E sumiu na noite com sua moto a mil.
Tomei coragem e entrei na casa. Apesar de já passar da meia-noite, ainda tinha algumas pessoas lá.
Todas gritavam muito, mais do que o normal. Achei estranho e fui procurar um rosto conhecido.
Logo encontrei Renata.
- Onde você estava, meu Deus?
- Cheguei agora.
- Agora? Chegar em fim de festa é foda.
- Isso aqui parece estar bem longe do fim.
- Verdade...
- Por que essa gritaria toda.
- Ah... - ela ficou meio sem ação e eu percebi que ali tinha algo.
- O que aconteceu, Renata?
- Ah... - vendo que não tinha como esconder, soltou a bomba de vez - Felipe pediu a Beatriz em namoro na frente de todos e ela aceitou.
Uma sensação esquisita me subiu. Era uma mistura de nojo com tristeza. Ele tinha desistido de nós. Eu não estava acreditando. Aquilo me destruiu e cambaleei para os lados, mas Renata me segurou.
- Você está bem?
- Estou passando mal.
- Vem comigo lá para dentro.
Ela me puxou para dentro da casa e entrou comigo num banheiro. A primeira coisa que fiz foi me segurar no vaso sanitário e por para fora todo meu lanche.
Vomitei de nojo do Felipe, da Beatriz, de mim... Era como se eu tentasse colocar para fora tudo de ruim que eu estava sentindo. Renata me ajudou a limpar a boca e passar uma água fria no rosto.
- Meu pai já está vindo me buscar, vem comigo.
Só concordei com a cabeça sem forças para falar alguma coisa. Saímos do banheiro e quando íamos sair da casa, demos de cara com o casal feliz. Eles riam um para o outro, aparentemente felizes.
Renata ainda tentou me puxar de volta, mas eu estava paralisado com a cena. Eles se aproximaram e trocaram um beijo rápido, recebendo aplausos e gritos de quem estava em volta. Eles sorriam.
Naquela hora tive inveja dele por ter conseguido seguir adiante ou dela por tê-lo com ela.
Eles se viraram lentamente e viram meu rosto indiferente.
Não, não chorei, acho que nem tinha forças para isso naquele momento. Seus sorrisos fecharam na mesma hora.
- Vamos embora, Renata. - falei baixo.
- Certo.
Ela me deu a mão e saiu me arrastando para fora da casa.
- Bernardo! Bernardo! - ouvi Felipe vir gritando atrás de mim.
Eu e Renata conseguimos chegar ao lado de fora da casa, mas para nosso azar o pai dela ainda não havia chegado. Felipe e Beatriz chegaram logo depois atrás da gente.
- Bernardo... - ele falou, mas Renata o interrompeu.
- Depois vocês se falam, Felipe.
- Você não sabe...
- Sei de muita coisa, mais do que você imagina.
- Não me importa! - mesmo sem olhá-lo pude sentir sua raiva. - Bernardo, conversa comigo.
Alguma coisa mais poderia me machucar? Eu já estava anestesiado, nem me sentia mais triste por aquilo.
- Pois bem, fale. - falei friamente.
- A sós. - falou me puxando para um canto longe de Beatriz e Renata.
- Sou todo ouvidos.
- Porque você está assim?
- Assim como?
- Frio, indiferente.
- Queria me ver chorando? Já fiz isso mais cedo, acho que me anestesiou.
- Bernardo, eu...
- Você seguiu em frente, eu te entendo. Seja feliz, são meus mais sinceros votos.
Ele me olhou com lágrimas nos olhos.
- Não é assim Bernardo. Tem minha família, eles estavam fazendo pressão para eu apresentar uma namorada.
- Me poupe, Felipe. Seja homem pelo menos para assumir seus atos, para de jogar a responsabilidade sobre sua família e confesse que você quer isso.
- Bernardo... - ele chorava.
- Porque é mais fácil, certo? Que bom! Te desejo boa sorte nesta sua nova vida heterossexual. - ri baixo sem humor. - Na verdade é até engraçado.
- Seu primeiro namoro heterossexual começa exatamente um ano depois do seu primeiro namoro homossexual. Essa é realmente uma data muito especial.
- Não foi planejado. Você não chegava, então eu liguei para sua casa e sua mãe me disse que você já tinha saído com Pedro. Eu fiquei arrasado e acabei pedindo a Beatriz em namoro.
- Novamente vem você jogando seus erros em cima de alguém. Não que eu te deva explicações, do mesmo jeito que você não me deve, mas vou lhe contar. Saí sim com Pedro para me distrair, esquecer nosso aniversário de namoro, mas não deu certo. Eu só pensava em você, então pedi desculpas a ele que ainda se prestou a me trazer aqui. Ele é um homem de verdade.
- Na cama também? - ele perguntou novamente com raiva na voz.
- Na cama também.
- Você não nega?!
- Não, como eu disse, não te devo explicações.
- Você é uma puta!
- E você é um covarde que fica jogando culpa dos seus erros nos outros, como agora, e que por causa disso nunca vai conseguir ser feliz.
- Bernardo...
- Não, Felipe, não diga mais nada.
- Se você quiser eu deixo ela, volto para você na mesma hora! - ele falava desesperado segurando meus braços.
- Não, eu não quero. Se antes pedi um tempo, agora estou realmente terminando com você.
- Por quê? Você não me ama mais?!
- Amo. Você continua sendo a pessoa que mais amei na vida, mas só amor não basta.
- Então?
- Felipe, os motivos que me levaram a terminar contigo ainda estão aí. Reatar seria um erro. Você está longe de ser o homem que eu sonho em ter ao meu lado.
Nesta hora o pai de Renata encostou o carro.
- Até segunda-feira, Felipe.
Renata abriu a porta para mim, mas antes de entrar Beatriz me falou:
- Sinto muito.
- Eu também.
Entrei no carro e Renata veio em seguida. Deitei minha cabeça em seu colo, cansado.
O resto da viagem seguiu-se em silêncio até a minha casa.
Tirei a correntinha que ele me deu no meu aniversário pela primeira vez e a guardei dentro de uma gaveta. Me deitei ainda com a mesma roupa e só então me permiti chorar. Chorei até dormir.
Antes de dormir pensei nos dezesseis.
Felipe completava essa noite, mas não agia conforme a idade, pois era capaz de pedir alguém em namoro na hora da raiva, do ciúme.
Pedro também tinha dezesseis e, mesmo tão maduro às vezes, era inconsequente a ponto de pegar uma moto para sair rasgando as ruas da cidade. E tinha eu, também com dezesseis, ainda imaturo demais para ajudar o garoto que eu amava a se tornar uma pessoa melhor.
Ter dezesseis era um sacoOs meses seguintes ao aniversário de Felipe foram duros de aguentar. Mudei meu lugar em sala para o mais longe possível de Beatriz e Felipe. Renata e Pedro foram comigo.
Não foi uma ou duas vezes que peguei o casal número 1 da escola me olhando.
Eu sempre fingia que não era comigo, não queria nenhum tipo de aproximação deles.
Como eu me sentia com tudo isso? Simples, eu não sentia nada. Não me sentia triste, aliviado, com raiva, nem nada.
Quem visse de fora poderia pensar que era indiferença, mas não, era meu coração que já tinha apanhado tanto que tinha começado a endurecer.
Para a maioria isto pode parecer algo ruim e indesejável, porém para mim era um alívio não sofrer mais por amor.
E é justamente pelo medo dessa proteção cair me fazendo voltar a sofrer, que eu não me permitia aproximar deles.
Vai saber o quão frágil pode ser a barreira que criei. Isso seria melhor para todos, porque nem eu atrapalhava seu namoro que ia muito bem aparentemente, nem eles atrapalhavam minha vida que ia se estabilizando.
Outro fato importante a ser relatado: comecei a cantar com mais frequência nas aulas de artes em que o Raul nos ensinava música.
De tanto falarem que eu cantava bem, estava começando a acreditar e até mesmo com um futuro no qual eu trabalhasse nesta área.
Essas ideias ficaram guardadas só para mim durante muito tempo, até chegarem as férias de julho e eu viajar para a casa dos meus avós no Rio. Eu adorava ir para o Rio, em parte pelos meus avós, em parte pela cidade realmente bonita.
- Bem vindo, meu neto favorito! - falou vovô ao me ver saindo do portão de desembarque do Santos Dumont.
- Que pecado, vô. - falei lhe dando um abraço.
- Mas é verdade, só não conte aos seus primos.
- Hahaha, pode deixar.
Minha avó nos esperava na cozinha já com o almoço pronto. Me encheu de beijos e comentários do tipo “você cresceu” ou “você emagreceu, anda comendo direito?” como toda avó.
Como ela era aposentada e vovô trabalhava em casa escrevendo críticas sobre cinema e música, quando eu ia visitá-los tinha toda a atenção possível.
Cerca de uma semana depois que eu cheguei lá, fomos visitar um amigo deles que mexia nos bastidores da música. Como não podia deixar de ser, logo alguém pegou um violão e mais dois instrumentos começando a tocar sambas antigos de Noel Rosa, Cartola e Ary Barroso.
Começaram então a tocar Conversa de Botequim, uma música que eu adorava ouvir quando era menor.
- Canta essa, Bernardo, você adora essa música!
- Ah, não sei não, vô. - eu estava era com vergonha daquele monte de desconhecidos.
- Ninguém aqui está preocupado com perfeição vocal, a ideia é apenas se divertir.
Fiquei meio receoso de cantar ali no meio de estranhos, e ainda mais, estranhos que entendiam MUITO de música.
Como sempre acabava acontecendo, fechei meus olhos e comecei a cantar com um certo tom de malandragem que a música exigia.
”Seu garçom faça o favor de me trazer depressa
Uma boa média que não seja requentada
Um pão bem quente com manteiga à beça
Um guardanapo e um copo d'água bem gelada
Feche a porta da direita com muito cuidado
Que eu não estou disposto a ficar exposto ao sol
Vá perguntar ao seu freguês do lado
Qual foi o resultado do fute..bol
Se você ficar limpando a mesa
Não me levanto nem pago a despesa
Vá pedir ao seu patrão
Uma caneta, um tinteiro,
Um envelope e um cartão,
Não se esqueça de me dar palitos
E um cigarro pra espantar mosquitos
Vá dizer ao charuteiro
Que me empreste umas revistas,
Um isqueiro e um cinzeiro
Telefone ao menos uma vez
ParaE ordene ao seu Osório
Que me mande um guarda-chuva
Aqui pro nosso escritório
Seu garçom me empresta algum dinheiro
Que eu deixei o meu com o bicheiro,
Vá dizer ao seu gerente
Que pendure esta despesa
No cabide ali em frente.”
(Conversa de Botequim – Noel Rosa/Vadico)
Todos aplaudiram no final. Não pude deixar de sorrir largamente. Não só pelas palmas, mas pelo fato de eu ter conseguido cantar direitinho a música tão complicada.
- Rodolfo, meu camarada, por que não disse que tinha um cantor na família. - falou um dos presentes me fazendo corar de vergonha.
- Juro que também não sabia, descobri agora. - respondeu vovô, surpreso.
- Desde quando você canta, Bernardo?
- Ah, vô, acho que desde sempre, uai.
- Sua mãe já tinha me dito que você cantava muito bem, mas eu achei que era exagero de mãe.
- Deve ser mesmo.
- Ah, não é mesmo, garoto. - falou outro amigo do meu avô. - Trabalho com música há quase quarenta anos... sei reconhecer alguém talentoso quando vejo.
- Já pensou em seguir carreira na música? - perguntou uma senhora negra de meia idade, presente.
Era uma das coisas que eu mais pensava nos últimos dias. Eu ainda não tinha certeza se estava pronto para externalizar esse tipo de desejo secreto, mas resolvi arriscar embalado pelo meu ego, que estava bem inflado no momento.
- Já, mas ainda não tenho certeza.
- Deveria ter, você é realmente muito bom.
- Se você quiser, Bernardo, - começou vovô - eu conheço as pessoas certas.
- Não sei...
- Não vai te custar nada mesmo.
- Ok. - falei em dando por vencido.
Cantei com eles o resto da noite.
No dia seguinte meu avô me levou para visitar um velho amigo seu.
Marco Antônio Miranda era uma lenda da música.
Produziu diversos shows e álbuns de sucesso de grandes nomes da música nacional a partir dos anos 70. Era o tipo de profissional que tinha faro musical para tornar imortal qualquer artista que quisesse.
- Eu não costumo fazer isso, só aceitei em respeito ao seu avô. - ele era rude, grosseiro, mas vovô já havia me alertado sobre isso. - Faz anos que não me dedico a procurar novos talentos, prefiro me dedicar a produzir novos trabalhos dos artistas com quem já trabalhei ao longo dos anos.
Eu já estava completamente arrependido de estar ali, ainda mais sem meu avô que quis nos dar privacidade. Mas agora não tinha volta, eu estava ali e até tinha ensaiado uma música.
- Então, o que vai cantar para mim?
- Eh... Travessia.
- Humm. Ousado, corajoso... Vai lá então.
Respirei fundo e cantei num tom bem alto para causar boa impressão:
“Quando você foi embora
Fez-se noite em meu viver
Forte eu sou, mas não tem jeito,
Hoje eu tenho que chorar
Minha casa não é minha,
E nem é meu este lugar
Estou só e não resisto,
Muito tenho prá falar
Solto a voz nas estradas,
Já não quero parar
Meu caminho é de pedra,
Como posso sonhar
Sonho feito de brisa,
Vento vem terminar
Vou fechar o meu pranto,
Vou querer me matar
Vou seguindo pela vida
Me esquecendo de você
Eu não quero mais a morte,
Tenho muito que viver
Vou querer amar de novo
E se não der não vou sofrer
Já não sonho, hoje faço
Com meu braço o meu viver
Solto a voz nas estradas,
Já não quero parar
Meu caminho é de pedra,
Como posso sonhar
Sonho feito de brisa,
Vento vem terminar
Vou fechar o meu pranto,
Vou querer me matar”
(Travessia – Milton Nascimento/Fernando Brant)
Acabei de cantar e ele continuou impassível. Era impossível dizer se ele havia gostado ou não. O tempo foi passando e nada de resposta. Eu comecei a suar frio.
- Parabéns, você tem uma voz muito bonita.
- Obrigado. - agradeci aliviado.
- Mas a resposta é não.
- Hã?
- Vou ser sincero com você, garoto. Muita gente vem atrás de mim querendo conseguir sucesso, fama e dinheiro. Dá para contar nos dedos os que vêm aqui realmente pelo prazer de cantar. No instante que te vi, percebi que você fazia parte do segundo grupo. Mas um grande cantor tem que ir muito além. Me diga, você é fã dos nossos grandes nomes como Elis, Milton, Gal, Caetano, etc?
- C-claro. - respondi meio receoso não sabendo aonde ele queria chegar com aquilo.
- Então, sabe por que eles são lendas da nossa música? Porque o talento deles vai muito além do que eles podem fazer com a garganta. O sucesso deles vem da inteligência. Inteligência para adequar sua voz a uma certa música, inteligência para escolher um bom repertório, inteligência para dar a palavra final sobre cada detalhe de seus trabalhos. Para eles é muito fácil ir ao estúdio e só colocar a voz como fazem os muitos cantores que tocam exaustivamente nas rádios hoje, mas isso não é ser artista. Aliás, isso não é arte, é publicidade.
Enfim, estou dizendo isso para te mostrar as razões que me levam a te recusar.
Você um dia será um grande cantor, talvez um dos maiores, mas ainda não viveu o bastante para adquirir a profundidade que isso exige. Daqui a alguns anos, acredito que não muitos, eu vou ter muito orgulho de produzir seu primeiro álbum.
Ele disse aquilo sem demonstrar um pingo de emoção. No momento eu me senti sim um pouco magoado por ter sido recusado, mas eu entendia suas razões.
Ele estava certo, afinal de contas, eu tinha apenas dezesseis. O caminho até estar pronto para cantar profissionalmente era longo e não tinha atalhos.
- E aí, como foi? - perguntou vovô quando saí do escritório de Marco.
- Ainda não é minha hora. - respondi um pouco triste.
- Desconfiei que ele falaria alguma coisa assim, mas eu tinha que tentar. Bom, vamos para casa porque o almoço deve estar quase pronto.
- Certo.
Alguns dias depois, no fim do mês de julho, peguei um avião de volta para Belo Horizonte.
Na viagem pensei na conversa que tive com Marco Antônio.
Agora mais do que nunca eu queria me tornar um cantor de verdade.
Eu entraria em aulas de canto para aperfeiçoar minha técnica e mergulharia em discos para aprofundar meu conhecimento.
Dali a alguns anos eu voltaria ao Rio e ele me produziria. Era meu objetivo de vida agora.
Pode parecer coisa boba, mas foi uma reviravolta na minha vida.
Se antes eu vivia por viver, um dia de cada vez, agora era diferente. Eu viveria cada dia intensamente, lutando sempre para alcançar meu sonho.
E mesmo se não desse em nada, era muito melhor viver assim, sabem por quê?
Porque como disse um grande escritor um dia, o importante não é a chegada ou a partida, o que importa é a travessia.