Eu acho que nunca falei explicitamente aqui, mas eu sou psiquiatra. Precisei tirar um ano sabático em janeiro de 2016 para ajeitar minha vida. Somente próximo do meio do ano, consegui mudar de cidade. Como não aguentei ficar sem fazer nada, acabei entrando na equipe de alguns colegas onde eu revisava e corrigia materiais deles em home office. Também não parei de atender alguns pacientes antigos, por saber que talvez não seguissem o tratamento ou procurariam outro profissional.
Nesse ano aconteceram muitas coisas; mudei de cidade, encontrei Juh, o amor da minha vida, iniciamos um namoro e começamos a morar juntas. É fácil demais amar essa mulher. Primeiro eu me apaixonei porque ela é linda, mas eu continuei me apaixonando todos os dias depois do nosso primeiro beijo por quem ela é. Uma pessoa que cativa, meiga, preocupada, que cuida tão bem da minha filha e é apaixonada pela minha família. Proporcionar tantas novas experiências e ver ela se abrir para o mundo, mostrando quem ela é de verdade foi gratificante, ver a felicidade dela com a liberdade que nem sabia existir, foi lindo demais.
Eu esperava que fosse sofrido mudar tudo, mas foi um ano leve, um ano de amor. A nossa química na cama ou em qualquer outro lugar, fazendo qualquer coisa que seja é única. Eu queimo de amor por Juh, e ela arde de amor por mim. A gente diz, afirma e reafirma, mas nem precisaríamos soltar qualquer palavra para que isso seja notado por terceiros.
Em um ano, tudo isso aconteceu, era hora de finalmente voltar a trabalhar. Eu ia atender em um hospital e em uma clínica mas já tinha com um projeto de iniciar a minha própria.
Estava para acontecer um congresso em Brasília, e seria o dia oficial do meu retorno. Uma semana longe da família, pois faria também algumas palestras depois do final de semana do encontro.
Fomos ao aeroporto, um chororô de todos os lados, a saudade já batia forte mesmo com elas ali na minha frente.
- Vai obedecer a mamãe, não é, filha? - Perguntei para Mih que confirmou com a cabeça
- E você, amor, se cuida, tá? - ela respondeu da mesma maneira
- Meu Deus, ninguém fala nada? - falei tentando brincar, e em meio a lágrimas, nós três rimos
- A gente te ama - disse Juh me dando um beijo
- É - completou minha filha
Nos despedimos e eu parti, com o coração na mão, mas tinha que fazer isso, se não fosse necessário eu facilmente jogaria para cima.
Fui o voo inteiro olhando fotos nossas, nossos vídeos, nossos momentos e pensei que poderíamos voltar na ilha em que pedi ela em namoro em junho para comemorar o nosso primeiro ano juntinhas.
Foi uma semana cansativa, mas eficiente, fiz tudo que tinha para fazer e reencontrei vários amigos. Durante todos os dias fizemos videochamadas onde eu sempre via minha filha brincando, fazendo as atividades da escola, assistindo jogos ou desenhos e minha mulher linda, morrendo de saudade, cuidando de tudo com o melhor sorriso do mundo.
No último meu dia, o pai dela iria busca-la, ele sabia que eu estava viajando e não quis abrir mão do final de semana dele, justamente esse que eu chegaria. Como sempre, Loren e Lorenzo iriam levá-la mas o desquerido conseguiu derrubar minha ação contra ele e resolveu aparecer no meu endereço, por sorte meus irmãos já estavam por lá. Recebi uma ligação de Juh na hora
- Amor, o pai de Mih tá aqui e ela não quer ir de jeito nenhum...
De fundo eu conseguia ouvir minha filha chorando
- Aí? Como assim? - Perguntei
- Não sei também... Já estava todo mundo aqui e ele apareceu
- Por que ela não quer ir? Ela até que gosta... - falei
- Estou no quarto com ela, que tá grudada no meu pescoço, ele tá lá na sala com uma cara enorme - disse Juh
- Ele não vai fazer nada com vocês, amor - falei sem ter muita certeza
Pedi para ela passar o celular para Milena
- Oi, amorzinho, por que não quer ir com o papai? - Perguntei, mas ela chorava inconsolável
- Aconteceu alguma coisa? Você sabe que seus avós vão estar lá, não é? - Tentei novamente
- Quero esperar a senhora com a mamãe - disse ainda chorando
Meu coração despedaçou
- Quer falar isso para o seu pai? - Perguntei
- Hunrum - murmurou confirmado
Juh a levou para sala e eu a ouvi dizer para o crápula, que desconversou, pedi que passassem a ligação para ele e implorei que deixasse Milena pelo menos mais um dia até eu chegar e me foi negado veementemente.
- Deixa ela dormir e eu levo - foi a solução que ele arranjou
- Não deixa, ela vai se sentir enganada! - vociferei do outro lado da linha, mas me sentindo impotente
- Você vem no colo do dindo um pouquinho? - Ouvi Lorenzo perguntar
- Não! - ouvi minha filha dizer
- Vamos, filha, lá tá cheio de coisas novas para você brincar... - ouvi o pai dela falar seguido de um grito de Mih que foi se distanciando porque ele a pegou
- Olha, você só sai daqui com ela mais calma, não vai levar a força - ouvi Loren ordenar
Meu coração estava disparado, sentindo minha filha sofrer
- Amor, o que a gente faz? - Juh me perguntou
- Ai, amor... Não sei, tenta acalmar ela no colo dele, diz que amanhã de manhã vou lá vê-la... Não sei mesmo, estou me sentindo perdida - falei um pouco desesperada
E eu ouvi ela tomar o controle da situação, tranquilizando não só minha filha mas também a mim, com muito carinho porque eu conseguia ouvir os beijos, até ela parar de chorar e aceitar ir...
Cheguei no mesmo dia, porém a noite e Juh estava lá, linda, me esperando. Eu tinha comprado flores para ela e ela coincidentemente também havia comprado para mim. Nos abraçamos, beijamos, saímos agarradas dali para o carro e nada como chegar em casa para dormir na sua cama grudada com seu amor. Faltava uma parte de mim, mas naqueles braços encontrei conforto para amanhecer energizada e encontrar meu pinguinho de gente.
E nosso encontro foi cheio de amor, expliquei direitinho que era só uma passadinha para abraçar, dar um beijo e matar a saudade mas que depois faríamos muitas coisas divertidas. Matei o que estava me matando, estava sentindo tanta falta dela nos meus braços, daquele cheirinho gostoso, das tiradas inteligentes, de conversar, de ver... De tudo!
Voltando no carro falei para Juh:
- Eu quero passar o dia todo de amorzinho - e dei um beijo nela
- Então passaremos o dia inteiro assim - e sorriu lindamente como sempre
Já em casa, foi o que fizemos, passamos o dia inteiro na horizontal, entregues a carícias e atualizações sobre tudo que aconteceu durante a semana.
Eu estava bem cansada, não com sono, mas cansada fisicamente, foi ótimo descansar daquele jeito, cheio de carinho e fofoca, rs!
- Amor, tenho uma coisa pra contar - disse Juh
- Conta, gatinha
- Eu queria contar de uma maneira criativa, se fosse ao contrário, com certeza você acharia um jeito legal de contar mas eu não consegui pensar em nada...
- Amor, fala - interrompi ela querendo saber o que era
- Então, eu fui chamada pra ser coordenadora da escola esse ano, a antiga vai ser transferida para outro bairro...
Dei um beijo nela - interrompendo mais uma vez
- Parabéns, meu amor! Eu vejo o tanto que você ama e se dedica àquelas crianças, é uma mudança mais do que merecida. Estou muito feliz por você! - falei
- Eu estava ansiosa pra te contar, só queria te contar - e me beijou
- Oi, coordenadora - falei segurando o seu queixo
- Estou com medo, mas estou empolgada... Tô tão feliz porque eu nunca imaginava que era capaz de tantas coisas - disse com seus olhos lacrimejando
- Você é capaz de muito mais coisas, nossa vida só está começando. Entenda de uma vez que você é foda, mulher!
- Eu amo seu jeito de comemorar minhas conquistas - sentou em cima de mim e a puxei sorrindo para mais um beijinho.
- Sabe, amor... Talvez eu não esteja tão cansada assim... - falei apertando o corpo dela e puxando para um beijo mais lento segurando no seu pescoço para maior controle
- Tá sim, amor, para de fogo - disse rindo e se jogando para o lado
- Você não me quer mais, é isso? - Falei fingindo estar
chateada
E ela voltou toda preocupada falando: - Não, amor, não é isso, não!!!!
- Eu sei, estou brincando - admiti e dei um selinho
- A gente devia sair para comemorar amanhã - falei
- Verdade...
E a noite fizemos isso, fomos jantar no nosso restaurante preferido. Ele fica a beira-mar, então é bem romântico, tem uma meia luz e a comida é incrível. Depois ficamos andando na orla, abraçadas e observando o céu que estava lindo, bem estrelado.
Vimos um barzinho que estava tendo música ao vivo e nos aproximamos, ficamos um bom tempo curtindo o som e bebendo, como no outro dia nós duas iríamos trabalhar cedo, não queríamos nos prolongar no horário, fui ao banheiro enquanto Juh esperava o Uber do lado de fora. Quando voltei, ela não estava, olhei para todos os cantos possíveis e nada dela. Olhei no app e o motorista ainda estava a caminho, ligava para ela e nada de atender.
Um pouco distante, no lado oposto de onde eu estava, tinha um homem muito alto encostando alguém na parede, não dava para ver quem. Fui me aproximando, com um pouco de medo de ser o que eu achava que era. Estava com medo dele estar armado, tentando assaltar Júlia. A gente sempre conversou sobre essas situações, para sempre tomar cuidado, prestar atenção e se chegar a acontecer, entregar tudo logo.
Eu apressava o passo, tinha uma garrafa de vidro em um lixo e eu peguei. Eu só conseguia enxergar os pés da moça, e ao ver aquele salto preto com brilhos na frente, meu coração gelou. Era com certeza Júlia.
Corri e sem falar nada, com toda força que eu tinha, o atingi com a garrafa na lateral da cabeça. Ele caiu e eu o acertei novamente, dessa vez a garrafa quebrou com a pancada, para ter certeza que ele não levantaria.
*Alerta gatilho, assédio sexual*
Ele ia abusar dela, era um estuprador, estava com o pau para fora e uma arma na mão.
Juh estava em pânico, congelada, o coração disparado, chorando sem parar, não conseguia falar nada. Havia a marca de um tapa no seu rosto. Abracei ela tentando acalmar, obviamente, sem sucesso.
- Amor? - Eu tentava chama-la repetidamente mas não adiantava
Algumas pessoas passavam e olhavam, mas ninguém se aproximava para ajudar, eu até tentei chamar mas pareciam não querer se comprometer.
Liguei para o pai de Milena, era a única pessoa que poderia me ajuda... E olhe lá, porque nós não estamos nos nossos melhores dias, mas eu não tinha outra alternativa, não conhecia mais ninguém.
Expliquei bem nervosa, mas ele entendeu, pediu a polícia que fosse lá até onde estávamos e disse nos encontraria na delegacia.
O criminoso foi em uma viatura, desacordado, para um hospital e nós em outra direto para a delegacia. Os policiais da viatura, nos trataram muito bem, já os da delegacia, não tanto. Tentaram fazer um interrogatório descabido para Juh naquele estado, com perguntas como: "mas você bebeu, então?", "tem certeza que não deu conversa para ele?" e quando ela conseguiu falar que mordeu, chutou e unhou para caso precisassem do corpo dela como cena de crime, eles riram dizendo que ela devia estar assistindo muito seriado. Sem paciência para toda aquela ignorância, levantei e falei: - Que porra é essa? Vocês estão diante de uma vítima que acabou de ser atacada e não conseguem ser profissionais? Ela precisa mesmo passar por mais esse trauma?
E tenho certeza que eu seria acusada de alguma coisa se não fosse o pai de Milena entrando ali e fazendo eles tremerem. Logo a forma de tratar mudou, o que é muito triste porque só mostra o quanto esse sistema é falho e as vítimas de assédio sexual ou estupro não tem suporte nenhum.
Obs: *Tudo aconteceu na frente de uma loja, que tinha câmeras e as imagens de toda a via foram solicitadas, o homem foi preso, mas hoje em dia já está solto.*
Foi coletado tudo que era preciso e fomos liberadas, agradeci muito ao meu ex marido, porque se não fosse com a ajuda dele, talvez nada ali fosse resolvido da forma correta.
Quando chegamos em casa, ajudei Júlia a tomar banho e ela me abraçava chorando muito, eu não sabia o que falar, apenas fazia carinho no seu cabelo e apertava o mais forte que eu conseguia. Eu também estava em lágrimas.
Deitei com ela, continuava enchendo-a de carinho, e ela começou a contar como foi.
- Amor, se você não tiver pronta agora, não precisa fazer isso - falei com medo dela estar achando que eu necessitava de uma justificativa
- Eu sinto que preciso muito falar - disse com novas lágrimas escorrendo pelo rosto
- Eu estava esperando o Uber, ele chegou apontando a arma por baixo da roupa e me puxando para o outro lado da rua. Pensei que era assalto, disse onde estava meu celular mas ele não ligou. Me encurralou naquele canto e colocou o membro para fora, e só aí eu entendi que se tratava de outro crime. Ele começou a subir minha saia e tentar me beijar e foi quando eu mordi o rosto dele e cravei as unhas tentando afasta-lo de mim. Recebi um tapa no rosto e tentei revidar com um chute nas partes íntimas mas acertei a coxa e foi quando você chegou.
Fiquei um tempo em silêncio, enxugando as lágrimas dela e fazendo carinho. Me sentia um pouco mal por não estar com ela naquela hora, talvez se eu não fosse no banheiro... Sabia que não era minha culpa, só existia um culpado, mas o pensamento imediato foi esse.
- Amor, eu sinto muito por você ter passado por isso... - falei enquanto ela me abraçava forte, acredito que buscando a segurança - Eu vou cuidar de você, a gente vai passar por isso juntas!
- Ainda bem que você chegou lá, amor - disse chorando ainda mais
Doía ver Juh daquele jeito, e não poder fazer nada para mudar a situação me fazia sentir-me incapaz. Sabia que a reação de se abrir era boa, de passar confiança se que eu estava do lado dela também mas agora eu tinha medo de deixá-la sozinha.
Não dormimos, bem cedo liguei para o trabalho dela explicando que ela não estava bem e encaminhei o atestado. Falei a Juh que faltaria e ela não gostou.
- Seu primeiro dia, vai pegar mal... E em cima da hora, vários pacientes vão ficar sem atendimento.
- Amor, você é minha prioridade, não tem como eu te deixar sozinha logo hoje...
- Vai trabalhar, Mih não chega hoje? Ela fica comigo!
- Gatinha... - falei fazendo um carinho no seu rosto - Mih vai direto pra escola, o pai dela vai deixá-la lá e também... Preciso de alguém que cuide de você de outra maneira - falei
- Ela sempre me faz ficar bem... - tentou
- Vou ligar para seus pais então - falei
- NÃO, LORENA, NÃO! - gritou
- Calma, então não ligo, calma - falei acalmando-a
- Liga pra Loren - falou baixinho - Não vou ter problemas em explicar para ela, para meus pais eu não vou conseguir e vou deixá-los preocupados
- Tá bom, amor - e demos um beijinho
Conversei por cima com minha irmã, e ela antes de eu pedir, disse que estava vindo. Quando chegou, foi direto falar com Juh e, com o coração dolorido em deixar o meu amor, fui trabalhar.
Foi um dia cheio e tenso toda hora mandando mensagem querendo saber o estado dela enquanto atendia 32 pacientes. No horário do almoço pude ligar e vi elas almoçando com Lorenzo, Victor e Sarah.
- Não deixei esse povo todo aí quando saí, não - brinquei
- Lorenzo ligou pra Loren e eu falei porque ela estava aqui, aí ele apareceu com Sarah e Victor que nem sabiam de nada - disse Juh
Em uma segunda-feira eu vi a minha família jogar o trabalho para cima para dar apoio a minha namorada em um momento extremamente delicado.
Acho que também nunca falei, mas Loren e Lorenzo trabalham juntos em uma empresa de gás do meu pai, Sarah é dentista e Victor herdeiro agroboy, vai no haras quando quer, kkkkkkkk
Finalmente o expediente acabou e eu fui buscar Milena na escola, disseram que ela chorou um pouco querendo ir embora, o que nunca acontece, ela ama a escola.
- O que aconteceu, amor? - Perguntei carregando ela - A pró disse que você estava triste, querendo ir embora
- Eu estava com saudade da senhora e da mamãe e ela nem estava aqui - falou me abraçando
Entramos no carro e continuamos conversando
- Pronto, estou aqui já, e vamos ver a mamãe, que tá morrendo de saudade e precisando dos seus cuidados.
- Ela tá doente? Por isso que não foi hoje? - Me perguntou
- Tá precisando de muitas doses de carinho - falei
- No coração de novo? - Perguntou lembrando da última vez, quando o pai de Juh esteve no ap dela
- Exatamente, acho que temos que levar doces, não é isso?
- Issooo!!! - vibrou
No caminho Mih escolheu o que queria levar e fomos para casa
- Esqueci de dizer, tem umas pessoas de surpresa para você aí - falei
- Ebaaaaa, acho que sei quem são - e entrou correndo
Quando adentrei, ela já tinha falado com todos e estava lá grudada com a mamãe mais linda do mundo. Abracei um por um, agradecendo e beijei minha mulher. Eles estavam em uma partida de Uno, se distraindo, e eu fiquei ali, observando o caos se instaurar. É sempre divertido ver eles jogando qualquer coisa, especialmente Uno, só faltam se matar!