T– Jaime
Usei um microfone espião, a acústica é maravilhosa, ouvi como anônimo o depoimento dos dois infratores, ouvi eles dizendo que mataram e matariam novamente era um veado preto. A mãe deles manda eles não falarem nada como orientou o advogado, eles riram que não daria em nada, matar pobre, preto e veado era o mesmo que quebrar um ovo num supermercado, paga-se a multa e vai pra casa rindo e pronto, a promotoria entra e eles mudam, ficam como se tivessem medo, são perguntados sobre escola, notas, amigos, e se estavam arrependidos, eles se esforçam pouco para parecerem arrependidos. Pergunto se eles sabem que aquele rapaz era sócio de um dos nomes de família que batizaram avenida, bairro, escola, e praças na cidade. Dou o nome completo de Chico, eles disseram que não sabiam que ele tinha amigos ricos, eu digo que não era caso de dinheiro.
A mãe deles diz que eles também tinham sobrenome que... Eu pergunto quantas glebas de capitania hereditárias tele os descendentes dela, ela não consegue dimensionar, eu digo que meu irmão e eu temos quase quatrocentos e setenta anos de história em nossa família, peço licença e ligo para uma pessoa, digo que estou na delegacia tal e quero falar com o governador sobre a prisão dos dois assassinos, o governador estava viajando, mas eu estava sendo aguardado no Palácio das Princesas, casa do executivo do Estado. Me levanto e pergunto se alguém pode me levar até lá, aponto para o escrivão e digo que ele me leva até lá, no meu carro, porque estou enojado e não quero dirigir, eles agora choram de verdade.
No carro informo ao escrivão que eles vão se matar na delegacia na noite do dia seguinte, digo que vou discutir com o governador a promoção dele ou a exoneração por desacato, o homem me observa quando o sinal fecha. Digo que eles vão rezar muito nas próximas horas e serão salvos e o mundo ficará livre de... O escrivão diz que eles... Ponho minha gravação para tocar e digo que um jornalista acabou de receber a gravação dos assassinos fazendo pouco de como foi fácil matar porque era negro, porque era gay. O jornalista iria ganhar um prêmio pelo seu trabalho, só para justificar a grana que já estava na conta dele e claro, a reportagem ia dar a opinião pública sede de justiça e com o suicídio de ambos a justiça vai encontrar sua finalidade. O rapaz pergunta se poderia pedir promoção e transferência, claro, digo que os dois vão usar lençóis para se enforcar. Desço onde deveria descer, falo que quero a promoção daquele rapaz ao meu lado, digo que ele precisa disso para... O governador em exercício diz que sabe o que pode e o que não pode acontecer, e se eu disser que vai chover é uma questão de minutos. Deixo o rapaz ali e pergunto quanto ele cobra para isso, ele imagina um número de pessoas e me dá um valor, o que assume o governo diz que não será problema e me manda ir descansar. Abro o celular no carro, a notícia já está nos jornais que eu comprei e nós que eu não comprei.
Chego em casa sem saber qual o caminho fiz do Santo Amaro até a Jaqueira. Respiro fundo na garagem, choro, choro desesperadamente, não queria ter feito o que fiz, mas penso em como está meu marido e penso que eu me mataria se tivesse sido meu irmão, se meu marido tivesse que ver Mauro dentro de um caixão, não foi uma vingança, foi como um sinal de alerta. Pobre, negro e homossexual – isso causou a morte de Renan, e nem pobre ele é mas os assassinos tinham certeza que todos os litros de Danoninho rejeitados na infância, que as férias na Disney e sua pouca idade iam fazer isso parecer um safari na cidade, que iriam deixar por menos e um novo esporte ia acontecer, matar gente negra, gente LGBT e gente da área mais humilde. Isso que fiz foi uma reação de autodefesa, os que estão se preparando para copiar o crime vão pensar duas vezes.
Meu desejo era de amarrar os dois no para-choque traseiro de meu carro e os arrastar pelas ruas que não vão mais ver Renan, mas... Isso os faria mártires e eles tem de morrer de uma forma assustada, acuada. Pensei em matá-los na cadeia, mas isso ia aumentar o estigma sobre a população carcerária, eu quero ver a desconfiança e a revolta no rosto dos pais e mães de monstros como esses, quero que eles sofram de medo em colocar seus monstros de tênis de seis mil reais na rua, que eles saibam que os animais periféricos podem transformar seus assassinos em criaturas mortas até dentro de uma delegacia, que podemos reagir sem sermos vistos, que não aceitamos sermos mortos sem reação. Quero que sintam pânico e eduquem esses filhos do demo como se fossem gente que entende o valor da vida e entende como agir civilizadamente.
Meu marido bate no vidro do carro e eu me assusto e ele se assusta com meu susto, eu desço e o abraço, quero lhe transmitir conforto e segurança, faço o que posso, mas posso nada ou quase nada. Choramos os dois, ele diz que agora era apenas confiar em Deus. Não me revolto contra Deus, sei que ele acolhe agora meu sobrinho torto, sei que ele recebe meu amigo morto com um sorriso e para ele estar vivo ou é como saber que um filho saiu da sala para o corredor, todos os planos da existe são casa de Deus. Dário me abraçou e disse que estava difícil de conter o ódio e a vontade de vingança, eu não disse nada, ele disse que tínhamos de perdoar – agora Inês é morta, como dizem os antigos.
Foi um velório triste, a imprensa tentando se infiltrar, Olavo leu uma nota para eles e no final da nota disse que a equipe de advocacia estava pronta para entrar judicialmente contra o veículo que não respeitasse o âmbito privado de uma família e quem expusesse algo diferente seria penalizado na forma da lei. Os pobres não tem direito a isso, a justiça é leniente com casos de abuso da imprensa que invade casas e locais de despedida com microfones a procura de dois minutos para o noticiário local.
Voltamos para casa, Artur e Chico receberam Roger aquela noite. Acordamos com a notícia do duplo suicídio. Para nós agora tudo era página virada. Não tem nada que me ligue ao caso além de um funcionário de delegacia me levando à sede máxima do governo de Pernambuco. E ficamos assim.
No fim de semana Paulo vai nos fazer uma visita de cortesia junto a Olavo, tinha um pendrive, imagens com som de câmeras de vigilância, os últimos dias de Renan falando sobre tudo, exceto sobre trabalho, lá no trabalho, o medo dele de perder Roger, a alegria com o telefonema de reconciliação, Roger chorava de uma alegria triste, ele segurava a mão de Olavo, percebemos, Paulo também, logo eles se despedem, Mauro pede para Olavo ficar e falar sobre como estava meu asilo, ele fica. Paulo dá um abraço nos amigos e vai embora, acho que a amizade entre ele e os outros dois acabou ali de vez.
Eu digo a Roger que não quero saber sobre trabalho por alguns dias, nenhum de nós, Mauro como um ogro, esse sim mereceria esse nome, Mauro diz a Olavo que ele parecia um ator pornô, Tomas Brand, e com fotos de Tomás, ex de Chico e Artur. Olavo agradece mesmo sem saber se isso era bom ou ruim (very good), Mauro pergunta se ele ainda arrastava um caminhão por Roger e ele gagueja, Mauro pergunta num grito e Olavo responde que sim, ele manda Olavo aproveitar a oportunidade, diz que não quer luto prolongado, conhece Renan e ele concordaria com isso, porque nunca discordavam, Mauro abraça Roger e diz pra ele não ser idiota e entrar na casa do sofrimento, todos sabem do amor dele, era melhor dar a outro que deixar também isso, que é lindo, morrer também.