Meu Desejo - Capítulo Nove

Da série Meu Desejo
Um conto erótico de M.K. Mander
Categoria: Gay
Contém 4618 palavras
Data: 22/07/2024 00:34:25

CAPÍTULO NOVE

*** PEDRO FERNANDES ***

— Obrigado por isso, Madeleine — agradeço à vizinha do apartamento no sexto andar, que também é a atendente da padaria em frente ao prédio, quando ela deixa uma Coca-Cola sobre a bancada para mim e uma garrafa de água para o intratável sentado à minha frente.

Sentado ao lado de Hugo na bancada colada à parede dos fundos da padaria, o lugar mais afastado dos outros clientes que encontramos, ainda não posso acreditar que ele simplesmente achou que bater na minha porta era uma ideia aceitável. Sério? Que tipo de pessoa faz uma coisa dessas e depois continua me encarando com a expressão mais lavada do mundo, exatamente como ele está fazendo agora?

Que tipo de pessoa praticamente lambe meu corpo com os olhos da maneira como ele fez quando fechei a porta do apartamento em sua cara e nem sequer finge constrangimento depois? O mesmo que gosta de ter sido lambido, provavelmente. Uma vozinha atrevida sussurra em minha cabeça e eu quero gemer de frustração, porque nem meu próprio subconsciente me respeita.

Como se já não bastasse Melissa, eufórica pela visita inconveniente como se ela fosse algum tipo de prêmio, não uma afronta. O que foi que eu fiz para merecer isso, Deus? O quê? Sopro o ar pela boca, resignando-me. Isso é por uma boa causa, Pedro. Por uma excelente causa.

A barba grisalha emoldura os lábios em um bico enquanto os olhos ferinos se mantêm atentos a cada um dos meus movimentos. Mais perto do que já estivemos antes, se torna impossível ignorar o cheiro da sua pele. Hugo cheira a couro, terra molhada e uísque. É um aroma contraditoriamente fresco e eu passo a língua sobre os lábios quando uma curiosidade miúda sobre o seu gosto tenta se esgueirar pelos meus pensamentos.

— Por que você aceitou o trabalho? — o pai de Beatrice pergunta, parecendo ler meus pensamentos, mas sua incompreensão me deixa curioso, já que mesmo que não seja o verdadeiro, existe um motivo mais do que óbvio para eu ter dito sim: o dinheiro. — Aliás, por que você mora aqui? — Emenda uma pergunta na outra quando eu não respondo a primeira e recuo o rosto. Gira a banqueta alta, gêmea da minha, sobre a qual está sentado, deixando a frente do seu corpo grande e musculoso pareada à lateral do meu infinitamente menor.

— Como assim? — Acabo rindo. — Sinto muito, meu bairro não agrada aos seus padrões, Alteza? — Seus olhos se estreitam e ele inclina a cabeça para o lado. — Talvez você não devesse ter vindo até aqui, pra começo de conversa.

Hugo pega sua garrafa de água e desenrosca a tampa para logo em seguida levá-la à boca, recusando-se a usar o copo sobre a mesa. Reviro os olhos e arranho a garganta. Esnobe. O braço forte apoiado sobre o encosto da banqueta praticamente intima meus olhos a varrerem as veias protuberantes ali, mas eu ignoro o chamado.

— Eu sei quem você é — diz com simplicidade depois de pousar a garrafa pela metade sobre a mesa. — O que eu quero saber é por que você vive como se você não soubesse. — Meus olhos piscam várias vezes enquanto minha mente tenta dar conta das afirmações ouvidas.

— Do que…

— Marieta Alves Fernandes. — O nome de minha avó é usado quase como uma acusação e eu prendo a respiração. Tenho certeza de que o sangue fugiu do meu rosto enquanto olho para ele, chocado. — Você não pode realmente achar que eu colocaria alguém dentro da minha casa sem investigar essa pessoa antes — comenta, mas ainda estou chocado demais com a audácia desse homem para prestar atenção.

— Eu não sei o que você acha que sabe…

— Eu sei que você saiu de casa aos dezessete anos. — É impressão minha ou seu corpo se inclinou levemente para frente? A vontade de espelhar o gesto e me aproximar um pouco mais é quase exaustiva, mas empertigo a coluna, mantendo-me exatamente no mesmo lugar. — Que cortou todo e qualquer laço com sua herança familiar e que vive como um recém-formado que não tem onde cair morto quando na verdade tem dinheiro o suficiente não só pra comprar o apartamento onde mora, como o bairro inteiro — me interrompe outra vez e distribui informações pessoais a meu respeito a qualquer um que queira ouvi-las como se não estivesse fazendo nada demais. Como se saber de coisas tão íntimas a meu respeito não fosse nada demais.

Desvio os olhos e balanço a cabeça, negando. A vontade de me permitir ser atraído pelo calor do seu corpo agora duelando ferozmente com uma vontade tão intensa quanto de lhe arrancar sangue.

— Sabe do que eu menos sinto falta do tempo em que vivi com a minha avó, senhor Maldonado? — pergunto, adorando a contração sutil de irritação no músculo da sua bochecha quando o chamo pelo sobrenome. — De gente como você — digo, cansado de sua postura. Ele escolheu vir à minha casa em um horário completamente inapropriado. Não lhe devo sequer respeito profissional a essa hora da noite, ele que lide com isso. — Arrogante, cheia de si e que acredita que o mundo deveria se curvar para você só porque ganha num dia mais dinheiro do que a maioria das pessoas vai ver na vida inteira.

— Então por que você aceitou o trabalho? — Hugo não parece nem um pouco perturbado pelas minhas declarações e isso, mais do que qualquer coisa, me irrita. Tão malditamente controlado!

— Não é da sua conta! — digo entre dentes.

— Eu tenho um palpite. — Recosta-se na cadeira e cruza os braços na frente do peito. Os músculos dos seus bíceps são favorecidos pela posição e eu preciso me obrigar a desviar os olhos da pele exposta pelas mangas curtas da camisa polo vermelha que ele usa.

— Eu não me importo.

— Eu acho.. — começa, apesar da minha dispensa. — Que sua avó tentou interferir no seu trabalho. Na verdade, me admira que ela não tenha feito isso antes. Mas imagino que o que quer a estivesse impedindo não está mais e agora eu sou sua única alternativa para frustrá-la. — Não me dou ao trabalho de negar.

Não sei até onde suas conclusões são resultado de uma pesquisa bem-feita ou até onde são de fato especulações. Sinceramente, não me importo. Não esta noite.

— Muito bem — parabenizo e apoio um cotovelo sobre a bancada diante de mim, deixando o outro sobre o encosto da cadeira alta em que estou sentada, assim como Hugo. — Você sabe somar os dois mais dois das mentes deturpadas dos arrogantes como você. Gostaria de uma estrelinha dourada como as que eu dou aos meus alunos quando eles fazem uma tarefa corretamente? — pergunto e ele arranha a garganta em um óbvio sinal de desdém. — Você só errou ao supor que eu preciso de você pra alguma coisa. Não preciso, senhor Maldonado — declaro e deixo que o silêncio se estabeleça para que ele entenda bem o que estou dizendo. — Como você disse, eu poderia comprar o bairro, nada me impede de abrir uma escola se eu realmente quiser trabalhar — blefo. Deus sabe que eu não seria capaz de fazer tal coisa e pelo tempo que Hugo me encara antes de me dizer qualquer coisa, ele também sabe.

— Não. Exceto que por alguma razão, você tem verdadeira aversão ao dinheiro da sua família. — Pausa. — Você não age como pobre. — Franze as sobrancelhas, como se só agora tivesse entendido a resposta para todos os males do mundo. — Você se sente pobre.

— Acabou com a sessão barata de análise? Porque se eu quisesse algum tipo de terapia, pagaria por uma. — Escondo o abalo causado por suas palavras atrás de desdém e outro momento de silêncio ocupa o espaço entre nós.

— Eu quero mudar a cláusula de permanência do nosso contrato — diz depois do que pareceu uma eternidade.

— O quê? — Dessa vez, não resisto. Aproximo-me de Hugo com o rosto estampado por confusão e sua expiração morna, muito mais perto do que seria aceitável, dispara um arrepio gostoso pela minha lombar.

Ele não se afasta. Muito pelo contrário, mantém-se tão perto quanto é possível, como se soubesse o efeito disso em mim ou não quisesse perder as sensações que a proximidade está causando em si mesmo. Seus olhos baixam para os meus lábios e é olhando para eles que Hugo fala.

— Quero torná-lo irrescindível — explica e minha boca se abre. Agora são os meus lábios a soprarem ar morno entre nós. — Você não poderá ir embora antes de ele chegar ao fim, não sem me pagar uma multa milionária — declara e isso quebra qualquer que fosse o encanto que estivesse me mantendo cativo àquela teia de proximidade e eu percebo que essa sempre foi sua intenção. Eu era uma mosca sendo envolvida na teia de descaramento de Hugo Maldonado e quero me amaldiçoar por isso, porque independente de como isso aconteceu, todo o meu corpo parece aceso e esquentando.

— Você acabou de dizer que eu tenho dinheiro, Hugo. Como isso me impediria?

— Você não se importa em não ganhar dinheiro, Pedro. Mas com certeza se importa em gastar um que não considera seu.

— E por que é tão importante pra você que eu não encerre o contrato antes?

— Porque eu fiz uma promessa à minha filha e não estou disposto a quebrá-la.

— Então talvez você não devesse fazer promessas que não pode controlar.

— Mas eu posso controlar. — Finalmente se move também, recuando a metade do caminho de aproximação que tinha feito antes. — Por isso a mudança no contrato.

— Quero uma cláusula bilateral. — Não me preocupo em debater, mas se ele quer alguma coisa de mim, vai precisar ceder tanto quanto eu.

— Não.

— Então essa conversa acabou — digo, começando a me mover para me levantar.

— Você realmente abriria mão de frustrar os planos de Marieta?

— Eu não vou sair de uma prisão para entrar em outra, Hugo. E, ao meu ver, a única forma de isso — faço um sinal entre nós dois — não ser uma prisão, é se nenhum de nós dois tiver a chave. — Seus olhos se estreitam e ele umedece os lábios antes de curvar um dos seus cantos para cima e assentir.

— Tudo bem — concorda.

— Eu não quero seu dinheiro — aviso, porque ele está confortável demais. Suas sobrancelhas se erguem.

— O que você quer? — Mordo o lábio, pensativo, porque não sei o que eu quero. Quero algo que seja valioso o suficiente para que ele não queira perder, mas não conheço esse homem o suficiente para dizer o que seria isso. Há apenas duas coisas que sei que ele valoriza ao extremo, sua filha, e eu nunca seria capaz de brincar com isso, e estar no controle.

Basta pensar nas palavras para que minha mente se ilumine e é a minha vez de sorrir escancarado.

— Eu não sei — digo e Hugo estreita os olhos. — Não ainda.

— Não — diz com simplicidade e eu solto um suspiro falsamente resignado.

— Bem, eu adoraria dizer que lamento. — Aperto os lábios e dou de ombros. — Mas eu não lamento.

— Você é um homem irritante — praticamente rosna entre dentes e a gravidade do tom envia impulsos elétricos para um lugar bem entre as minhas pernas. Pelo amor de Deus, Pedro! O homem está falando mal de você! Dou de ombros novamente, disfarçando minha afetação, mas o alargar das narinas no rosto másculo faz sugestões que eu preferiria não compreender.

— Foi você quem fez uma promessa sobre uma terceira pessoa. — Seus olhos brilham com o desafio e ele meneia a cabeça.

— Você não pode escolher nada que seja relacionado à Beatrice.

— Eu jamais faria isso. — Ele assente.

— Nem sobre o meu trabalho.

— Seu poder de negociação acabou, cowboy. Quer se resguardar? Basta manter o contrato, se você preza mesmo tanto assim sua palavra, isso não vai ser difícil. — Um som de incredulidade deixa sua garganta quando ele desvia os olhos dos meus, me dizendo, sem pronunciar qualquer palavra, que não acredita que isso será tão fácil. — Alguma outra pergunta sobre as minhas motivações, senhor Maldonado?

— Não, estou satisfeito, por enquanto — debocha.

— É sempre um prazer agradar — digo despretensiosamente, mas a maneira como seus olhos se tornam mais intensos, me dizem exatamente qual foi a interpretação das minhas palavras que passou pela sua cabeça.

— Então vamos falar sobre as suas demandas. Seus horários, dias de trabalho e que tal começarmos pelo lugar onde você vai dormir? — Não sei se a última palavra foi uma escolha displicente ou consciente, mas ouvi-la deixando seus lábios invocou imagens de nós dois em uma cama, e que eu realmente não precisava ter em minha mente.

— Acho que nós dois podemos concordar que o ideal é que seja o mais longe possível de você. — Outra vez, aquele calor incendiário domina os olhos de Hugo, mas vem e vai tão rápido que eu quase me pergunto se estou imaginando coisas. Num piscar de olhos estava lá, no outro não mais.

— Acho que sim — murmura. — Acho que sim.

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As malas paradas ao lado da porta do apartamento aceleram o ritmo do meu coração. As últimas três semanas passaram como um flash. Mesmo com um milhão de demandas para dar conta, desde a criação de planos de aula em massa para o ensino domiciliar de Beatrice até a organização da minha mudança, a sensação de que foi na noite passada que Hugo Maldonado bateu em minha porta é insistente.

Foi como se eu tivesse apenas piscado os olhos e num passe de mágicas, o dia de hoje chegou. Entretanto, se passaram vinte dias. Desde aquela noite, vi Hugo apenas mais duas vezes e eu não poderia estar mais grata por isso.

A descarga de emoções que sua presença provoca em mim é exaustiva. O homem é como um antagonista para todas as minhas certezas, isso sem falar nessa coisa estranha que nos rondou em todos os poucos encontros que tivemos. Basta que eu tenha que lidar com isso diariamente pelos próximos seis meses. Mas, com sorte, ele estará ocupado demais trabalhando e não trocaremos mais do que meia dúzia de palavras. Amém.

— Pegou as cuecas? — Melissa pergunta, saindo da cozinha com duas xícaras de café nas mãos, vestida para ir comigo até o aeroporto.

Hugo ofereceu que eu voasse com ele e Beatrice em seu jatinho, mas achei que impor limites profissionais desde agora era a melhor opção. Nós não somos amigos e eu não sou a babá da sua filha. Um voo comercial vai funcionar tão bem quanto qualquer outro.

— É claro que eu peguei as cuecas, Melissa. — Aceito a caneca que ela me estende e levo a cerâmica à boca. O calor da bebida é reconfortante.

— E as camisinhas? — Me engasgo na tentativa de evitar cuspir café para todos os lados.

— Melissa?

— O quê? Vai que você encontra um gostoso irresistível no aeroporto? É sempre bom estar preparado — defende-se como se sua boca não estivesse disparando absurdos como uma metralhadora.

Olho para minha amiga, meu lar nos últimos seis anos, e mesmo que suas palavras tenham a intenção de afastar sentimentos nostálgicos, meus olhos ardem.

— Eu vou sentir tanto a sua falta — digo, já sentindo lágrimas se acumularem. Mel aperta os lábios em uma linha fina, tentando se impedir de ser contagiada pelo meu sentimentalismo.

— Você vai vir sempre! — afirma não sei para qual de nós dois. — E eu também vou te visitar. — Balança a cabeça energicamente. — Qual é, você vai estar praticamente morando em Jurerê Internacional. Não tem a menor chance de eu perder uma oportunidade dessas de ser oportunista — fala e eu rio em meio às lágrimas. — Você vai me ligar todas as noites! — exige.

— Vou! — prometo.

— E não se atreva a se apaixonar por um homem gostoso de Santa Catarina e decidir ficar lá pra sempre! — continua com a lista de demandas.

— Pode deixar! — concordo, balançando a cabeça para cima e para baixo.

— Tô falando sério, Pê! Preciso de você aqui! Não me faça gastar meu réu primário! — ameaça. — Eu sou uma advogada e assisti How To Get Away With Murder! Eu sei como me livrar de um assassinato! — Isso me faz gargalhar em meio as lágrimas e eu coloco meu café sobre a bancada antes de tirar a caneca de Melissa de suas mãos e puxá-la para um abraço de urso.

— Eu te amo, Mel.

— Eu também te amo, Pê! Muito!

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*** HUGO MALDONADO ***

Abro os olhos para encontrar um pé pequeno sobre o meu rosto e a sensação morna que domina meu peito é uma familiaridade bem-vinda no quarto estranho. Talvez estranho não seja a palavra certa, já que teoricamente é o meu quarto, mas não aquele no qual eu vinha dormindo nos últimos anos.

Beatrice está deitada ao meu lado, ou talvez em cima de mim, atravessada na cama, ocupando mais espaço do que um polvo seria capaz se realmente se esforçasse. Há dois dias, desde que chegamos à Santa Catarina, ela se recusa a dormir sozinha e eu entendo a resistência. É tudo muito novo e a segunda-feira traz consigo uma preocupação ímpar sobre o início da nova rotina da minha filha e também da minha.

Chegamos à Florianópolis no sábado à tarde. Nos instalamos num condomínio fechado de casas em Jurerê Internacional e deixei que minha filha conduzisse nossa exploração da Ilha ao longo do fim de semana. Queria que ela se sentisse confortável ao ocupar os novos espaços de maneira natural.

Beatrice conheceu algumas crianças da vizinhança e amou a praia, disse que parecia com a de casa. Não era exatamente uma verdade, mas não discordei dela. O Rio de Janeiro tem praias lindas, mas as praias da Barra da Tijuca com certeza não se parecem em nada com as de Jurerê.

Minha menina também fez questão de passar algum tempo em cada um dos cômodos da casa nova depois de espalhar todos os porta-retratos que trouxemos. Além disso, ela já elegeu o jardim como o seu lugar favorito.

Sua animação com o espaço tirou um peso invisível do meu peito, mas ainda há muitos outros. Movo o corpo pequeno com cuidado de cima de mim antes de me levantar para ir até o banheiro. Depois da higiene matinal, busco no closet roupas de academia. Pronto para minha rotina de exercícios diários, saio do quarto.

Encontro Silvia, nossa governanta, na cozinha. Ela, a motorista de Beatrice e meu próprio motorista foram os únicos funcionários que vieram conosco. Todos os outros tinham interesses pessoais no Rio de Janeiro que os impediam de se mudar por seis meses. Esse é um dos motivos pelos quais minha rotina de trabalho no escritório Unboxing do Sul só começará em uma semana. Nesse meio tempo, preciso completar a equipe de trabalho da casa, o que inclui uma babá para Beatrice.

— Bom dia, senhor Maldonado — Silvia cumprimenta já me entregando minha primeira xícara de café do dia.

— Bom dia, Silvia. A que horas chegam as primeiras candidatas à babá?

— Às catorze — responde e eu balanço a cabeça, concordando enquanto rolo as notificações na tela do meu celular. — Devo preparar a mesa de café da manhã para que o professor tome café com a Beatrice, senhor? — Um sorriso toma conta dos meus lábios e um som de engasgo leva minha atenção para Silvia.

A mulher me olha estupefata por alguns instantes antes de balançar a cabeça e reassumir a postura profissional de sempre.

Levanto as sobrancelhas, questionando o motivo da reação, mas Silvia finge que nada aconteceu e eu estreito os olhos.

— Não.

— Beatrice vai tomar café mais cedo, senhor? Ou o professor vai aguardar na sala enquanto a menina come? — questiona com uma expressão confusa.

— Nenhum dos dois. Beatrice vai tomar café no horário de sempre, mas o professor não estará aqui. — Silvia inclina a cabeça.

— Mas o horário que o senhor me deu dizia que o professor chega às oito e quinze e a menina sempre toma café às oito.

— Isso. Mas não conte com Pedro chegando aqui às oito e quinze de hoje. Na verdade, hoje Beatrice provavelmente vai ter a manhã livre.

— Senhor? — pede explicações que eu não tenho a intenção de lhe dar.

— Quando Ped4o chegar à porta do condomínio, por favor, me avise.

— Sim, senhor.

— Obrigado, Silvia — agradeço antes de dar o último gole em meu café e ir até a academia.

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— Bom dia — cumprimento segurando minha terceira xícara de café do dia, no hall de entrada da casa, onde espero pela armadilha travestida de homem quando ele chega quase às onze horas da manhã. — Você está atrasado.

Seu olhar fulminante me conta toda a história que eu preciso saber. Ele disse que queria dormir o mais longe possível de mim e eu fui generoso o suficiente para acatar seu pedido, alojando-o no lado sul da Ilha, já que Beatrice e eu estamos instalados ao norte.

O fato de Pedro ter dispensado o motorista que disponibilizei para ele dizendo que preferiria vir trabalhar por seus próprios meios, ah, esse foi um bônus incrível. Ele deveria pelo menos ter feito uma pesquisa sobre o transporte público florianopolitano antes de decidir que empinar o nariz bonito e bater os pés pequenos por nenhuma outra razão além de birra seria uma boa ideia.

— Você é um… — começa, mas eu a interrompo.

— Um excelente chefe que atendeu ao seu pedido de morar bem longe dele? Ou um chefe realmente incrível que te alocou numa das vistas mais bonitas da cidade? Talvez eu seja somente um chefe fantástico que te ofereceu transporte de casa até o trabalho. — Pedro está espumando de raiva e vê-lo assim me dá uma satisfação no mínimo assustadora. Há algo nesse homem que desperta meus instintos mais primitivos. — Já você, por outro lado... — começo e deixo o restante no ar. Ele ri, desgostoso, antes de responder.

— Eu sou um homem estúpido por ter acreditado que seria possível conviver de maneira harmoniosa em um ambiente de trabalho controlado por um homem como você! — Passo a língua sobre os lábios e um sorriso pequeno se pendura no canto deles enquanto observo o rosto de olhos grandes e lábios cheios.

Dou um passo para frente. Pedro imediatamente fica tenso, mas não recua. Mesmo quando não resta mais do que vinte centímetros da distância que nos separava, ainda assim, ele continua no mesmo lugar, me desafiando silenciosamente.

— Não me culpe pelas suas escolhas, Pedro — digo ao aproximar os lábios da lateral do seu rosto sem conseguir me impedir de fazê-lo. Assim como também não consigo me impedir de inspirar profundamente seu cheiro inebriante. — E eu espero que esse atraso não se repita. Minha filha não pode, nem deve ser prejudicada pela sua falta de planejamento. O motorista está à sua disposição, mas se você realmente preferir o transporte público, sugiro que saia mais cedo de casa. — Sua expiração forte atinge minha pele antes que eu me afaste. — Está quase na hora do almoço de Beatrice, hoje vocês só começam às treze — aviso já me virando e tenho quase certeza de ouvi-lo murmurar um xingamento. Dessa vez, o sorriso que toma conta do meu rosto não é pequeno.

#############

— Se controla, porra! — digo para mim mesmo, assinando mais um documento, mas a ordem não surte o efeito desejado e eu me remexo na cadeira, inquieto.

A decoração minimalista do escritório tem tons de cinza e preto, criando um ambiente aconchegante e sóbrio. Olho para o relógio sobre a mesa constatando que não se passaram sequer cinco minutos desde a última vez que conferi as horas. Largo a caneta sobre o tampo de vidro, solto o corpo no espaldar da cadeira, apoio o cotovelo sobre o braço dela e posiciono meu queixo entre os dedos polegar e indicador.

De repente, o tic-tac do relógio parece ser colocado sob altofalantes, tornando impossível que eu me concentre em qualquer coisa que não seja o barulho irritante e ininterrupto. Solto um grunhido, frustrado. Isso não está funcionando.

Levanto-me e a cadeira de rodinhas é impulsionada para trás, mas logo em seguida, volto a me sentar. Isso é ridículo, caralho! Eu estou pagando a droga do salário dele e é da minha filha que estamos falando! Decido! Como a porra de um stalker, saio do escritório e atravesso o corredor até a biblioteca da casa, onde as aulas de Beatrice acontecerão. Onde a primeira delas está acontecendo, na verdade.

Eu disse para mim mesmo que isso era idiotice, mas não consigo me impedir. A curiosidade para ver como a pequena armadilha interage com minha filha supera minha racionalidade e eu quase dou um soco no ar quando encontro a porta da sala de estudos entreaberta. Providenciei que todos os materiais necessários estivessem à disposição das duas e pela fresta na porta, observo enquanto Pedro aponta alguma coisa para Beatrice no imenso globo terrestre sobre a mesa entre as duas.

Não consigo ouvir o que ele diz, apenas acompanhar o movimento daqueles lábios pecaminosos. Porra! De novo, a dúvida sobre o seu gosto dispara pontadas em minha virilha e eu me movo, trocando o peso de perna. O movimento faz a ponta dos meus dedos dos pés esbarrar na porta da biblioteca e ela se abre, silenciosamente, mas, ainda assim, chama a atenção do professor e da aluna lá dentro. Merda!

— Papai! Olha o que eu fiz! — Beatrice se levanta, agarrando um pedaço de papel dobrado que estava sobre a sua mesa e saltitando em minha direção.

Descoberto, entro na sala, fingindo que eu não estava fazendo nada demais, mesmo que o olhar estreitado de julgamento da armadilha esteja fixo em mim.

— O que é? — pergunto, agachando-me diante de Beatrice.

— É um barco, papai! — responde como se fosse óbvio e eu dobro os lábios para dentro da boca, me impedindo de sorrir.

— Claro, minha filha. Claro que é um barco. — Seu rostinho arredondado se vira para o meu e Beatrice estreita os olhos.

— Você não está vendo um barco, está papai? — Pedro arranha a garganta em uma risada muito mal contida e eu olho feio para ele. — Não, amor. O papai não está — admito voltando minha atenção para Beatrice e ele solta um suspiro antes de revirar os olhos, agarrar minha mão e praticamente me arrastar até a mesa diante da qual Per4o está sentado. Minha filha se debruça sobre o tampo de madeira e desfaz, uma a uma, as dobras do papel.

— Presta atenção, papai — pede. Beatrice vai seguindo as linhas marcadas no papel para refazer a dobradura. — O professor Pedro estava me ensinando que antes de existirem os carros e os aviões, as pessoas usavam os barcos para viajar — me conta enquanto trabalha, mas fica em silêncio e coloca a ponta da língua para fora, pensativa, quando chega em determinado ponto em que as marcas de dobra no papel se cruzam.

— É mesmo? — pergunto, querendo estimulá-la, mas sou ignorado enquanto Beatrice tenta a primeira alternativa e percebe que não funcionou. Logo depois, ela testa a segunda e um sorriso satisfeito desponta em seus lábios quando ela percebe que vai dar certo. Armadilha espelha o sorriso, satisfeito por vê-la conseguir resolver o problema sem pedir ajuda.

— É — Be volta a falar. — E ele estava me mostrando que as pessoas iam tanto para lugares perto, quanto para lugares longe. — A última dobra é colocada no lugar e minha filha me mostra um barco tão ruim quanto antes. — Entendeu agora, papai? É um barco. — Aponta para a forma torta sobre a mesa. — Podemos fazer mais um pro papai colocar na água com a gente, professor Pedro? — pede e eu olho instintivamente para Pedro que não retribui o meu olhar. Sua atenção é toda de Beatrice quando responde.

— Por que nós não fazemos melhor, Be? Por que não damos uma folha pro seu pai e o deixamos fazer o próprio barco? Vamos ver se ele aprendeu o que você ensinou? — Há uma doçura em seu tom de voz que ainda não havia presenciado e, de alguma maneira, Pedro se torna uma armadilha ainda mais bela.

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