, mas muito menos ele tinha o direito de vir me cobrar explicações.
A aula seguinte era artes, e novamente o Raul nos guiou para a sala de música. Felipe e eu nem nos olhávamos, mas eu sentia a necessidade de dizer tudo aquilo que eu estava sentindo, então tive uma ideia:
- Raul, posso cantar? - perguntei baixinho.
- Claro! O que você quer? - falou animado.
- Olhos nos olhos, do Chico.
- Ok; vou para o piano, se posiciona.
Enquanto todos se sentavam eu me posicionei perto do piano. De olhos fechados, cantei:
“Quando você me deixou, meu bem
Me disse pra ser feliz e passar bem
Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci
Mas depois, como era de costume, obedeci
Quando você me quiser rever
Já vai me encontrar refeita, pode crer
Olhos nos olhos, quero ver o que você faz
Ao sentir que sem você eu passo bem demais
E que venho até remoçando
Me pego cantando
Sem mas nem porque
E tantas águas rolaram
Quantos homens me amaram
Bem mais e melhor que você
Quando talvez precisar de mim
Cê sabe que a casa é sempre sua, venha sim
Olhos nos olhos, quero ver o que você diz
Quero ver como suporta me ver tão feliz”
(Olhos nos olhos – Chico Buarque)
Ao terminar todos me aplaudiram. Só que naquela vez eu não queria aplausos, queria apenas ver o rosto de Felipe.
Em meio a tantos outros rostos, o achei. Seus olhos estavam cheios de lágrimas.
Fui firme, não me permiti chorar. Ele não conseguiu sustentar o olhar e abaixou a cabeça, vencido.
Beatriz olhou para nós dois e fez uma expressão como se tivesse dado um passo além naquele mistério, mas não me importei.
Me sentei ao lado de Pedro e nem me consigo lembrar qual foi o assunto da aula.
Na saída Pedro me acompanhou para casa a fim de fazermos o trabalho, mas ele percebeu que eu não estava no meu melhor dia.
- Você devia esquecer ele.
- O quê? - falei como se despertasse.
- O Felipe, você devia esquecê-lo.
- Não, Pedro, eu e ele...
- Vocês namoravam...
- Como você sabe?
- Não foi difícil perceber. Passa despercebido aos olhos da maioria, mas quando descobri que você era gay, logo desconfiei da proximidade de vocês dois.
- Ah...
- Enfim, você é uma pessoa especial Bernardo. A mais especial que eu já conheci; não devia ficar correndo atrás dele ou fazendo cenas de ciúme.
- Pedro...
- Você devia focalizar em quem realmente gosta de você.
- Falar é fácil.
- Dê uma chance ao resto do mundo. - e me abriu um lindo sorriso.
- Prometo tentar.