(Bernardo fala)
17 de janeiro 2010
Eu e Henrique caminhávamos juntos em Chicago, onde eu tinha feito um show na noite anterior. Era uma cidade muito fria e por estar no alto do inverno, as ruas estavam cobertas com vários centímetros de neve. Conversávamos sobre bobagens quando ele parou de repente e pulou na neve até que ela lhe cobrisse até os joelhos.
- O que foi? - Perguntei assustado com sua reação.
- Você já fez algum boneco de neve? - Perguntou rindo.
- O quê? - Falei rindo também.
- Boneco de neve. Sempre vi pela televisão e morria de vontade fazer, mas não tinha tempo. Vamos fazer um?
- Ficou doido? Imagina o mico um cara de vinte e cinco anos fazendo bonecos de neve.
- Ah, qual é Bernardo? Você precisa relaxar um pouco, está muito tenso.
Ele tinha razão, mas errou o verbo: eu não estava tenso, eu era tenso.
Eu parecia envelhecer mais rapidamente do que o tempo passava. Eu ia ficando mais sério, mais estressado com as coisas à minha volta, passei a me calar menos em relação às injustiças da vida.
Até a minha música sofreu alterações.
Se antes era comum eu cantar mais canções de amor, de amizade ou de desilusão, sempre com arranjos mais delicados, agora eu preferia cantar músicas mais pesadas, que falassem da complexidade que era o ser humano, do meu país e seus problemas, e até do meu autoexílio. Profissionalmente isso era ótimo, pois aumentou a qualidade das minhas músicas, mas atrapalhava minha vida pessoal. O único que quebrava essa minha barreira era Henrique, que conseguia derreter o coração mais gelado, não que esse fosse meu caso.
- Vem Bernardo.
- Não, Henrique, nós temos que... - Mas antes de eu terminar ele já tinha me puxado e me feito cair de cara na neve.
Ele ria como uma criança travessa e acabei rindo também, não conseguindo ficar sério e repreendê-lo. Como eu já estava todo sujo de neve, pagando mico, o que custava ir um pouco mais além e fazer um boneco de neve? Fizemos, e ficou bonito! Foi uma tarde divertidaFui buscar Henrique na porta do edifício onde funcionava uma grande editora onde ele havia feito uma sessão de fotos.
Ele desceu todo contente por ter recebido seu dinheiro. Ele começava a se estabilizar na carreira, mas ainda precisava da minha ajuda.
Me deu o braço e seguimos caminhando em direção a uma estação de metrô.
Bom, eu estava caminhando, ele estava saltitando.
- Por que você não canta? - Ele falou mudando o assunto de repente.
- Oi?
- Por que você não canta?
- Aqui?
- É, por que não?
- Por que sim?
- Porque estou muito feliz e você está feliz por mim!
- Sem chance! - Falei rindo.
- Qual o problema? Tem medo de que te achem maluco? Esquece, ninguém é normal nessa cidade.
- Eu não vou cantar no meio da rua.
- Ah, por favor, por favor, por favor!
- Ok, ok, ok! - Falei tentando calá-lo, mas ainda rindo.
O que me impedia de cantar ali no meio da rua? Eu tinha afinação de sobra, e mesmo se não tivesse, era meu direito.
Eu estava realmente feliz por Henrique, por que não extravasar essa felicidade?
Comecei a cantar bem alto a primeira música que me veio à cabeça, chamando a atenção de quem passava:
“Imagine me and you, I do
I think about you day and night
It's only right
To think about the girl you love
And hold her tight
So happy together
If I should call you up
Invest a dime
And you say you belong to me
And ease my mind
Imagine how the world could be
So very fine
So happy together
I can't see me lovin' nobody but you
For all my life
When you're with me
Baby the skies will be blue
For all my life
Me and you
And you and me
No matter how they tossed the dice
It had to be
The only one for me is you
And you for me
So happy together
Me and you
And you and me
No matter how they tossed the dice
It had to be
The only one for me is you
And you for me
So happy together
So happy together
How is the weather
So happy together
We're happy together
So happy together...”
(So happy together - Garry Bonner/ Alan Gordon)
Algumas pessoas em volta até chegaram a me aplaudir. Henrique ria divertido com o que tinha acabado de ter me feito fazer.
E eu? Eu me sentia mais leveEu tentava falar com Zeca por telefone, mas ele parecia estar me evitando. Tinha algo estranho com minha agenda. Depois dos quatro dias que eu tinha reservado para ir ao casamento dos meus pais, não havia mais nenhum show marcado, o que contrastava com a lotação máxima das últimas semanas. E parecia que estavam todos combinados, pois davam desculpas esfarrapadas para o sumiço de Zeca e diziam não entender o porquê da confusão com minha agenda de shows.
Desconfiei até que Henrique pudesse estar envolvido, pois ele riu ao vir minha cara de frustração, mas descartei ao lembrar que eles não tinham contato nenhum, nem se conheciam.
Eu ia apresentar Henrique à minha família na festa dos meus pais. Enfim, eu tinha a leve impressão que estavam armando alguma coisa para mimEu e Henrique estávamos no JFK, o principal aeroporto de Nova York, esperando pelo voo que nos levaria para o Rio de Janeiro e de lá para Belo Horizonte, onde meus pais se “recasariam” no dia seguinte.
Mas alguma coisa parecia errado, Henrique não parava quieto. Ele não se aguentou por muito tempo e soltou a bomba.
- Bernardo, eu quero terminar com você.
- O quê? - Falei olhando surpreso para ele.
- Você ouviu.
- Mas por quê? - Perguntei ainda incrédulo.
- Porque minha missão está cumprida e eu tenho que te deixar livre agora.
- Como assim? Do que diabos você está falando?
- Quando Beatriz veio aqui no natal, ela me deu uma missão, de fazer você reencontrar a felicidade, fazer você se soltar mais, aproveitar mais a vida.
E eu consegui. Com pequenas coisinhas, tipo o boneco de neve em Chicago ou você cantando alto na rua Nova York.
Você está mais leve, Bernardo, está pronto para ser feliz com Vítor.
- Mas, Vítor, Beatriz...
Minha cabeça estava uma bagunça. Foi tudo um plano? Beatriz arquitetou tudo aquilo?
Bom, eu realmente me sentia mais leve novamente, mais feliz, mas não imaginava que isso tivesse sido planejado nos mínimos detalhes. Eu devia ficar puto com aquilo, mas fiquei agradecido.
Agradecido por ter amigos como Beatriz e Henrique, que te fazem o bem, mesmo que seja pelas suas costas.
- Eu... Eu não sei o que dizer.
- Pode ser um muito obrigado. - Ele respondeu sorrindo.
- Obrigado por ter me feito tão bem assim, você não tem ideia de como ajudou. Mas com Vítor a questão é outra. Não sei se vamos ficar juntos.
- Digamos que, enquanto eu estava te treinando, Beatriz estava treinando Vítor.
- Mas...?
- E tem mais. Todos sabiam disso, Bia é uma boa estrategista. Armou com Zeca para esvaziar sua agenda de shows, ficando mais fácil sua permanência no Brasil para resolver esse assunto depois da festa.
Eu sabia que estavam armando alguma coisa, só não tinha ideia da complexidade do plano!
Meus amigos...
Eles se uniram para que eu e Vítor nos reconciliássemos. Ri bobo com a atitude deles.
- Pelo que fui informado, Vítor fez certas concessões, mas você entende que vai precisar fazer também para que isso dê certo.
- Sim, mas...
- Mas nada, chega de mas. Você vai tentar que dê certo, e vai tentar para valer, ouviu?
- Uhum. - Falei rindo.
- No mais, tudo o que eu tenho que fazer é te agradecer por todo esse tempo cuidando de mim.
- Quem estava cuidando de quem mesmo? - Perguntei fazendo ele rir.
- Nunca vou te esquecer.
- Nunca vou te esquecer também. - Respondi. - Mas o que você vai fazer agora?
- Aí que vem a melhor parte, Beatriz vai me ajudar a arranjar um emprego como ator. E até eu me estabelecer vou morar com ela.
- Isso é ótimo!
- Pois é, parece que a vida de todo mundo vai se acertando, né?
Eu não me aguentava de ansiedade quando o avião pousou no aeroporto de Confins em Belo Horizonte.
Lógico que eu estava emocionado por voltar para a cidade que eu me acostumei a chamar de lar e rever todos os meus familiares e amigos, mas o que estava fazendo meu coração bater mais rápido era o reencontro com Vítor.
Como seria agora? Como seria revê-lo? Eu acho o amava com a mesma intensidade ou até mais, pois a saudade tem o poder de intensificar certos sentimentos.
Mas que garantias eu tinha que seria diferente dessa vez? Nenhuma.
Apenas uma sensação de que simplesmente seria. Lá no fundo eu sentia que, qualquer que fosse o problema, nós resolveríamos.
Eu tinha esperança de um futuro melhor para nós dois. Eu iria lutar por esse amor com todas as minhas forças. Agora eu estava pronto para isso.
Chegamos a Belo Horizonte no início da tarde e a cerimônia já era à noite, ou seja, foi uma correria só.
Zeca nos buscou no aeroporto. Ele veio correndo para um abraço, mas lhe recebi com um tapa na cabeça para aprender a não agir pelas minhas costas. Ele riu e nem ligou.
Hospedou eu e Henrique na sua casa, onde Bruno já nos esperava. Deixei Henrique dormindo e fui encontrar meus pais, que se arrumavam em lugares diferentes. Meu pai estava uma pilha de nervos, nem parecia que era a terceira vez que se casava, duas com a mesma mulher.
Mamãe estava incrivelmente feliz. Estava linda num vestido longo apropriado para sua idade. Ela nem ligou para tradição, quis se casar novamente de branco.
- Mãe, eu não posso deixar de me sentir um pouco culpado. Se não fosse por mim vocês nem teriam se separado. - Desabafei.
- Que isso menino? - Falou como se me repreendesse. - Nos separarmos porque seu pai precisava se tornar uma pessoa melhor e se tornou.
Além do mais, se eu precisasse abandonar tudo para cuidar de você novamente, eu faria. Não me arrependo de nada.
Aliás, não quero mais falar de coisas ruins, hoje é um grande dia.
- Você está feliz, né, mãe? - Perguntei, enquanto minha tia e minhas avós acabavam de arrumá-la.
- Muito. Tudo parece estar no lugar certo. Até mesmo você, que pelo jeito não vai voltar para os Estados Unidos.
Vovó limpou a garganta alto como se a reprimisse por me revelar aquela informação. Elas também estavam no meio da armação de Beatriz!
- Vocês também estão envolvidas nisso? - Perguntei incrédulo.
- Claro! Todo mundo que te quer bem trabalhou por isso. - Falou minha tia - Está na hora do seu final feliz, meu querido.
- Obrigado gente...
Me emocionei com isso. Todos eles, todas as pessoas que gostam de mim, todas as pessoas que estiveram comigo na travessia estavam lá, me ajudando a encontrar meu final feliz.
Ali, naquele momento eu me senti amado.
Mas faltava uma pessoa. Acho que a mais importante de todas.
Saí correndo e sem dar explicações.
Fui visitar Felipe. Fiquei com ele um tempão chorando e falando com ele. Só nósVocê também está nisso, meu amor?
Senti o seu perfume à minha voltaTive que me arrumar depressa, pois já estava atrasado. A festa e a cerimônia iam ser num clube que eles alugaram, pois não permitiram que eles se cassassem na igreja novamente.
Não tive tempo nem de passar os olhos nos convidados e ver quem já estava no local. Quando digo isso, obviamente me refiro a Vítor.
Lógico que eu sabia que ele estava lá, era como se eu sentisse isso. Meu coração batia acelerado, pensando na hora de reencontrá-lo.
A saudade era imensa. Eu queria correr pelo salão e abraçá-lo imediatamente, mas eu tinha que me segurar. Tudo tinha sua hora, e aquela era a hora dos meus pais.
No salão, as cadeiras foram colocadas de forma que havia um corredor que levava ao lugar onde ficava o juiz que formalizaria a união.
Meu pai tremia de nervoso enquanto minha mãe esperava numa sala separada. Ajeitei a gravata do seu smoking, lhe dei um beijo na testa e ele entrou no salão de braços dados com sua mãe.
Todos se levantaram para ver. Ainda ergui a cabeça para tentar ver Vítor, mas era impossível porque estava cheio. Em seguida, entramos eu e minha avó materna de braços dados. A vontade de olhar para os lados procurando por ele era imensa, mas eu tinha que me segurar. “Só mais alguns minutos” eu falava para mim mesmo como um mantra.
Caminhamos pelo corredor até chegarmos no altar improvisado e nos separamos.
Só então me permiti olhar para os convidados.
Foi como um ímã.
A primeira pessoa para quem olhei foi Vítor. Ele não tinha mudado nada nos últimos dois anos. Ainda era lindo, loiro e tinha aqueles olhes verdes que eu tanto gostava. Só uma coisa parecia diferente: seu sorriso estava mais largo, mais alegre, mais honesto.
Sorri também por impulso.
Era a mais plena felicidade invadindo meu coração novamente.
Eu não conseguia parar de olhá-lo e sorrir. Eu não ouvi a marcha nupcial tocando, não vi minha mãe entrar na igreja com seu pai, nem ouvi o texto que o juiz leu ou os votos dos meus pais.
Também não vi quando eles se beijaram. As fotos e os vídeos registraram muito bem aqueles momentos.
Só que nenhuma tecnologia do mundo poderia reproduzir aquele sentimento entre mim e Vítor.
Sem falar nada, estávamos declarando nosso amor um ao outro.
Quando a cerimônia terminou e todos aplaudiram, eu achei que poderia correr para os braços do meu amor, mas meu avô me segurou e me fez assinar o livro como testemunha.
Aos poucos os convidados foram saindo em direção ao outro salão onde aconteceria a festa. Poucos foram ficando. Quando me dei conta, só havia três pessoas ali: eu, Vítor e Beatriz.
Eu e Vítor fomos caminhando lentamente em direção um ao outro, aproveitando cada fração de segundo daquele momento mágico.
Paramos um de frente para o outro. Ele passou os dedos levemente pelos meus cabelos, fazendo todo o meu corpo tremer ao sentir seu toque.
Eu conseguia me ver refletido no seu olhar.
Nossos rostos foram se aproximando até nossos lábios se tocarem. Foi um beijo inesquecível.
Não consigo descrever a parte mecânica, apenas o que senti: felicidade.
- Eu te amo... - falei pela primeira vez, quando nos soltamos.
- Você não imagina como eu sentia sua falta! - ele falou com lágrimas nos olhos.
- Eu também, me desculpe por tudo... Mas agora vai se diferente, eu sei que vai.
- Não graças aos esforços de vocês dois, né? - falou Beatriz.
Só então me lembrei que ela assistia à cena. Olhei para a minha amiga e ela tinha um meio sorriso no rosto. Era um sorriso de felicidade; ela estava feliz por mim. Corri até ela e a abracei com força tirando seus pés do chão.
- Você ficou louco? Me põe no chão!
- Obrigado, obrigado, obrigado!
- Me põe no chão!
- Você é a melhor amiga que eu poderia ter!
- Me põe no chão!
Depois de muito insistir a coloquei no chão. Vi que ela fazia força para conter um sorriso.
- Por que fez tudo isso, Bia? - perguntei.
- Porque te quero ver bem. Você faria o mesmo por mim se tivesse oportunidade.
- Como eu posso te agradecer?
- Não desperdiçando essa chance.
- Pode deixar, não vamos. - respondeu Vítor pegando na minha mão.
- Sério, Beatriz, não tenho como te agradecer. - falei.
- Não agradeça ainda. Vítor ainda tem uma coisa para te mostrar.
- O que vocês aprontaram mais?
- Bom, a gente vai dar uma fugidinha. - falou Vítor.
- Mas e a festa?
- Ninguém vai sentir nossa falta.
- Será?
- Você não vai se arrepender. Eu juro.
Seus olhos brilharam de um jeito diferente. Eles tinham aprontado alguma coisa enorme.
- Vamos! - E Vítor saiu me puxando para uma entrada lateral do local.
Ainda tive tempo de olhar Beatriz e vi que ela sorria.
Sorria sem disfarces como se quisesse demonstrar que aprovava o que estava acontecendo.
Ela queria me mostrar que estava feliz por mim.
Bendito foi o dia em que Beatriz caiu de paraquedas na minha vidaVítor dirigiu até um belo prédio na zona sul de Belo Horizonte. Fiquei olhando sem entender o motivo.
- Sua surpresa está lá dentro.
Mil coisas se passaram na minha cabeça sobre o que poderia ser, menos o que realmente era. Ele cumprimentou o porteiro de forma amistosa e apertou o botão do último andar.
- Quem mora aqui? - Perguntei não me aguentando mais de curiosidade.
Vítor respondeu com um sorriso sacana e logo eu entendi tudo. Soltei um gritinho abafado de surpresa e ele riu. Eu não acreditei que eles tinham ido tão longe.
A porta do elevador se abriu e Vítor me puxou pela mão até a porta de uma das coberturas. Rodou a chave e a porta cedeu, revelando um apartamento amplo e bonito, porém vazio.
- Eu não acredito que você fez isso! - Falei ainda estupefato olhando o apartamento.
- Fiz. - Respondeu sorrindo. - Bem-vindo ao nosso apartamento!
Ele tinha comprado um apartamento para nós dois! Uma cobertura! Sorri, mas confesso que foi devido à surpresa. Era muita informação de uma vez só.
- Como você...?
- Paguei as primeira parcelas. O resto das prestações a gente paga junto com o tempo. Aliás, vai ser assim com todas as nossas contas, tudo dividido por igual. Não quero ninguém sustentando ninguém.
- Mas morar aqui... E seu emprego?
- Não me pergunte como, mas Beatriz mexeu seus pauzinhos com um conhecido dela para que eu fosse transferido para a cidade vizinha. Dá para morar aqui e trabalhar lá. - A cidade vizinha é Nova Lima. Fica colada a BH e é área de mineração e extração de ouro até hoje.
- Mas e o meu trabalho? Eu não posso simples...
Quando eu ia começar a protestar ele me calou com um beijo. Confesso que estava tendo sim ataque de insegurança por estar indo morar com Vítor.
- Já conversei com Zeca. Você pode diminuir sua agenda de shows sem prejuízo à sua carreira. Vai ser até bom, porque me contaram que o senhor está trabalhando demais. Um mês por ano, nas minhas férias, vamos viajar para o exterior, onde você pode cuidar da sua carreira internacional enquanto passeamos. E quando você estiver morrendo de vontade de cantar, o seu pai disse que você é um convidado de honra em seu restaurante, aqui perto e que o palco é todo seu.
- Mas...
- Imagine só: você faz um show maravilhoso, porém exaustivo numa cidade qualquer. Pega o último voo da madrugada e chega em Belo Horizonte um pouco antes do amanhecer. - Ele foi falando e me abraçando carinhosamente. - Você vai me encontrar dormindo em nossa cama. Você tira a sua roupa, e cai exausto. Sentindo o colchão deslocar com seu peso, acordo, vejo que você chegou, lhe dou um beijo rápido e te abraço. Aninhamos embaixo das cobertas e assistimos juntos ao nascer do Sol atrás das montanhas por essas janelas enormes aqui...
Pronto, ele havia me ganhado. Não tinha argumento no mundo que vencesse aquilo. Só de imaginar aquele quadro que ele pintou para nós dois, eu já estava completamente entregue.
E sabe o que era melhor? A sensação de que agora daria certo e estávamos prontos para sermos felizes juntos.
Teríamos algumas briguinhas ainda? Claro, mas isso fazia parte de um relacionamento. O mais importante era ter aquela sensação de que, finalmente, está tudo no lugar.
O meu mundo voltou a girar no seu eixo certo, o que não acontecia a mais de dez anos.
Sorri feliz e ele entendeu muito bem o recado. Ele me pegou pela cintura, me tirando do chão, e me deu um daqueles beijos de cinema.
- Você vai morar comigo mesmo? - Ele perguntou todo bobo, como se ainda não acreditasse naquilo.
- Pelo resto da vida.
Voltamos a nos beijar e ficamos naquilo por muito tempo.
- Vem, quero te mostrar mais uma coisa. - Falou me puxando para dentro do apartamento.
- Mais surpresas!
Quando chegamos ao que parecia o quarto principal, meu queixo voltou a cair. O lugar estava vazio, a não ser por um colchão de casal, um luminária que soltava uma luz meio amarelada e uma garrafa de vinho com duas taças.
- O que você tem em mente? - Perguntei já cheio de segundas intenções também.
- Dizem que sexo de reconciliação é ótimo. Queria testar se é verdade. - Respondeu travesso.
Ri e voltei a beijá-lo.
Ali, no alto da cidade, selamos o nosso amor.
Enfim, tínhamos nos acertado. Eu não poderia estar mais feliz. Nos amamos a noite inteira, sem ligar para o mundo lá fora que devia estar sentindo nossa ausência.
Haveria tempo para se desculpar depois, agora, para amar Vítor, cada fração de segundo afastados soava como um imenso desperdícioMe levantei cedo, sem fazer barulho e deixei Vítor dormindo no nosso quarto. Ainda não tínhamos nos mudado para lá definitivamente, mas estávamos decorando o lugar aos poucos. Aliás, não tínhamos feito nada ainda nesse meio tempo, apenas nos amado entre um planejamento e outro.
Eu não gostava de sair sem avisá-lo, mas aquela era um data sagrada para mim.
Era aniversário de Felipe.
Tomei café da manhã numa padaria próxima, peguei o carro e fui em direção ao cemitério. Ainda encontrei com Fábio e a sua mãe descendo a colina onde Lipe estava sepultado.
Nos cumprimentamos rapidamente e cada um seguiu seu caminho.
Vale comentar que trocamos algumas novidades: Fábio disse que seria pai e me considerava uma espécie de tio da criança, pois eu seria mesmo, se Felipe estivesse vivo.
E Paulo, o pai deles, perdeu a eleição e eu nem precisei intervir para isso. Graças a Deus os belo-horizontinos souberam votar.
Com Estela, minha ex-sogra, nunca tive muito contato. Entre nós só houve um momento de intimidade que foi aquele na missa de sétimo dia de Felipe, e depois tudo voltou ao normal.
No fundo eu a entendia, minha presença a lembrava do seu maior erro.
Assim que os dois foram embora, me sentei ao lado da placa com o nome de Felipe, depositei algumas flores ao lado daquelas que já tinham e me coloquei, como sempre fazia, a conversar com Lipe.
- Oi! Desculpe por não ter vindo com mais frequência nos últimos meses, mas é porque eu estava cuidando da minha carreira nos Estados Unidos. Não deu muito certo, sabe, mas valeu a pena pela experiência.
A parte que envolveu o meu trabalho foi ótima, mas não gostei de ficar fora do Brasil, longe das pessoas que eu gosto.
Vítor inclusive. Sim, estamos juntos e agora eu acho que é para sempre. Acho que tem dedo seu nessa história. Lembra aquele dia que pedi a sua ajuda e entreguei minha vida em suas mãos?
Hoje, antes de vir, fiquei o olhando dormir e uma dúvida me veio à cabeça: se eu tivesse que ter escolhido em algum momento, seria você ou ele?
Bom, acho que só nós dois sabemos a resposta para essa pergunta e vamos deixar assim.
Ri sozinho, fiz uma pausa até meu sorriso murchar e continuei.
- Mas você sabe que eu nunca serei completamente feliz.
Sempre vai estar faltando alguma coisa: você.
Eu consegui seguir em frente e até ser feliz, aliás, estou feliz, mas nunca cem por cento.
Eu penso em você todo dia.
Já faz sete anos e meio desde que você se foi, mas ainda dói muito, meu amor.
É verdade que a cada dia dói um pouco menos, mas ainda dói e acho que vai ser assim para sempre. Acho que essa dor me alivia um pouco, é ela que me garante que nunca vou te esquecer.
Isso é engraçado, você sabe que sou um péssimo fisionomista, nunca lembro de rostos direito, mas do seu eu lembro claramente. Lembro do seu sorriso infantil, do jeito impulsivo, do seu corpo branquinho, todo lisinho e, principalmente, dos seus olhos azuis.
Isso sem nem precisar olhar fotos suas para lembrar. Acho que é porque você é muito mais do que uma lembrança, é uma parte de mim e vou viver e morrer com ela.
As lágrimas caíam soltas pelo meu rosto. Ainda doía, ainda não tinha explicação para o jeito que ele me foi tirado, eu ainda não tinha me conformado com sua morte prematura.
Doeria assim para sempre, mas eu saberia seguir em frente.
Felipe foi a melhor parte da minha vida até então, e talvez continue sendo.
Por mais que eu ame Vítor e acredite que ficaremos juntos até o fim, sempre haverá briguinhas de casal e pequenas separações (seguidas de uma reconciliação, claro).
Ele não tem como competir com Felipe.
Quando Lipe morreu, automaticamente todas as coisas ruins que havia acontecido com a gente desapareceram, ficaram apenas as coisas boas, apenas as coisas que valiam a pena serem guardadas na memória.
- Ah, deixa eu te contar. - Falei animado limpando as lágrimas. - Você não acredita nas coisas que Beatriz fez para juntar eu e Vítor. Ela...
E a nossa conversa durou o dia todo. Quando me despedi dele já era dezessete horasde novembro de 2010
Tudo estava na mais perfeita paz.
Deixe-me atualizá-los sobre todos:
Bruno e Zeca estavam muito bem e iam ser pais, uma amiga deles concordou em ajudá-los a ter um filho. Eles ainda não sabem, mas vão nascer gêmeos hiperativos que os deixarão loucos;
Renata se casou e eu fui um dos padrinhos, até cantei na festa a seu pedido. Sua carreira de jornalista vai de vento em popa, e agora, morando na mesma cidade, eu e ela nos vemos com frequência.
Pedro tinha assumido a filial da empresa do seu pai no interior de São Paulo. Segundo ele, lá ele podia ser quem ele era sem precisar se esconder dos pais.
Ainda nos falamos de vez em quando.
Tia Marta estava casada a um tempo já, esqueci de avisar, e parecia ir tudo bem. Ela parecia feliz.
Meus pais são só alegria. Parece que os dois só começaram a viver agora. Vivem viajando e fazendo planos.
Vovó está muito bem também morando com eles. Parece ter descoberto os prazeres de se chegar a uma certa idade. Tem um grupo de amigas da mesma idade que parecem ter mais animação que eu.
Beatriz continua solteira e feliz assim. Ainda mora no Rio de Janeiro e nos falamos sempre. Não mudou nada quanto ao seu jeito de ser. Será sempre a mesma. Ela ainda não sabe, mas daqui a alguns anos, é ela quem vai gerar um filho meu e de Vítor.
Ela vai dizer que não gosta da ideia, mas não vai conseguir tirar um sorriso discreto do rosto.
Bom, este post é exclusivo para um garoto lindo, loirinho e de olhos verdes:
Rafinha entrou para a faculdade de música e mora com a gente em Belo Horizonte. Aqui no nosso apartamento.
Ele está se tornando um músico cada vez melhor.
Ele não admite nem sob tortura, mas é caidinho pelo Henrique, que também está louco por ele.
Os dois não me contam sobre o assunto com receio de sei lá o quê, mas a união deles me deixa feliz. Gosto muito dos dois.
Mas eles ainda são muito novos, Henrique está com vinte anos e Rafinha é dois anos mais novo ainda. Com o tempo vão se acertando.
Também não mencionei antes, mas Rafinha não teve nada com a menina que namorou em Morro Velho.
A sua última viagem para os Estados Unidos, quando ele ficou um mês inteiro comigo lá, foi o meu presente para o seu aniversário de dezoito anos.
Ele ainda era virgem e a sua primeira vez foi comigo. Ele disse que queria que fosse com alguém muito especial. E aí aconteceu.
Eu fui muito carinhoso com ele e ele até chorou de emoção.
Vale ressaltar que transamos sem camisinha. Na verdade fizemos amor.
Então Rafinha foi quem me libertou de não usar preservativo, algo que eu só fiz com Felipe.
Mas continuo usando. Então só transei sem camisinha com Lipe e Rafinha. Ninguém mais. Só que eu consegui isso com ele, o que foi um grande passo para mim.
Está certo que sempre uso camisinha depois da nossa transa. Mas foi uma barreira quebrada. Agora estou livre nesse sentido e o uso de camisinha se tornou como uma homenagem aos dois lindos da minha vida. Só com eles foi pele com pele.
Também foi ele quem me permitiu beijar na boca de novo. Só depois dele é que beijei Henrique.
Durante aquele mês eu e Rafinha nos amamos muito e tive momentos valiosos de dar e receber amor de verdade.
Ele é muito fofinho. Muito mesmo!
Rafinha foi quem me permitiu seguir adiante e abriu caminho nos meus medos, derrubou barreiras no meu coração para eu poder me relacionar com Vítor.
Henrique continuou esse processo.
Até hoje Rafinha me abraça e me beija na boca com selinhos demorados e eu correspondo, é claro.
Não transamos mais, é óbvio, mas somos extremamente unidos.
E Vítor sabe de tudo, mas entende o nosso tipo de carinho e não se opõe. Ele sabe diferenciar o amor que sinto por ele do que o que sinto por seu irmão lindo.
Quando converso com Felipe, sinto o seu cheiro à minha volta. Rafinha é o único que também sente. Já me disse isso várias vezes.
Digo que Rafinha é um anjo lindo me dado de presente por Lipe, que sempre está com a gente. Sempre...
Quanto a mim e Vítor, tudo vai maravilhosamente bem.
Com muito paciência, conseguimos adequar nossos gostos e montar o apartamento com a nossa cara.
Ele ainda não gosta de fotógrafos, e fica retraído quando vamos a algum evento público, mas vai se acostumando.
Também nos acostumamos a passar metade dos nossos finais de semana separados, mas tudo bem, na maior parte dos dias conseguimos dormir e acordar juntos admirando o horizonte pela janela do quarto, como ele havia prometido.
Brigamos de vez em quando? Sim, mas é normal. São brigas de convivência; no fim sempre acabamos fazendo as pazes com sexo.
Com muita dificuldade, consegui levá-lo até um estúdio de gravação para ele gravar uma música comigo para meu novo álbum. Demorei muito para convencê-lo a fazer isso, e tive que usar de toda a sorte de chantagens emocionaisPronto? - Falei me preparando em frente ao microfone.
- Não. - Ele respondeu ainda muito nervoso com a situação.
- Relaxa, nos ensaios você se saiu bem.
- Mas e se não ficar bom?
- Uai, a gente faz de novo!
- Mas...
- Apenas cante com o coração, cante só para mim, mais ninguém está ouvindo.
Ele riu e fez que sim com a cabeça. Olhando um nos olhos do outro, começamos a cantar ao mesmo tempo e apaixonadamente.
“Quando a gente conversa
Contando casos besteiras
Tanta coisa em comum
Deixando escapar segredos
E eu nem sei que hora dizer
Me dá um medo (que medo)
É que eu preciso dizer que eu te amo
Te ganhar ou perder sem engano
É eu preciso dizer que eu te amo
Tanto...”.
Lembro de ter pensado em quão distante era o momento em que cantei aquela música, ali e naquela fatídica noite em Morro Velho.
Parecia que duas pessoas completamente diferentes é que tinham vivido aquilo tudo.
Só uma coisa não mudou: o sentimento com que cantei aquela música.
Eu amo Vítor, e provavelmente sempre amei, mesmo quando não tinha noção disso. Sempre vamos nos amar.
Não tenho garantias disso, apenas uma sensação de certeza. Eu só tenho que agradecer por nós dois que, mesmo nos momentos mais difíceis, mesmo diante de tantas rasteiras da vida, não tenhamos perdido a esperança de um futuro melhor.
Foi isso que nos guiou até aqui.
Essa foi, durante toda a travessia, a nossa luz no fim do túnel.
Agora, pela primeira vez, eu não ousava sonhar com um futuro melhor, eu sonhava que tudo continuasse como estava, que nossa música nunca perdesse o sentido, que nunca perdesse o sentimento.
Foi isso que a travessia me proporcionou afinal de contas: um futuro melhor para que pudesse sonhar com coisas menos utópicas, como a rotina.
A travessia, afinal, tinha valido a pena.
Toda história, filme ou mesmo uma música considerados arte mesmo, têm a intenção de passar alguma lição para o leitor/espectador/ouvinte.
Com Travessia foi assim também.
Não é uma lição de verdades, com a qual se planeje mudar completamente a vida de alguém.
É mais uma mensagem, que a considera quem quer.
Sabe aquela velha máxima de "tudo termina bem; se não está bem é porque ainda não terminou"?
A mensagem é essa: às vezes, para se chegar ao final feliz, é preciso passar por uma travessia antes.
Não é necessariamente uma via crúcis para te fazer merecer o grande prêmio, mas sim um tipo de preparação que se faz necessária para se poder desfrutar do final feliz.
Essa é mensagem principal, mas há muitas nuances nas histórias paralelas também:
Bernardo se apoia totalmente na música depois da morte de Felipe para seguir em frente.
Ele não era forte o bastante para suportar aquele golpe, então abdicou de uma vida para viver pela música, anestesiando assim a sua dor.
Só que isso o tornou escravo da sua profissão, e foi esse um dos motivos que o levou a escolher a música em vez de Vítor.
Ele preferiu permanecer ancorado em um porto seguro a se jogar num futuro incerto.
A morte de Felipe foi o que fez Bernardo se afundar na própria música.
Outro fato importante sobre ele, é que, nas palavras dele, ele foi perdendo a leveza cada vez que a vida lhe golpeava.
Isso acontece com várias pessoas.
Apesar de ter suas vantagens, em principal o amadurecimento, o saldo disso ainda é negativo.
Isso é mais uma opinião do que uma constatação.
Tanto é, que Bernardo só conseguiu ser feliz depois de amar e ser amado novamente. Depois de quebrar as barreiras que construiu em seu coração.
Isso aconteceu entre ele e Rafinha, nos Estados Unidos.
E depois, também ser ajudado por Henrique a relaxar, aproveitar mais a vida e parar de se preocupar com cada coisinha.
Bernardo sofreu demais?
Não.
Ele passou por situações ímpares sim, mas tem muita gente que passa por coisa pior e consegue seguir adiante.
Uma história muito cor de rosa é muito chata de se viver. E aqui, em um conto, é muito chata de se ler (e escrever).
PS: No ano seguinte, 2011 (e como sempre ainda acontece), no dia do aniversário de Felipe, Bernardo, que é muito influente, conseguiu fechar o cemitério da Colina, aqui em Belo Horizonte na parte da tarde, após ao meio dia.
Ele ficou sozinho lá dentro conversando com Felipe até bater dezesseis horas.
Nesse momento, Beatriz, Vítor e Rafinha também entraram.
Rafinha estava com o seu violão.
Vítor e Beatriz ficaram ao largo, mas perto bastante.
Bernardo e Rafinha se posicionaram sentados junto ao túmulo de Lipe e cantaram em sua homenagem...
Mas somente para ele:
“Eu nem sonhava te amar desse jeito
Hoje nasceu novo sol no meu peito
Quero acordar te sentindo ao meu lado
Viver o êxtase de ser amado
Espero que a música que eu canto agora
Possa expressar o meu súbito amor...
Com sua ajuda tranquila e serena
Vou aprendendo que amar vale a pena
Que essa amizade é tão gratificante
Que esse diálogo é muito importante
Espero que a música que eu canto agora
Possa expressar o meu súbito amor
Eu nem sonhava te amar desse jeito
Eu nem sonhava te amar desse jeito
Eu nem sonhava te amar desse jeito
Eu nem sonhava te amar desse jeito”
(Êxtase – Guilherme Aranteshttps://www.youtube.com/watch?v=vtZYgPLMdSw
>>> FIM <<<