Para completar, meu telefone vibrou. Era o Carlos:
— Rafa, o pai da Olívia acabou de falecer. Sei que você está ocupado, mas …
— Já estou a caminho. E Carlos, você pode cuidar da burocracia? A Olívia é filha única, sem outros familiares, como você bem sabe …
Ele não hesitou:
— Claro, primo. Deixa comigo. Te esperamos aqui.
Não tinha muito o que pensar naquele momento e decidi confiar na minha intuição. Pedi ao Sr. Eugênio:
— O Senhor poderia me fazer um grande favor? Considerando a possível mudança de status da nossa relação, de parceria para fusão, eu gostaria que ficasse por aqui e avaliasse o ambiente de trabalho da empresa e, com sua vasta experiência, me ajudasse a definir as novas políticas para o nosso futuro.
Ele me olhou um pouco assustado, mas logo entendeu. Eu expliquei:
— Uma pessoa importante para mim acabou de perder o pai e eu preciso estar disponível para ela. Volto assim que possível. Poderia assumir o meu lugar provisoriamente?
Ele me deu um sorriso cortês e disse:
— Vá tranquilo. Em momentos como esse, estar próximo daqueles que amamos é o mais importante.
Minha mãe me encarava sem saber o que dizer. Eu chamei minha secretária e a informei que o Sr. Eugênio estaria no comando até que eu retornasse.
Preocupado em não o atrapalhar, ainda confirmei com o Sr. Eugênio:
— Tem certeza que estar aqui não atrapalha a sua própria empresa?
Ele foi firme:
— Minha cadeia de comando é uma máquina bem azeitada. Funciona independentemente da minha presença. Estar aqui, ajudá-lo, é o melhor para o nosso futuro juntos.
Me despedi dele e agradeci. Minha mãe e Cirilo me acompanharam até o estacionamento da empresa. Ela estava pensativa e não demorou a me questionar:
— Lembre-se que a sua responsabilidade não é apenas com essa moça. Estou indo para casa, Maitê deve estar precisando de apoio também. Eu entendo que você precisa ser solidário, mas não faça promessas antes de ter a certeza de que pode cumprir com a sua palavra.
Eu a abracei e ela ainda me alertou:
— Isso vale tanto para os negócios quanto para o amor. Só prometa aquilo que tem a intenção e a certeza de que irá cumprir. Espero que tenha entendido.
Me despedi da minha mãe e do meu padrasto e entrei no carro. Enquanto eles voltavam para a nossa cidade natal, liguei para o Dr. Mathias. Foi uma ligação rápida e objetiva:
— Estou considerando a possibilidade da fusão. Prepare a papelada. Vou confiar no seu julgamento e dar um salto de fé.
Não demorei muito para chegar ao hospital. Olívia estava completamente arrasada. Desliguei a minha mente de tudo e tentei ao máximo ser um porto seguro para ela naquele momento. Acho que por se sentir sozinha e desamparada, perdendo seu último familiar, seu último parente de sangue, ainda mais o pai, ela se agarrou a mim, ao Carlos e a Vanessa e nos entregou completamente o controle sobre suas vontades. Ela estava apenas “existindo” naquele momento de dor, incapaz de ser forte, apenas se apoiando em nós três.
Sendo seu último parente vivo e já ciente das suas limitações de saúde, o pai da Olívia se preparou com antecedência para aquele momento. Seu plano funerário cuidou de absolutamente tudo, desde a remoção do corpo, até a cremação. Em dois dias, tudo estava resolvido e terminado.
Passamos aqueles dias tentando dar todo o apoio possível à Olívia. Vanessa até se desligou da empresa anterior e eu garanti a cobertura das multas que ela receberia ao não cumprir o aviso prévio.
Era hora de voltar aos meus próprios problemas e duas situações me intrigavam: a passividade do meu pai e o sumiço da Tina. Eu precisava saber mais sobre os dois. Para completar, em alguns dias, o resultado do exame de DNA também chegaria.
Voltei à empresa e agradeci ao Sr. Eugênio pela ajuda. Com os documentos da fusão prontos e após uma reunião longa para acertar todos os detalhes, ficou decidido que eu teria o controle acionário, com sessenta por cento das ações. Como novo presidente da companhia, o Sr. Eugênio, usando de sua experiência, comandaria o dia a dia da produção. Eu seria o novo CEO, encarregado também da pesquisa e desenvolvimento de novos produtos. Concordamos em decidir juntos os rumos da nova empresa, mas sendo minha a última palavra. Em caso de discordância, uma comissão formada pelos diretores, nos ajudariam a escolher o melhor caminho a seguir.
Nos livramos de todos os funcionários ruins da época do meu pai e daríamos chance aos promissores que provassem o seu valor. A equipe do Sr. Eugênio cobriu grande parte do pessoal afastado e essa decisão se mostraria muito acertada no futuro. Duas empresas se tornaram uma e nós assumimos a liderança do setor em poucos anos.
Naqueles poucos dias, os crimes pelo qual meu pai estava sendo investigado começaram a vazar na imprensa e rapidamente a opinião pública o apontou como um grande vilão.
Após inúmeras tentativas de contato, diversas mensagens enviadas, Tina me respondeu com um SMS:
“Estou voltando amanhã. Estava fora, incomunicável. Te procuro quando chegar. Já estou a par de tudo o que está acontecendo. Beijo, amigo”.
E o impensável, o inesperado, aconteceu, nos deixando completamente sem entender. Meu pai, não se sabe como, conseguiu um habeas corpus e o direito de sair da prisão. O juiz responsável entendeu que ele não representava riscos para a investigação e concedeu o pedido da defesa. Agindo rapidamente, a Dra. Ester tentou uma liminar para suspender a decisão, mas seu pedido foi indeferido. Angelo Albuquerque estava livre e saiu rindo da delegacia. Acenando para os jornalistas e se dizendo vítima de um esquema para destruir a sua reputação.
Parei tudo o que estava fazendo e sabendo que a Olívia estava sendo cuidada pela Vanessa, voltei para a minha cidade natal. Minha mãe até estava muito bem, meio que ciente que aquilo poderia acontecer. Já a Maitê, estava bastante triste e preocupada. Achando que seus esforços não dariam em nada. Seu maior medo era que o meu pai viesse atrás dela e se vingasse:
— Se tudo o que vocês falam sobre o seu pai for verdade, ela virá atrás de mim. – Ela suplicava. – Por favor, Rafa, não deixe ele fazer mal ao nosso filho.
É claro que nenhum de nós deixaria acontecer. Tentei acalmá-la:
— Eu estou aqui, ele não é louco de vir atrás de você. De nós.
Acho que me expressei mal, pois o “nós” na minha resposta, soou como se eu dissesse que estávamos juntos de alguma forma. E sinceramente, após ele ter ido atrás da noiva do próprio filho, eu não duvidava mais da sua crueldade. Aos meus olhos, ele não era mais um ser humano.
Preocupado, Cirilo me chamou para uma conversa a sós. Ele não enrolou:
— Eu conheço um pessoal que pode cuidar da gente. Dois amigos policiais que fazem bico de segurança nas folgas para melhorar a renda. O que você acha? Devemos nos proteger?
Eu nem pestanejei:
— Faça isso. Só me diga de quanto precisa e eu lhe mandarei o dinheiro. Proteja a casa e a sua oficina. Melhor prevenir do que remediar.
Quando eu menos esperava, meu celular vibrou no bolso. Era um número desconhecido enviando uma mensagem:
“Rafael, sou eu, seu pai. Precisamos conversar. Venha na minha casa amanhã. Fique tranquilo, eu jamais machucaria o meu próprio sangue. É urgente”.
Minha reação me denunciou e Cirilo se preocupou:
— O que aconteceu? Por que essa cara?
Mostrei a mensagem a ele e depois guardei o celular no bolso instintivamente. Pensei um pouco e respondi:
— Não conte a ninguém. Minha mãe principalmente.
Ele não gostou da minha reação:
— Não acredito que você está pensando em aceitar. Eu sei que é ele o seu pai, não eu, mas eu o considero minha família também, me sinto responsável por você, tanto quanto pela sua mãe.
Eu queria encerrar logo a conversa, pois não tinha a mínima ideia do que fazer:
— Relaxa. Eu não sou tão ingênuo assim. Jamais iria me encontrar com ele sozinho depois de tudo o que aconteceu. – E achei melhor me despedir. – De qualquer forma, tenho que voltar à capital. Amanhã é dia útil. Só vim ver como todos estavam.
Cirilo se resignou e não impediu minha saída, mas me deu um último conselho muito inteligente. Me despedi da minha mãe e da Maitê e disse que voltaria no dia de receber o resultado do exame. Maitê, descaradamente, me acompanhou até o carro:
— Posso pedir uma coisa?
Estranhei seu jeito tímido de falar:
— Claro! Do que precisa?
Ela, muito receosa, falou baixinho, quase inaudível:
— Você poderia me dar uns duzentos reais?
Eu não tinha motivos para deixar minha curiosidade se transformar em controle e apenas peguei duas notas de cem na carteira, entregando para ela. Ainda falando baixinho, ela se explicou:
— Me desculpe, mas é que eu preciso de produtos de higiene e beleza. Sua mãe não deixa faltar nada para mim, mas nossas peles são diferentes e os produtos que ela usa acabam não sendo adequados para o meu tipo.
Sorri para ela, dizendo:
— Eu disse que cuidaria de você. Você pode estar carregando o nosso filho e eu não quero que lhe falte nada.
Maitê ainda mexia muito comigo e a mágoa se confundia com a saudade dentro de mim. Os dois sentimentos travavam um duelo acirrado no meu coração. Mas com tudo ainda muito recente, a mágoa levava uma pequena vantagem. O sofrimento ainda latejava no peito.
Sem pensar muito, num movimento automático, dei um beijo carinhoso em sua bochecha e entrei no carro. Surpresa com a minha atitude, ela me encarava com o rosto corado, sorrindo alegremente, enquanto o veículo ganhava velocidade e eu me afastava.
Cheguei na capital quase às vinte e três horas. No hall de entrada, logo após a portaria, vi um anúncio de apartamentos à venda. Ao me aproximar, notei que eram as unidades que pertenciam ao meu pai e salvei o número de telefone do corretor responsável. A única unidade que não estava à venda, era a que eu estava morando.
O porteiro me chamou:
— Sr. Rafael! Foi deixado um envelope para o senhor. Preciso que assine a retirada, por favor.
Já no elevador, abri e tomei conhecimento do que se tratava. Um contrato de doação do apartamento que eu morava para o meu nome e todos os documentos necessários para a transferência. Assim como, o número do advogado que tinha a procuração assinada pelo meu pai para concluir a transação.
Não entendi o motivo dele ter mandado o envelope, já que queria falar comigo no dia seguinte. Ele poderia me entregar pessoalmente. E outra, com os apartamentos à venda, eu gostaria de comprar uma unidade maior entre as que ele possui. Uma de pelo menos dois quartos.
Tomei banho, pedi um lanche pelo aplicativo e dormi logo depois de comer.
Acordei descansado, mas muito curioso na manhã seguinte. Resolvi que iria encontrar com meu pai. Fiz o que tinha que fazer, avisei a minha secretária que chegaria um pouco mais tarde, peguei o envelope enviado no dia anterior e fui me encontrar com o canalha.
Como minha liberação no condomínio ainda era válida, entrei rapidamente. Não sem antes notar algumas vans e carros da imprensa à espera de algum furo ou notícia relacionada ao meu pai, o antes tão influente empresário, agora o vilão da vez nos noticiários.
Ao me aproximar de sua mansão, notei que a segurança estava reforçada. Dois homens tomavam conta do grande portão. Um deles me parou e pediu que eu abaixasse o vidro, mas logo me liberou:
— Pode entrar. Seu pai o aguarda.
Fiz como ele disse e assim que estacionei e saí do carro, notei mais um homem fazendo ronda no jardim. Dentro da casa, mais dois. Eles me indicaram a porta do escritório, à direita da sala de estar. Assim que me viu, meu pai me fez sinal para eu me sentar:
— Vamos direto ao ponto, pois sei que você está mais curioso do que preocupado comigo. Quer beber alguma coisa?
Não eram nem dez horas da manhã e ele já parecia um pouco alterado pela bebida. Um charuto na mão direita e um copo de whisky a sua frente.
— Não, estou de boa. O que é tão urgente? Desembucha logo.
Respondi meio que debochando, mas ele manteve a compostura e foi direto ao ponto:
— Primeiro, preciso que você saiba que eu realmente amei a sua mãe. Até hoje ela é a única mulher que eu amei. Se fui embora …
Não aguentei e comecei a rir:
— Você me fez vir aqui a essa hora da manhã para contar piada?
Ele me encarou realmente bravo, mas manteve a calma. Ele continuou:
— Eu fui embora para proteger vocês. Para que não pagassem pelos meus erros e pelas péssimas escolhas que eu fiz. Você acreditando ou não, foi o melhor para todos.
Infelizmente, para ele, eu não era mais um moleque ingênuo, capaz de acreditar nas boas intenções daquele coração frio como gelo. O desafiei:
— Então, o que você fez com a Maitê também foi para me proteger? Não foi nada além de amor paterno?
Com lágrimas nos olhos, demonstrando arrependimento, ele disse:
— Não! Ali eu me perdi completamente. Aquele foi o maior erro da minha vida. Um que eu jamais serei capaz de consertar. Um que vai me assombrar para o resto da minha vida.
Por mais que ele transmitisse verdade, eu não conseguia mais acreditar naquele homem vil e cruel. Ele se confessou:
— Minha intenção era só testar a sua noiva, ver se ela era realmente uma mulher digna de estar ao seu lado, mas as coisas que ela me disse, as coisas que ela …
Ele estava mal naquele momento, realmente arrasado e destruído, mas encontrou forças para continuar a falar:
— Ela não só resistiu aos meus ataques, desde os ataques de carisma até aos financeiros. Ela me falou tantas verdades, me fez sentir tão humilhado, que eu me irritei e a acabei passando dos limites. Ela jamais me quis, eu armei toda a situação e a coloquei numa cilada que ela não tinha como escapar. Mesmo que não fosse a minha intenção, na primeira vez, eu praticamente me forcei sobre ela. Ela não tinha como se defender. Mas depois, mesmo eu usando todas as artimanhas possíveis, não sei bem o porquê, ela se resignou e passou a aceitar passivamente a minha investida.
Sua confissão só me fez ficar ainda mais enojado. Ele acabara de confessar que realmente abusou sexualmente da minha noiva. Que destruiu a relação pura e verdadeira que tínhamos apenas por se sentir irritado.
Suas confissões não pararam por aí:
— Quando sai de casa, na época que vendi a loja e abandonei sua mãe e você, eu já estava enrolado até o pescoço com pessoas ruins. A única forma de mantê-los protegidos dessas pessoas era cortando minha relação totalmente com vocês. Depois disso, comecei a trabalhar para eles e me dei muito bem, chegando ao patamar que estou hoje.
Irritado, me levantei. Minha vontade era socar aquele desgraçado. Eu precisava sair dali:
— Desculpas e mais desculpas. Eu não esperava outra coisa. Agora, ainda me sinto mal por ter tomado posse de uma empresa construída pela dor de outros e de um dinheiro sujo, amaldiçoado.
Ele se levantou e me olhou nos olhos:
— Não! O que eu te dei é a única parte limpa da minha vida. A única parte que não foi maculada por corrupção. Aquilo eu construí com suor e dedicação. É o mínimo que eu posso deixar para vocês, uma forma de me redimir.
— É mesmo? O fato de enganar uma pessoa que estava fazendo negócios com você, o Sr Eugênio, não conta?
— Este caso é diferente. Eu só fui mais esperto que ele. Mas não houve corrupção ou dinheiro sujo neste negócio. Você acredite, ou não. Ele também não é nenhum santo.
Eu já tinha tudo o que precisava. Não tinha mais motivos para olhar para aquele desgraçado:
— Eu não quero seu apartamento. Aquele lugar só me traz lembranças ruins. — Joguei o envelope na mesa. — até nunca mais. Espero que você pague pelos seus pecados.
Os seguranças me acompanharam com o olhar e eu rapidamente entrei no meu carro, acelerei e me mandei de lá. Em menos de meia hora, eu estava estacionado na firma de advocacia do Dr. Mathias.
Peguei o celular do bolso e conferi o áudio com a gravação. Toda a conversa com meu pai estava devidamente registrada. Principalmente, sua confissão pelo que ele fez com a Maitê. Seus dias de liberdade estavam prestes a terminar novamente.
Continua ...