Três anos depois.
Eu estava no camarim do Palácio das Artes e nervoso.
Nunca consegui deixar de ficar nervoso antes de uma apresentação.
Era um show mais formal, fora da minha turnê e de repertório mais sério do que o habitual.
Pesava ainda mais por ser em Belo Horizonte, a minha Belo Horizonte.
Talvez o fato que mais me incomodava na carreira de cantor fosse ser obrigado a morar numa cidade grande como o Rio de Janeiro, e não em BH, a cidade com a qual eu tinha acostumado a chamar de lar.
Isso tudo pesava na hora de me apresentar lá, ainda mais na maior e mais prestigiada casa de shows da cidade.
Mas o que me aliviava um pouco era saber que na primeira fila estariam todos os meus familiares e amigos de outras épocas me dando apoio.
Mas me faltava o meu anjo de olhos azuis. E isso estava me fazendo tanta falta ali...
- Bernardo, está na hora. - Caio veio me avisar no camarim.
- Certo, já estou indo.
Antes de ir me olhei no espelho. Eu havia crescido, era um rapaz de vinte e um anos.
Tinha acumulado fama, dinheiro e credibilidade por ser um artista num mar de celebridades.
Eu estava orgulhoso da pessoa que havia me tornado.
Ali, de frente para o espelho, de smoking e cabelos perfeitamente alinhados, me lembrei do sonho que tive há sete anos antes de me apresentar naquela fatídica noite em Morro Velho.
Aquilo não tinha sido apenas um sonho, e sim uma visão do futuro. Sorri bobo de pensar naquilo.
Saí do camarim, caminhei pelos corredores e me posicionei no centro do palco, ainda com as cortinas fechadas. Os assistentes foram deixando o palco e fiz um sinal positivo para que subissem as cortinas.
Enquanto o público me aplaudia, identifiquei na primeira fila minha mãe, Zeca, Bruno, minha tia, Pedro, Renata e seu noivo. Eram os meus convidados de honra. Fiz uma pequena reverência ao público e então comecei a cantar.
“Os sonhos mais lindos, sonhei
De quimeras mil, um castelo ergui
E no teu olhar tonto de emoção
Com sofreguidão mil venturas previ
O teu corpo é luz, sedução
Poema divino cheio de esplendor
Teu sorriso prende, inebria, entontece
És fascinação amor
Os sonhos mais lindos, sonhei
De quimeras mil, um castelo ergui
E no teu olhar tonto de emoção
Com sofreguidão mil venturas previ
O teu corpo é luz, sedução
Poema divino cheio de esplendor
Teu sorriso prende, inebria, entontece
És fascinação amor.”
(Fascinação – F. D. Marchetti/M. de Feraudy vers. A. Louzada)
E mais aplausos.
Eu consegui. Realizei meu sonho, me tornei um cantor de verdadebrinde ao maior cantor do Brasil! - bradou Zeca, levantando sua taça.
- Um brinde! - responderam todos, repetindo o gesto.
- Não é para tanto, vocês inflam demais meu ego.
Estávamos eu, Zeca, Bruno, minha mãe, minha tia, Pedro, Renata e seu noivo, sentados em uma mesa num canto reservado de um restaurante que eu gostava muito, na zona sul de Belo Horizonte, logo depois do show.
Um dos motivos de eu adorar voltar a BH, além de gostar da cidade, é revê-los. Conversávamos sobre futilidades e boas lembranças. Uma noite bem agradável.
Antes de continuar, é bom informar algumas coisas que mudaram nesses últimos três anos que se passaram:
Partindo de uma ideia que eu tive, Bruno, Zeca e tia Marta juntaram suas formações e montaram uma produtora que cuida da minha carreira. Misturar família e trabalho poderia ter dado errado, mas deu super certo no meu caso. Eu preferia assim, gente que realmente se importava comigo cuidando dos meus negócios.
Minha mãe estava novamente solteira e, segundo ela mesma, feliz.
Titia estava namorando um empresário de BH e ia caminhando para um casamento.
Bruno e Zeca estavam morando juntos e passavam muito bem. Só não eram casados porque a lei não permitia, mas eles diziam que isso era o de menos. Caio continuava exercendo as funções de pianista, diretor musical, arranjador e amigo nas horas vagas. Estava namorando um escritor famoso, e os dois formavam um bonito casal.
Beatriz virou uma famosa atriz e morava no Rio de Janeiro, bem próxima a mim. Por causa disso nos relacionávamos ainda melhor do que nos anos do ensino médio.
Renata e Pedro estavam bem também, cada um deles tocando sua vida em frente, em Belo Horizonte.
Eu continuava solteiro. Desde a morte do meu Felipe, nunca dormi mais do que duas ou três vezes com o mesmo cara.
A imprensa vivia inventando namoradas e namorados para mim, mas eu aprendi a não me importar.
Sim, era explícito que eu era gay.
Minha gravadora e minha empresária, dona Irene, queriam que eu me fingisse de hétero a todo custo porque diziam aumentar o impacto no público feminino, mas não era uma opção.
Além de eu não ter a mínima vontade de voltar para dentro do armário, ia ser impossível calar todos que sabiam a verdade, afinal, eram muitos: toda Morro Velho, boa parte da alta sociedade belo-horizontina, meus colegas de escola, meus colegas de faculdade, além da minha família e dos meus amigos.
Eu nunca precisei ir para a capa de uma revista confessar que eu era gay, apenas me recusei a disfarçar.
Eu não tinha o menor pudor de beijar outros homens em boates ou desmentir boatos sobre o assunto.
O público entendeu o recado.
Como foi uma coisa gradual, não teve o impacto da surpresa, portanto eles não se chocaram com isso.
Além do mais, meu público já era acostumado, era o mesmo público de cantores e cantoras gays e bissexuais assumidos.
Lógico que eu sempre via uma piada ou outra na internet sobre o assunto, mas se eu não ligava na época de escola, agora menos ainda vindo de terceiros.
Enfim, minha sexualidade nunca se tornou um problema real para a minha carreira.
Voltando ao pós-show, foi uma noite muito agradável. Fazia muito tempo que não conseguia reunir todas aquelas pessoas tão queridas.
Como sempre acontecia quando ia a Belo Horizonte, dormi no apartamento da minha tia, no meu antigo quarto.
Deitar naquela cama me lembrava Felipe. As nossas noites de amor, nossos planos de fazermos sucesso juntos.
Lembrar dele me fazia perceber que minha vida não estava completa, só estava tão agitada que eu não tinha tempo de sentir a falta de alguém ao meu lado.
Diante das câmeras ou em cima de um palco, eu sempre passava a impressão de ser uma pessoa forte, mas naquela cama eu deixava meu lado inseguro e melancólico vir à tona em forma de lágrimas.
Ao deitar naquela cama eu me perguntava se realmente era feliz como achei que seria quando realizasse meu maior sonho.
Quando acordei no outro dia, minha mãe e minha tia já me esperavam para o café da manhã com a mesa posta.
- Bom dia, flores do dia! - saudei me sentando.
- Olha só, alguém acordou de ótimo humor. - falou titia.
- É o cheiro de pão de queijo caseiro que me enche de bom humor!
- Animado para o show de hoje?
O show era duplo. Devido à grande procura de ingressos, concordei em me apresentar duas noites seguidas e passar um tempinho a mais em Belo Horizonte.
- Sempre. Nunca estou desanimado para um show. Teve uma vez que eu estava gripado, mas subi no palco e passou!
- É o prazer de fazer o que se gosta. - comentou minha mãe.
- Deve ser mesmo.
- Mas você parece meio tristinho, meu filho! - Ela falou mas já sabendo o que era.
- Não estou conseguindo ser feliz sem ele, mãe! Eu preciso demais dele. Ele era o meu coração e eu não tenho como viver sem um coração.
- Ele está aqui, meu querido! - disse minha tia.
Eu desabei em choro.
O meu anjo de olhos azuis! O amor da minha vida! O meu Lipe!
Passei o resto da manhã com elas, almocei com Zeca e Bruno e à tarde passei o som no teatro. À noite, horas antes do show, eu fui chegando ao Palácio das Artes e, pelo vidro do carro, vi um garoto loirinho, branquinho, aparentando não mais do que quatorze, magro, escorado na entrada, esperando a hora do show.
Não havia razão para isso, já que tinha lugares marcados, ou seja, não precisava ficar na fila para ficar na frente do palco.
O garoto se virou para o vidro do carro, e mesmo o vidro sendo muito escuro, ele pareceu ter me reconhecido.
Ele abriu um sorriso largo e infantil, que combinava com o brilho dos seus olhos verdes. Sem saber o porquê, ou se ele veria, sorri de volta, enquanto o carro se dirigia aos bastidores. Aquele garoto me lembrava alguém, mas eu não conseguia me lembrar quem; como se fosse o habitante de um passado remoto.
Quem era aquele garoto?