TRAVESSIA [26]~ Sonhos viram realidade!

Um conto erótico de BERNARDO
Categoria: Gay
Contém 4104 palavras
Data: 11/05/2024 13:49:21

Eu já estava morando com meus avós no Rio de Janeiro há três semanas quando as aulas começaram em fevereiro. Confesso que fui com aquele friozinho na barriga, típico de quando não sabemos o que nos espera. Admirei o belo prédio da faculdade e entrei.

Percebi que havia muitos meninos e meninas bonitos pelos corredores. Demorei um pouco para encontrar minha sala. Na primeira fila tinha um garoto bem branquinho, com cabelos cor de mel encaracolados e olhos quase cinzas. Parecia um anjo.

Me lembrei de quando conheci Felipe, no nosso primeiro dia de aula, me olhando com aqueles olhos azuis da cor do céu.

Mas agora era diferente.

Com Lipe foi amor à primeira vista.

Por aquele garoto eu sentia uma simpatia infinita, como se algo me dissesse que, mesmo sem conhecê-lo, eu podia lhe confiar minha vida e não me decepcionaria.

Uma força moveu minhas pernas e me fez sentar ao lado dele.

- Oi, meu nome é Bernardo.

Nem sei o que eu estava fazendo, não sou do tipo de pessoa que já chega se apresentando. Não sou tão extrovertido assim, mas aconteceu. Ele devia ter me achado um doido qualquer, mas apenas sorriu amistosamente e me estendeu a mão:

- Prazer, sou Caio.

Em pouco tempo, já tínhamos virado melhores amigos e falávamos sobre nossas expectativas com o curso. Falamos até sobre nossos hobbies.

- Eu canto. Espero um dia poder fazer isso profissionalmente. - falei.

- Sério? Eu sou pianista, e modéstia a parte, um dos bons. - falou rindo.

Como eu falei, assim é a vida. Às vezes nos faz encontrar pessoas que nos ajudarão a definir todo o nosso futuro.

As aulas começaram de fato e minha amizade com Caio foi se fortalecendo. Ao conviver mais com ele, pude perceber que ele tinha um jeito levemente delicado. Sua voz era doce, mas nada afeminada, como a de uma criança. Ele andava com leveza, gesticulava com delicadeza e era sempre simpático com todos.

Para mim aquilo não era nenhum problema, mas comecei a perceber que para os outros era.

Os garotos da nossa sala também perceberam o jeito dele e, apesar de não nos dizerem nada diretamente, eu tinha certeza que Caio era o assunto quando eu os pegava cochichando e rindo olhando para ele.

Meu novo amigo não percebia ou fingia não perceber, então resolvi alertá-lo.

Estávamos no meu quarto e ele fez uma cara triste quando terminei de falar.

- Então, você realmente não percebeu? - perguntei.

- É complicado, Bernardo. - ele não me olhava. - Sempre foi assim, em todas as minhas turmas de escola, nos cursinhos, entre os vizinhos e às vezes até na minha família. Acho que com o tempo eu aprendi a fechar os olhos para me defender.

Para mim que estava aprendendo a usar a voz para gritar para todo mundo que eu era diferente e gostava daquilo, o que ele estava me dizendo soava absurdo e covarde. Mas no fundo eu o entendia, afinal eu também sofri preconceito.

- Caio, você é gay?

A minha pergunta super direta o assustou, mas foi necessária. Se eu quisesse ajudá-lo, tinha que começar fazendo ele aceitar a si mesmo.

- Eu... Eu sou... - ele respondeu triste e desviou o olhar. - É melhor eu ir embora, você não vai querer um amigo como eu para sujar sua imagem.

Ele se levantou e foi em direção à porta, mas eu o puxei pelo pulso fazendo com que sentasse ao meu lado novamente.

- Nunca deixaria de ser seu amigo por causa disso. Para mim, ser gay é apenas uma entre as suas muitas características, não é um fator decisivo. Sabe de uma coisa? Eu sou gay também.

A cara que ele fez de surpresa foi impagável e foi impossível não rir. Ele acabou se rendendo e rindo também.

- Sério? - perguntou ainda não levando muita fé naquilo.

- Seríssimo.

- Desde quando?

- Acho que desde sempre, mas só fui me descobrir quando tinha por volta de quinze.

- E como você se descobriu?

- É uma longa história...

Contei a ele cada detalhe de como tinha chegado até ali, do dia em que chorei vendo Vítor e Mariana se beijarem ao dia em que me mudei para o Rio de Janeiro, passando pela morte de Felipe.

- Nossa! Você viveu em três anos o que a maioria das pessoas não vive a vida inteira.

- Pois é, mas não sei se isso é bom ou ruim, ainda estou tentando descobrir.

- Se você não me contasse, eu nunca descobriria, você disfarça muito bem.

- Não é questão de se disfarçar, não faço isso, apenas sou como sou. Esse é meu jeito, não estou atuando para evitar ferir os olhos dos outros. Se não gostarem de mim como eu sou, que se fodam, não são eles que pagam minhas contas!

Ele riu e me olhou com um certo ar de admiração. Acho que foi naquele momento que ganhei sua confiança e nos tornamos amigos de verdade.

- Eu tenho muito o que aprender com você... - ele me disse.

- Talvez. Só não vale ficar se policiando, seja você mesmo e não ligue para o que os outros falarem.

- Vou tentar.

- Vai sim, e eu estarei ao seu lado para poder gritar contra essa gente preconceituosa enquanto você não tiver formado sua própria voz ainda.

- Obrigado. - falou me dando um abraço.

O papo foi fluindo e ficando mais descontraído até chegar à nossa principal afinidade: música.

- Mas eu já toco profissionalmente. - ele falou.

- Sério? Onde?

- Num bar de jazz em Ipanema.

- Deve ser um máximo. Eu tinha uma bandinha que tocava em festas, mas se desfez com a morte do Felipe.

- Humm. Ei! - ele falou como se tivesse acabado de se lembrar de algo. - No bar estamos precisando de um cantor, o nosso último se despediu há um mês. Você bem que podia fazer um teste.

- Será?

- O que custa tentar?

(...)

Na semana seguinte, Caio me levou ao tal bar para fazer um teste.

Era dia e tínhamos acabado de sair da faculdade. Eu estava bastante nervoso. Apesar dos elogios que sempre ouvi, aquela seria a primeira vez que meu talento seria testado de verdade.

Quem ia me ouvir era seu Almir, o dono, que já nos esperava sentado numa mesa no centro do bar. Era um lugar bonito. Tinha todo aquele clima de Nova Orleans, com o palco pequeno e uma forte luz azul.

Via-se que era um lugar bem frequentado.

- Então você é o famoso Bernardo? - Almir perguntou, me estendendo a mão.

- Sou sim, prazer.

- Prazer. Pode começar garoto, o palco é todo seu.

- Certo.

Me dirigi ao palco, peguei o microfone e me posicionei ao lado do piano ao qual Caio se sentou. Eu sabia que teria que impressionar, por isso escolhi de cara uma música difícil, mas que falava muito sobre mim:

“Rebento,

substantivo abstrato

O ato, a criação e o seu momento

Como uma estrela nova e o seu barato

Que só Deus sabe lá no firmamento

Rebento,

Tudo que nasce é rebento,

Tudo que brota, tudo que vinga, tudo que medra

Rebento raro, como flor na pedra

Rebento farto, como trigo ao vento

Outras vezes, rebento simplesmente

No presente do indicativo

Como a corrente de um cão furioso

Como as mãos de um lavrador ativo

Às vezes, mesmo perigosamente

como acidente em forno radioativo,

Às vezes, só porque fico nervoso

Eu Rebento

Ou necessariamente só porque estou vivo

Rebento

A reação imediata

A cada sensação de abatimento

Eu Rebento

O coração dizendo bata

A cada bofetão do sofrimento

Eu Rebento

Como um trovão dentro da mata

E a imensidão do som desse momento.”

(Rebento – Gilberto Gil)

Abri os olhos e vi seu Almir me aplaudir entusiasmado.

- Garoto, o emprego é seu!

Fiquei muito feliz por ter meu primeiro emprego de verdade e ligado à música.

Lógico que liguei para todo o pessoal de Belo Horizonte que comemoram comigo a novidade. Se lamentaram por não poderem estar presentes na minha primeira apresentação, mas prometeram que no próximo feriado estariam lá. Meus avós ficaram preocupados se eu daria conta do novo emprego e da faculdade ao mesmo tempo, mas tratei logo de tranquilizá-los. Eles sim compareceram à minha primeira apresentação.

A noite da minha estreia foi no fim de semana seguinte ao teste. Minha vó me ajudou a escolher uma roupa bem bonita: calça jeans bem escura, uma camisa social branca bem jovial com os últimos botões abertos e suspensórios que davam o toque final ao visual. Eu tremia muito e Caio tentava me acalmar ainda nos bastidores.

O bar estava lotado, tendo como maioria jovens na casa dos vinte ou trinta anos.

Quando deu a hora marcada, respirei fundo e entrei no palco junto do resto da banda. Alguns aplaudiram, outros nem notaram nossa presença e continuaram a beber e conversar.

Fui aprender depois que aquele era um comportamento normal em estabelecimentos como aqueles. Com todos nos seus lugares, engoli o nervosismo e comecei a cantar.

Devo ter cantado mais ou menos umas vinte músicas num intervalo de quase três horas, sempre sendo aplaudido entre uma e outra canção.

Foi uma noite libertadora para mim, que hoje eu considero como o primeiro show da minha carreira de cantor, carreira a qual eu seguiria pelo resto da vida.

Caio e meus avós ainda comemoraram comigo antes de irmos embora. Naquela noite consegui ter uma boa noite de sono pela primeira vez desde a morte de Felipe.

Será que ele estava ali comigo?

(...)

Com o passar do tempo, os nossos colegas de faculdade começaram a intensificar suas brincadeiras contra Caio e passaram a me incluir nelas por eu estar sempre ao seu lado

Esbarravam nele de propósito pelos corredores, não se preocupavam mais em disfarçar ser ele o motivo de piadas e às vezes até o insultavam em forma de brincadeira.

Assistir àquilo me fervia o sangue, mas Caio me segurava e não deixava eu reagir contra eles. Não sei se ele queria evitar o confronto para me proteger ou por puro comodismo. Só que como sempre acontece nesses casos, uma hora a coisa explode.

Já era final de abril, época de provas, eu e Caio estudávamos quietos na biblioteca. Ao sairmos bem juntinhos conversando, um dos nossos colegas gritou:

- Olha os viadinhos passando!

Não teve Caio ou santo que me segurasse. Me virei para ele e até tremendo um pouco de raiva, falei entre os dentes:

- E isso por acaso é da sua conta?

Ele nunca ia deixar passar batido e aceitou o desafio:

- É sim, não quero ver dois viadinhos se agarrando por aí.

- Pois então feche os olhos, meu querido!

O pessoal que estava em volta riu e ele ficou mais nervoso.

- Mas é viado mesmo!

- Sou sim, e com muito orgulho. Antes viado do que ter a sua mente fechada e preconceituosa!

Caio tentava me segurar, mas eu o afastava.

- E sabe do que mais? – continuei. - Gente como você normalmente faz parte da categoria dos gays enrustidos, que passam a vida toda namorando lindas garotas para disfarçar, mas quando chega a madrugada, dão a bunda pra michês.

- Seu filho da puta! - ele gritou nervoso partindo para cima de mim.

Foi uma boa briga. Eu sabia me defender muito bem, tinha ficado forte com anos de natação em Belo Horizonte. Claro, apanhei, mas ele apanhou muito mais e foi como lavar a alma.

Fiz ele engolir todos os seus preconceitos e insultos dirigidos ao Caio nos últimos meses.

Depois apareceram braços vindos não sei da onde e nos separaram, mas até esse momento já tinha batido nele o suficiente para a fofoca se espalhar e todos naquele lugar aprenderem a não mexer comigo e com o Caio.

Eu era assim, eu não aguentava muito tempo de provocações. O máximo que acontecia era eu as ir acumulando até o ponto que explodia com tudo. No palco ou numa briga, eu era assim, surpreendendo a todos, rebentava com força, destruindo tudo que estivesse à minha volta, fosse a indiferença daqueles sentados na mesa de um bar ou a reputação daqueles que se julgam melhores do que os outros.

Eu era assim; a cada sensação de abatimento, a cada bofetão do sofrimento, o coração batia forte me fazendo rebentar como um trovão dentro da mata.

Os meses foram passando rápido e várias coisas foram acontecendo à minha volta. Vou tentar resumir as mais importantes.

Primeiro, comecei a seguir o conselho de Pedro: dormi com vários caras, um mais bonito que o outro e sem culpa nenhuma. Caio e eu nos jogávamos nas boates cariocas em nossas noites de folga.

Nunca ficava com um deles mais do que uma semana. Não sei exatamente o motivo, mas não era planejado. Eu simplesmente me cansava muito rápido deles.

- Eu acho que é uma proteção natural do seu coração. Inconscientemente você afasta todos com medo deles ocuparem o lugar de Felipe. - falou Caio, que além de meu amigo era meu psicólogo.

- Que bobeira! - falei desacreditando-o.

- É a minha opinião.

- Eu não acho. Eles simplesmente não conseguem prender meu interesse por muito tempo. - E nunca, nunca mesmo, ninguém vai conseguir ocupar o lugar do meu Lipe, meu anjo de olhos cor do céu...

- Pois é, e acho que o problema é com você.

- E o que o senhor acha que eu devo fazer? - perguntei debochando.

- Nada, um dia seu coração vai bater mais forte por um deles, não adianta tentar forçar nada.

- Ah, cala a boca, Caio! - falei, dando o assunto como encerrado e ele riu.

Talvez ele estivesse certo, mas eu não queria pensar naquilo. Pelo menos não por enquantoMais para o final do ano recebi uma notícia péssima: meu avô paterno tinha morrido em Morro Velho.

Foi o coração, estava muito fraco por causa da idade avançada. Foi enterrado rápido, como é tradição no interior, então não tive como me despedir dele. Nem sei se eu iria ao enterro se tivesse tido oportunidade, pois eu certamente iria encontrar várias pessoas que eu não queria ver.

Minha avó, para não ficar sozinha naquela fazenda enorme, aceitou vendê-la (reservando uma pequena parte para os pais de Zeca) e se mudou para a cidade.

Foi morar sozinha, perto do meu pai e sua nova esposa. Sim, meu pai tinha se casado de novo e justamente com Joana, a viúva da cidade que sempre dava em cima dele. Não sei como minha mãe recebeu a notícia, mas acredito que não deve ter sido fácil.

Por falar em minha mãe, ela começou a namorar um advogado de Belo Horizonte. Pelo o que Zeca me contou, tinha não um, mas os dez dedinhos da minha tia nessa história.

Fiquei com um pouco de ciúme como é normal, mas logo passou. Logo que eu os vi juntos pela primeira vez, percebi que ele a fazia muito feliz, então lhes dei minha aprovação de filho. Ele me pareceu ser um cara legal.

Com ajuda dos nossos parentes, eu e Caio alugamos um apartamento só para nós dois no começo do ano seguinte.

Morar sozinho foi uma experiência importante para a minha vida. Foi também uma prova de fogo para a minha amizade com Caio. Nós dois brigávamos muito no início por causa de bobagens, mas aos poucos um foi se adaptando ao jeito do outro. Acabou que nos tornamos ainda mais amigos.

Nossa vida profissional ia muito bem também. Ganhamos uma certa fama nos círculos sociais “alternativos” da cidade, o que aumentou o movimento no bar. Seu Almir ficou tão agradecido que passou a nos pagar com uma pequena porcentagem do faturamento. Não dava para ficarmos ricos com aquele dinheiro, mas era mais do que suficiente para nos sustentarmos.

Na faculdade não tivemos mais problemas depois da minha briga. Ainda nos olhavam torto de vez em quando, mas não falavam nada. Alguns até se aproximaram de nós, mas nada a ponto de se transformar numa amizade digna de ser citada aquiZeca e Bruno foram morar juntos.

Lógico que de vez em quando tinham briguinhas, e sempre me telefonavam para desabafar, mas acabavam fazendo as pazes rápido. Os dois se amavam demais para ficarem muito tempo separados.

Sempre que possível eu conversava com meus amigos belo-horizontinos também.

Pedro já estava estagiando na empresa do pai, e continuava levando uma vida dupla, mas ele dizia não se importar. Nem questionei, aprendi que cada um lida com sua homossexualidade de um jeito diferente e não há um manual a se seguir sobre esse assunto.

Alguns eram felizes no armário, outros mandando o resto do mundo se foder, e alguns com exageradas perucas e saltos altíssimos.

Não há uma única régua para se medir todos os gays.

Renata estava estagiando em um grande jornal em Belo Horizonte, e namorava um colega. Foi seu primeiro namorado sério e foi com ele sua primeira vez, segundo me confidenciou.

Foi com ele também que ela viria se casar alguns anos mais tarde. Eles formavam um bonito casal. Nunca perdi contato com eles, apesar de quase nunca conseguirmos nos ver.

Beatriz conseguiu. Ela se revelou uma grande atriz, com um futuro promissor. Se mudou para o Rio de Janeiro um ano depois de mim e começou a atuar em novelas.

A apresentei ao Caio, mas os dois não se deram muito bem.

Tive que me conformar; suas personalidades eram muito distintas para aquilo dar certo.

Mas de qualquer forma, eles se respeitavam, não ficavam fazendo intriga um do outro comigo.

Na primeira vez que vi Beatriz nunca poderia imaginar até onde nossa relação chegaria. Ela se tornou minha melhor amiga.

Depois de Felipe, acho que ela foi a pessoa que mais me entendeu, afinal, éramos parecidos em vários aspectos.

Já estávamos na metade de 2004, um ano e meio depois de me mudar para o Rio de Janeiro.

Eu estava com um grande dilema. A partir do próximo semestre eu teria que estagiar obrigatoriamente, o que ia de encontro com meu emprego de cantor no bar. Eu tinha que escolher entre abandonar a faculdade ou meu emprego. Caio já tinha optado e trancou a faculdade. Minha decisão veio na forma de um ouvinte numa das noites no bar.

“Amanhece, preciso ir

Meu caminho é sem volta e sem ninguém

Eu vou pra onde a estrada levar

Cantador, só sei cantar

Ah! eu canto a dor, canto a vida e a morte, canto o amor

Ah! eu canto a dor, canto a vida e a morte, canto o amor

Cantador não escolhe o seu cantar

Canta o mundo que vê

E pro mundo que vi meu canto é dor

Mas é forte pra espantar a morte

Pra todos ouvirem a minha voz

Mesmo longe ...

De que servem meu canto e eu

Se em meu peito há um amor que não morreu

Ah! se eu soubesse ao menos chorar

Cantador, só sei cantar

Ah! eu canto a dor de uma vida perdida sem amor

Ah! eu canto a dor de uma vida perdida sem amor.”

(O cantador – Dorival Caymmi/Nelson Motta)

O público aplaudiu ao ouvir a última música da noite. Seu Almir já tinha me dado liberdade para cantar o que quiser, e não ficar preso ao jazz e ao blues.

Enquanto o bar se esvaziava, me troquei e me dirigi à saída para ir embora, mas alguém me chamou. Tinha um homem sentado nas sombras do estabelecimento.

- Pois não? - me aproximei.

- Ora, já me esqueceu, garoto?

Logo o homem se revelou. Era Marco Antônio Miranda, o grande produtor musical amigo de vovô que havia recusado me lançar como cantor há alguns anos.

- Olá, seu Marco Antônio, não vi o senhor aí. - falei lhe cumprimentando.

- Preferi ficar aqui escondido no fundo para que você não me visse. - seu jeito de falar continuava sério e um pouco rude.

- E por quê?

- Eu queria te testar, saber como você estava cantando. Um amigo me falou sobre você e esse lugar. Liguei os fatos e confirmei com seu avô. Depois só me restou vir até aqui ver com meus próprios olhos.

- Quer dizer que o senhor ouviu falar bem de mim? - perguntei curioso.

- Muitíssimo. Me falaram que você era a maior voz masculina surgida no Brasil nos últimos anos. Devo reconhecer que é verdade.

- Obrigado.

- Não agradeça como se você tivesse sido agraciado com esse dom, sei muito bem que você andou treinando esses anos todos.

Meu avô tinha aberto o bico. Realmente eu tinha feito aulas de canto e estudado a fundo discos de grandes artistas para aperfeiçoar minha música.

- Verdade...

- Isso é um mérito muito maior, você lutou para se tornar melhor, e está prestes a ter sua recompensa por isso.

Ele ia fazer o que eu estava pensando? Apesar do cansaço, meu corpo já começava a se agitar por causa da euforia.

- O senhor está dizendo que...

- Que eu quero produzir seu primeiro disco.

- Sério? - perguntei quase gritando de emoção.

- Sim. Você está pronto para isso, garoto?

- Nunca tive tanta certeza sobre algo na vida!

- Certo. Tome. - ele me passou um cartão que tirou do bolso. - Me encontre amanhã na minha produtora, conversaremos melhor.

- Ok.

Ele foi embora e me deixou em estado de êxtase. O primeiro para quem corri contar a boa nova foi Caio, que ficou quase tão animado quanto eu. Ignorando o horário, liguei para todos, contando, e, entre bocejos, ficaram muito felizes por mim também. Naquele momento eu optei por largar a faculdade.

Minha grande chance de realizar meu sonho finalmente chegouNo dia seguinte pela manhã, lá estava eu subindo o prédio da zona sul onde estava a produtora de Marco Antônio.

Pacientemente, ele ensinou todo o processo de produção de um disco, da escolha de repertório à distribuição pela gravadora, passando pela manipulação técnica do áudio captado.

Me informou também como tudo depende da aceitação do público, das técnicas de publicidade e do meu jeito de me apresentar.

Me apresentou a Irene Duarte, a mulher que viria a ser minha empresária dali em diante.

Foi uma verdadeira maratona até eu realmente pisar no estúdio. Tive que fazer aulas de expressão corporal, melhorar meu visual, procurar uma gravadora, entre outras coisas.

Passada aquela fase, foi hora de escolher o repertório.

Eu tinha centenas de músicas, novas e antigas, para escolher apenas umas poucas. Ainda bem que eu tinha Marco Antônio para me auxiliar.

- Primeiramente, você tem que partir de um conceito. Você tem que pensar sobre o que será esse CD.

- Ah, mas isso eu já pensei há muito tempo, desde que me decidi ser cantor.

- E sobre o que é?

- Sobre mim mesmo.

- Hã? - ele perguntou não entendo muito bem.

- Quero fazer um CD que fale sobre as coisas que eu passei até chegar aqui, do meu jeito de ser, das pessoas que fazem ou fizeram parte da minha vida. Eu quero contar às pessoas o que me leva a cantar.

Marco Aurélio ensaiou um sorriso, o que já era muito vindo dele, e entendi como um sim.

-E já pensou em como vai se chamar esse CD? - perguntou.

- Pensei em “O cantador”. O que o senhor acha?

- Gostei, vai ficar bom. Agora vem a parte mais complicada que é escolher o repertório.

Foi quase um mês ouvindo músicas, lendo letras e pedindo novas composições a artistas já consagrados.

Sobre essa última parte, fiquei muito nervoso quando Marco Antônio me apresentou a eles, meus grandes ídolos. Mas acabou se revelando uma experiência maravilhosa e recebi elogios deles quando me viram cantando. Em outro momento, eu teria ficado satisfeito só com aquilo, mas agora eu queria mais. Depois de muita análise e testes, conseguimos escolher doze músicas para o disco.

Na hora de escolher a banda, não tive dúvidas em pedir ajuda ao Caio, que conhecia os melhores músicos da cidade.

Marco Antônio ficou meio receoso de confiar o cargo de diretor musical a alguém tão jovem, mas logo mudou de ideia ao vê-lo tocando piano.

Em pouco tempo nos reunimos todos e entramos em um estúdio para gravar.

Como éramos todos bastante profissionais, não demorou muito e em duas semanas essa etapa se deu por encerrada.

O próximo passo foi a área técnica do CD, sobre a qual eu não opinava por não entender muito, mas Marco Antônio me garantiu que a palavra final seria minha, assim como a parte gráfica que envolvia tudo.

Enquanto isso não ficava pronto, o acompanhei ao levar “demos”, CDs com amostras do meu trabalho, para emissoras de rádios e emissoras de televisão.

Um diretor de televisão, amigo de Marco, aceitou me colocar na trilha de uma novela, o que me fez ser descoberto pelo público.

A novela estreou quase na mesma semana em que o CD foi lançado e de repente eu passei a ouvir meu nome e minha música na boca de todos. Foi o início de uma grande fase da minha vida...

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Comentários

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Apesar do sucesso e sorte que Bernardo conquistou, a ausência de Felipe nublou meu sentimento ao ler o capítulo. Alegria mesclada com tristeza, foda né?!

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Nossa!! Que bom! Excelente! Maravilhado com essa nova fase do Bernardo. Se tornando um grande cantor, e ainda numa trilha musical de uma novela!!! 👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽

E vamos continuar acompanhando a sua aventura!!!! E chorando (de felicidades) horrores!!!

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