Como eu poderia esquecer? Eu tinha pedido a ela para investigar o passado de Mariana.
- O que você conseguiu? - Perguntei curioso.
- Consegui extrair informações de alguns ex-amigos dela daqui de Belo Horizonte e alguns empregados da família.
- Descobriu para que ela vai com tanta frequência, escondida, a Belo Horizonte?
- Aham, descobri. Ele vai a um psicólogo.
- Isso não é uma surpresa. Ela é doida.
Ela deu um suspiro estranho, parecia estar se preparando para contar alguma coisa incômoda.
- Bom, eu consegui me infiltrar no escritório do tal psicólogo, inventei uma história para a secretária dele e ela me deixou ler a ficha da Mariana.
- Sério? Isso não costuma ser confidencial?
- Sim, mas como eu disse, sou muito boa. - Falou dando uma risada nervosa.
- E o que você descobriu?
Ela parou de falar como se estivesse reunindo coragem para falar. Estranhei sua atitude.
- Renata?
- Ela foi diagnosticada com Transtorno de Personalidade Antissocial.
- Renata, esses termos médicos para mim são como grego.
- Bernardo, Mariana é uma sociopata.
Meu queixo caiu. Sociopata? Sempre suspeitei que ela tinha um parafuso a menos, mas não imaginei que chegava a tanto. Sempre pensei que ela fosse má, rancorosa e vingativa, mas agora eu via mais: ela era doente, e uma doente perigosa.
- E tem mais Bernardo, muito mais...
Enfim eu conseguiria entender Mariana, aquela menina que se apresentou doce e compreensiva, mas se transmutou numa criatura má e sem escrúpulos. Quem era Mariana afinal?
(...)
Sexta-feira, 28 de dezembro de 2007
Eu dirigia velozmente, com pressa de chegar a Belo Horizonte. Minha família e o pessoal da banda estranharam essa minha viagem repentina, ainda mais porque eu não dei qualquer informação sobre o motivo dela. As coisas que Renata havia me dito sobre Mariana não saíam da minha cabeça. Ainda era difícil de acreditar como uma coisa daquela conseguiu ser escondida por tanto tempo, mas se tornava plausível quando se levava em consideração a influência da sua família. Eu tinha arquitetado um plano e ele estava me aterrorizando, mas primeiro de tudo eu tinha que ouvir da própria Renata a história toda. Chegando a Belo Horizonte, fui direto para o apartamento da minha amiga, que já me esperava.
- Você não veio correndo pra cá, né? - Falou, já me repreendendo. - O caminho de Morro Velho até aqui é muito perigoso.
Me sentei no seu sofá, impaciente.
- Não, Renata, vim tranquilo. - Menti. - Agora me conta essa história direito.
Ela foi até uma mesa, pegou uma pasta com papéis e recortes de jornais e me entregou.
Passei o olho rapidamente em tudo, confirmando o que ela havia me contado. Eu ainda estava em estado de choque. Renata começou a me explicar:
- Foi por isso que Mariana se mudou para Morro Velho poucos meses antes de você sair de lá, ela estava fugindo.
- Da polícia?
- Não, da opinião pública.
- Me conta a história desde o início.
Ela suspirou alto e começou:
- Bom, a família da Mariana é bem influente e conseguiu calar os principais jornais. A única fonte praticamente foi o depoimento da mãe do tal Guilherme a um jornalzinho mixuruca. Esse Guilherme Gutierrez, um rapaz de classe média de 31 anos de idade, começou a se relacionar com Mariana quando ela tinha apenas treze. O cara era casado e tinha dois filhos pequenos na época.
Eu ouvia atentamente e estupefato a história.
- Segundo a mãe dele, foi Mariana que o seduziu. Ele ficou louco por ela e largou toda a família para viver com ela. Chegou ao ponto de ir até a casa da família dela pedir permissão para namorá-la.
Lógico que eles disseram não e o puseram para correr, mas ele não se deu por satisfeito. Os dois combinaram de fugir juntos. A primeira e última parada daquela fuga foi o apartamento dele. A partir daí a história tem duas versões.
Fechei os olhos absorvendo as palavras de Renata.
- Segundo Mariana, e foi no que a polícia acreditou, Guilherme tentou estuprá-la, e agindo em legítima defesa ela lhe deu uma facada nas costas.
- Meu Deus!
- Agora, a mãe dele, não satisfeita com o resultado do inquérito da polícia, que culpava o filho pela própria morte, contratou um detetive particular. - Renata tirou da pasta um documento longo e me entregou. - Esse investigador concluiu que, pela ferida e pela posição do corpo, a história de Mariana não batia. Não havia sinal de luta. Tudo levava a crer que ela o esfaqueou pelas costas quando ele menos esperava.
- E qual a versão verdadeira?
- Mariana é a única que sabe. A mãe de Guilherme ainda tentou reabrir o processo, mas a família de Mariana é poderosa, a começar pelo teu ex-sogro, pai do Felipe e tio da ruiva.
Tudo acabou arquivado e a mãe da vítima desistiu.
Fugindo das fofocas, Mariana foi com os pais para Morro Velho.
Um médico recomendou que ela se tratasse com um psicólogo por causa do trauma e foi aí que ela foi diagnosticada como sociopata, mas isso é mantido em segredo mesmo dentro da família.
Eu ainda estava em choque com a história toda. Mariana assassinou uma pessoa. Ela era realmente doente, não tinha escrúpulos. Agora eu via o risco que eu corri esses anos todos com ela nutrindo raiva de mim. Mais do que nunca, eu precisava agir e neutralizá-la.
- Obrigado, Rê! Já estou indo. - Falei me levantando e lhe dando um beijo na bochecha. - Obrigado pelas informações.
- O que você vai fazer agora, Bernardo?
- Resolver esse problema com Mariana. Tenho um encontro marcado.
- Com ela? - Falou assustada. - Você acabou de ouvir que ela é louca, não vá provocá-la.
- Não se preocupe, não é com ela que vou me encontrar. Vou me encontrar com alguém mais sem caráter ainda e o único capaz de parar Mariana.
- Quem?
- O pai do Lipe.
Fábio, o irmão mais velho de Felipe, tinha concordado em me levar ao seu pai quando liguei mais cedo. Ele fez perguntas, mas preferi não entrar em mais detalhes. Estranhou eu querer conversar com seu pai depois de tantos anos, mas deve ter estranhado ainda mais o lugar que combinei para ele me buscar: o cemitério.
Enquanto ele não chegava, me dirigi ao túmulo de Felipe. Eu o visitava ali todo ano na data do seu aniversário, em abril. Nunca faltei e nunca vou faltar. E o visitava também todas as vezes que ia a Belo Horizonte.
Eu me esquecia do mundo e de coração limpo e leve me sentava ao lado da placa que continha seu nome, cravada no chão. Colocava um ramo de flores do lado e passava horas lhe contando as últimas novidades sobre minha vida.
Mais do que estranho, era um ritual triste, um longo e mórbido monólogo. Eu não era uma pessoa muito espiritual, e às vezes eu quase não acreditava que Felipe realmente me ouvia ali, mas era o mais próximo dele que eu chegaria novamente. Às vezes também eu sentia o seu cheiro à minha volta, principalmente quando estava sozinho em algum lugar. Isso me fazia pensar o contrário e acreditar que ele estava comigo.
- Oi, meu amor! - Falei e não esperei uma resposta.- Sabe, aconteceu muita coisa desde que vim te visitar pela última vez com Rafinha. Mas não é sobre isso que eu vim te falar. Não vim te contar novidades, vim reclamar com você. - Minha voz já estava embargada com o choro. - Por que você tinha que morrer? Por que tinha que me deixar aqui sozinho nesse mundo no qual eu me sinto cada vez mais perdido? Se você estivesse aqui, seria tudo diferente! Eu não teria que fazer escolhas impossíveis, você iria me acompanhar para onde quer que eu fosse cantar como me prometeu, lembra? - Com você seria tão mais fácil! - Eu chorava e gritava. - Eu te amo, vou te amar até meu último dia, mas me perdoar eu não consigo, Lipe. Nunca vou me perdoar por não ter te protegido como prometi. E agora estou eu aqui, abandonado.... - Me levantei enxugando as lágrimas que molhavam meu rosto. – Estou sofrendo demais sem você, Lipe. Vou viajar por um ano e estarei longe. Mas venho no seu aniversário em abril. Venho escondido e sozinho, mas estarei aqui com você. Te amo mais que tudo. Adeus!
Me virei para ir embora, dei os primeiros passos, mas voltei. Me abaixei até sua lápide, beijei minha mão e a levei carinhosamente até a placa com seu nome.
- Até abril, meu amor! Te amo mais que tudo nesse mundo...
Desci a colina, na qual Felipe estava enterrado, perdido nos mais diversos pensamentos. Fábio já me esperava lá embaixo. Nós não nos víamos com frequência, mas acabávamos nos encontrando todo aniversário de Lipe naquele cemitério ao lado de sua lápide e trocávamos novidades. Ele era um bem-sucedido advogado com mais ou menos trinta anos e casado. Estava de terno cinza, formal como sua profissão exige, tinhas os cabelos bem penteados e sem barba nenhuma. Uma ou outra ruguinha já denunciava sua idade. Ele tinha mudado muito com o passar dos anos, só os olhos continuavam os mesmos: aqueles brilhantes olhos azuis tais quais os de Felipe que eu tanto amava. Meu rosto devia denunciar que havia andado chorando e eu me envergonhei dele me ver naquele estado.
- Eu também choro quando venho visitá-lo. - Falou como se me confortasse.
Ri sem graça e, impaciente para resolver aquilo de uma vez, tratei de lembrá-lo do motivo de tê-lo chamado ali.
Quando eu estava com o Lipe não gostava de ter qualquer outra pessoa comigo. Gostava de estar sozinho com ele. Apenas Rafinha já havia ido ali comigo. Nesse dia ficamos abraçados e sentados na grama conversando com Felipe. Rafinha também conversou com ele. Rafinha entendia meus sentimentos. Ele também era especial em minha vida.
- Vamos?
- Vamos. - Respondeu me guiando até o estacionamento, de onde saímos juntos, cada um no seu próprio carroOs pais de Felipe moravam numa cobertura próxima à Praça da Liberdade, uma região riquíssima. Fábio parou seu carro em frente ao prédio e eu estacionei logo atrás. Algumas pessoas me olharam curiosas e meu ex-cunhado já foi logo me guiando para dentro do prédio depois do porteiro, reconhecendo Fábio, abrir o portão. Entramos no elevador e ele apertou o botão do andar desejado.
- Ainda não entendi o que você quer com ele. - Falou Fábio.
- Tem uma coisa que só ele pode fazer por mim.
- Você sabe que ele não gosta de você e que ele não vai te fazer favores.
- Digamos que ele vai ajudar tomando um pequeno empurrãozinho...
- Você vai ameaçar ele? - Perguntou Fábio surpreso. - Com o quê?
- Você vai ver.
O apartamento dos meus ex-sogros era amplo e requintado, exalando todo o poder e dinheiro dos seus donos. A empregada nos recebeu e disse que Paulo nos esperava no escritório. Fábio me guiou até o cômodo e me fez entrar. Ele estava sentando atrás de uma mesa que devia servir de escrivaninha.
O pai de Felipe já tinha os cabelos grisalhos e o rosto marcado por algumas rugas. Seu rosto parecia ainda mais severo do que eu me lembrava. Seu olhar era impossível de se decifrar. Sua expressão era fria, sem nenhum sentimento.
De modos grosseiros, fez sinal para que eu sentasse. Puxei a cadeira para sentar e Fábio foi fazer o mesmo, mas o pai o impediu.
- A conversa é entre nós dois. - Falou com sua voz de trovão.
Fábio tentou protestar, mas assenti com a cabeça que eu ficaria bem e ele não precisava se preocupar.
Sem opção, ele saiu e fechou a porta nos deixando a sós.
Eu e Paulo nos encarávamos tentando um por medo no outro. Em nenhum momento deixei transparecer, mas aquele homem me assustava mais do que qualquer outra pessoa no mundo.
Eu me lembrava das coisas sobre ele que Lipe me contava e da forma que ele reagiu, friamente, à morte do filho e meu medo aumentava. Mas eu tinha que ser forte. Por mim, por Vítor e pelo meu futuro.
- Confesso que só aceitei te receber devido à minha imensa curiosidade. - Falou sem parar de me encarar. - O que você poderia querer comigo?
- Um favor. - Respondi lutando para minha voz se manter firme.
- E qual seria? Que eu confirme para os jornais como você corrompeu meu filho?
A forma desdenhosa como ele falou aquilo acendeu uma fagulha de raiva em mim, mas me segurei. Eu não podia perder o controle justo agora.
- Não, mas tem a ver com o assunto. Sabe quem vazou a história para os jornais? Sua sobrinha Mariana.
Ele não demonstrou qualquer reação com aquela notícia, nem surpresa, nem descrença, nem raiva, nem nada.
- E você quer... - Falou começando a ficar impaciente.
- Que você a pare. Durante vários anos e de diversas maneiras, ela vem atrapalhando minha vida, pelos motivos que você deve ter lido nos jornais. Enfim, quero que você a pare.
Ele gargalhou alto quando terminei de falar, o que só me deixou mais nervoso.
- E como você sugere que eu faça isso? - Perguntou irônico ainda rindo.
Decidi entrar no seu jogo e respondi friamente.
- Não sei, você pode mandá-la, com tudo pago, fazer um curso no exterior. Seria um ótimo jeito de eu me livrar dela.
Ele se calou quando viu que eu falava sério.
- Por que eu deveria fazer qualquer favor para você?
- Não é um favor, é uma troca. Não quero e nem preciso de favor seu para nada. - Ele ficou danado, mas logo agiu friamente de novo.
- Ah, uma troca! - Falou novamente irônico. - E o que você pode fazer por mim em troca do que me pediu.
- Não posso fazer nada por você.
- Então?
- Deixa eu te contar o que eu posso não fazer por você.
Ali começou o meu show. Me levantei da cadeira com um sorriso discreto no rosto, me apoiei na mesa o encarando bem de perto e falei:
- Fiquei sabendo que o senhor vai concorrer a prefeito de Belo Horizonte nas eleições do ano que vem.
Ele me observava atento, não mais achando graça naquilo.
- É um grande desafio. Ganhar uma eleição numa cidade tão grande é uma tarefa árdua. Há vários fatores como aliados políticos, propaganda eleitoral, resultados da administração anterior e, principalmente, a opinião pública. Você ficaria impressionado se descobrisse como um artista como eu pode influenciar a opinião pública. Muito mais do que seu dinheiro, até porque dinheiro também eu tenho de sobra e nem preciso me valer dele nesse momento aqui. Mas o que acha que aconteceria se, no meio da sua campanha, eu me dedicasse, vinte quatro horas por dia, a te difamar? - O rosto dele abandonou a impassividade e demonstrava uma raiva visível - Seria mais difícil ganhar, né? Talvez até impossível, pois eu sou muito famoso. Muito mais do que você ou sua laia toda junta. O Brasil todo me conhece. Belo horizonte inteira me tem como ídolo e o mundo já está me conhecendo também. Seria bom ser educado comigo, heim?
- Olha aqui, moleque! - Gritou, se levantando e apontando o dedo para mim, ameaçadoramente. - Você tem ideia de com quem está mexendo?
- Tenho, te conheço melhor do que você pensa. Você é uma pessoa capaz de se casar por dinheiro e de abandonar um filho em nome da sua carreira política. E não ouse vir com ameaças. Não sou mais um adolescente amedrontado, sou um homem mais poderoso que você. Na verdade bem mais poderoso e não pensaria duas vezes em abrir a boca para a imprensa internacional te colocando até como provável mandante do assassinato do meu amor, o Felipe, em um mal explicado caso de assalto. Seria uma verdadeira tragédia se isso acontecesse. É claro que eu não ia aparecer nessa lama toda e assim nunca poderia ser processado por difamação, calúnia ou sei lá o que mais, mesmo que seja a verdade, né? E isso é pouco perto de outros assuntos sujos escondidos até dentro da sua família.
Ele me olhava com raiva que me dava medo, mas eu não demonstrava. Eu tinha conseguido meu objetivo: colocá-lo contra a parede para que ele me ajudasse a neutralizar Mariana.
- É só isso que eu queria lhe dizer, o recado está dado. - falei. - Sinceramente, não espero lhe ver nunca mais.
Deixando-o em pé ainda me olhando com ódio, saí e encontrei Fábio sentado em uma poltrona me esperando.
- Deu certo? - ele me perguntou. Já tinha explicado por alto o plano para ele antes.
- Sim. Ele não me deu uma resposta afirmativa, mas ele não vai se negar em me ajudar, não tem opção.
- Isso é bom. - Falou me guiando até a saída do apartamento.
- Vou precisar de mais um favor seu, se não for muito abuso.
- Claro que não é, o que você quer?
- Que você ligue para sua prima MarianaEm pouco mais de meia hora, eu estava estacionado em frente à casa dos avós de Felipe. Aquele lugar me trazia a doce lembrança do primeiro dia em que eu e Felipe ficamos juntos enquanto sua festa de aniversário acontecia do lado de fora da casa. Só fui despertado daquele meu pequeno momento de nostalgia quando Mariana saiu pelo portão acompanhada de Fábio.
Ela se mostrou surpresa com o meu convite para conversar, mas concordou. Fábio encostou no seu carro, logo à frente do meu e ficou olhando para o nada, enquanto sua prima entrava no meu carro e sentava ao meu lado no banco do passageiro.
Sua simples presença me causava um mal-estar tremendo, mas eu precisava ser forte. Se ela visse qualquer sinal de fraqueza da minha parte, usaria disso para me vencer. Seria nossa batalha final, e seria travada com ambos os lados em pé de igualdade.
- Então você andou se encontrando com alguns jornalistas para conversar sobre mim, né? - Falei sorrindo falsamente.
Ela sorriu maldosamente. Nós dois nos encarávamos com intensidade. Não me lembro de nenhuma outra ocasião em que estávamos tão próximos. Seu perfume me enjoava e irritava meu nariz. Eu estava realmente passando mal devido à sua presença.
- Você viu? - Falou irônica. - Não achei que fosse causar tanto impacto.
- Pois é, mas eu consegui reverter o dano, não se preocupe. Afinal sou muito mais famoso e importante do que você e sua laia toda.
- Não me preocupo, quem deveria se preocupar era você e aquela bicha do seu namorado, pois eu não tenho a mínima intenção de parar.
- Ah, mas você vai parar, senão eu vou devolver na mesma moeda.
- Ah é? E o que você pretende fazer? - Perguntou ainda sorrindo, ainda irônica.
- Levar isso aos jornais. - Falei jogando a pasta com o dossiê de Renata sobre Guilherme Gutierrez em seu colo. - Mas não vai ser nos jornalecos que você foi, não. Vai ser na imprensa nacional e internacional também. Comigo o nível é bem mais forte.
Ela pegou a pasta, abriu e ao começar a ler, seu rosto foi perdendo a cor e seu sorriso perdendo a sustentação. Foi minha vez de sorrir. Agora eu estava com a vantagem, eu ditava as regras.
- Onde você conseguiu isso? - Perguntou gritando já perdendo o controle.
Fábio nos observava do lado de fora pronto para agir se preciso.
- Primeiro deixe-me abrir os vidros, pois você fede. Quanto à sua perguntinha, não te interessa! E tem mais. Sociopata, Mariana? Jura?
Sua expressão de raiva se intensificou.
- Como você descobriu essas coisas?!
- Já falei, não te interessa.
- Pouco me importa, já foi tudo arquivado. - Falou se fingindo, muito mal, de calma.
- O assassinato de Guilherme Gutierrez ainda não prescreveu. E agora sua família não vai poder te ajudar a encobrir, pois seu tio Paulo está nas minhas mãos, também sob ameaça. E se faltou dinheiro para a família manter o processo, posso te garantir que dinheiro é o que eu mais tenho sobrando. Mas é muito mesmo, minha filha. Muito mais que sua corja toda junta.
- Seu filho da pu... - Falou já vindo para cima de mim, mas eu lhe dei um belo de um tapa na cara e a empurrei de volta para seu lugar.
- Se encostar um dedo em mim de novo, eu procuro um advogado agora!
Ela me olhava despenteada e com os olhos de um assassino. Confesso que se Fábio não estivesse assistindo tudo, eu teria medo do que ela poderia fazer comigo.
- Escute bem o que vou te falar. - falei me recompondo. - Eu não quero ver sua fuça nunca mais. Você vai esquecer que eu, Felipe, Vítor ou qualquer um dos nossos parentes existe. Entendeu? De preferência se mude de cidade, de estado ou de país, melhor ainda se for de continente.
Seus olhos se encheram de lágrimas, mas ainda transbordavam ódio.
- Você tem ideia do que fez comigo? - Falou conquistando minha atenção. - Vítor era minha chance de recomeçar do zero. Eu ia refazer minha vida ao seu lado e ser feliz. Eu tentei ser uma ótima amiga para você, pois ele demonstrava gostar muito de você. Mas o que você fez? Me apunhalou pelas costas! Destruiu minha vida!
Fiquei com pena dela. Não por causa da sua história que não chegava nem perto de justificar seus atos, mas por ela ser uma pessoa tão fraca a ponto de fazer tudo que fez por mero revanchismo.
- Hahaha! - Ri sem vontade. - Não vou nem tentar comparar o dano que eu te causei ao que você causou. Vamos deixar implícito.
- É isso que você quer? Pois bem, seu viado! Vá viver sua vidinha cor de rosa feliz ao lado daquele outro viado! Já que o outro viado morreu... Aliás, morreu e você ainda não se deu conta disso, né? Vive chorando pelos cantos feito um idiota.
- Vivo chorando por amor. O amor verdadeiro que perdi. Um sentimento que você não conhece e pelo jeito nunca vai conhecer já que é uma pobre coitada.
- Nem sei como Vítor te atura colocando aquele defunto como melhor que ele.
- Bom, minha filha - falei com desdém - ele sabe que mesmo morto, Felipe sempre vai ser o dono do meu coração. Nunca ninguém vai mudar isso e eu estou pouco me lixando para a opinião de quem quer que seja. Sou assim e vou continuar sendo e quem não gostar é só sair por onde nem entrou ainda.
Ela se espantou com o que eu disse. Mas eu sou assim e dane-se o mundo. Se isso é prejudicial a mim e deveria tocar minha vida pra frente, deixo claro que pouco me importo com as opiniões. E se quem gosta do passado é museu, digo que meu coração é um. E está morto e seco.
Então continuei pelo que ela havia falado:
- E eu devia te enfiar a mão na cara de novo para você aprender a respeitar o Felipe.
E não devia te contar isso, mas já que estamos num momento sinceridade: eu e Vítor não vamos ficar juntos, nossas vidas não combinam. E a minha vida não é uma vidinha, minha filha. Você está falando com um dos melhores do mundo no que faço. Quem é você e sua família para chegar aos meus pés. Ou aos pés do Felipe, o meu verdadeiro amor! E quem me entendia de verdade e se não for pelo que senti e sinto por ele ainda, a vida não tem sentido para mim.
Ela começou a rir e eu a encarava como se assistindo a um filme muito interessante. Ela era louca.
- Desculpe, mas eu não consigo fingir tristeza. Vocês mereceram.
- Pois bem. - Falei encerrando o assunto. - Você também mereceu. Nossa guerra acabou.
- E quem venceu afinal?
- Ninguém. Nós três estamos solteiros e infelizes, nós três perdemos. Devíamos ter previsto isto desde o começo: ninguém sai vencedor de uma guerra, apenas menos ou mais ferido. Mas eu estou ferido somente pelo Felipe. Só pelo meu anjo de olhos azuis e que eu sempre amarei até a minha morte. Esteja com quem eu estiver, essa pessoa saberá disso e não importa; ele é o meu verdadeiro amor. Coisa que você nunca teve e nunca terá.
Nesse momento senti o seu cheiro à minha volta e meus olhos se encheram d’água... Felipe estava ali comigo me apoiando e me defendendo conforme havia me prometido. Ele encheu meu coração de paz naquele momento horrível. Ele queria que eu fosse o Bernardo de sempre. Carinhoso e humilde.
Num sinal de descrédito, ela saiu do carro sem dizer mais nada e bateu a porta com força. Mas eu não podia terminar tudo assim. Saí do carro e chamei por ela, que se virou novamente para mim.
- Para que não terminemos magoados um com o outro, sugiro que nos peçamos desculpas mutuamente.
Ela riu desdenhosa, mas eu continuei sério a olhando.
- Se você quer. - Falou. - Me desculpe por todo o mal que te causei na vida; eu não tinha noção do que estava fazendo! - completou irônica.
Sorri e voltei a entrar no carro.
Ela veio até a minha janela e falou:
- É a sua vez, não vai me pedir desculpas?
- Não consigo perdoar tão fácil, não sou uma pessoa tão boa quanto você é. Adeus!
E saí cantando pneu, quase a atropelando. Ainda pude ouvir Mariana gritando alguns palavrões e gesticulando agressivamente pelo retrovisor. Foi a última vez que a vi, graças a Deus.
Pedi desculpas em pensamento a Felipe por não ter sido superior, mas fui honesto nos meus sentimentos e palavras.
Eu dei o troco e escapei com vida. Aquele foi meu momento de glória, o momento que me livrei de Mariana. Era o fim da minha venenosa relação com ela.
No fundo, nossas ações foram parecidas: acuados, feridos, a fera que vivia dentro nós dois mostrou suas garras e buscou ferir igualmente seu carrasco.
Infelizmente, esse jogo de se machucar e se vingar logo em seguida não tem fim, é um ciclo vicioso e, uma vez dentro dele, é preciso muita força de vontade para interrompê-lo.
Só consegui interromper o meu usando de uma força que não tinha para enfrentar Paulo e Mariana num espaço tão curto de tempo.
A própria ciência diz que em casos extremos podemos adquirir momentaneamente força física extrema, grande resistência ou super velocidade, como verdadeiros super-heróis.
Isso só explica o que já sabia: uma fera ferida é capaz de superar até a si mesma para ferir quem lhe feriu.