Capítulo revisado. Esta é a versão definitiva.
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“O relato deste conto foi inspirado e derivado de fatos reais. Os nomes de todos os personagens são fictícios, inclusive do próprio narrador.”
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FRAGMENTOS DE NÓS
Não era do tipo que conforta as pessoas. Nunca tive problemas sérios com a solidão, apesar de ela me fazer companhia em alguns momentos. Sua presença ocasional não me incomodava; às vezes, até a achava bem-vinda. Minha mãe, antes de deixar meu pai para tentar a vida com outra pessoa, não me arrancou pedaços; já havia tantos anos que ela nos deixara que nem seu rosto eu tinha mais em memória. Sempre fui apegado ao meu pai, e ele sempre mostrou que tudo o que sua vida significava estava resumido a mim. Sua rotina puxada nunca tirou seu tempo de ser um pai presente. Passei por minha infância e puberdade como alguém feliz, mas, à medida que adentrava minha adolescência, sentia crescer em mim um vazio. Esse vazio se manifestava como algo que me faltava, e que não era simplesmente a ausência de companhia.
Acreditava que a falta de uma amizade genuína era a origem daquela sensação. Então, Marcelo se apresentou em nossa vida e se tornou meu aliado em tudo. Me aconselhava, me estimulava, me ouvia e muitas vezes abria mão de estar com a namorada que conheceu meses depois de se instalar lá em casa. Eu não entendia, às vezes, suas prioridades, mas, quando certa vez o questionei sobre isso, ele me respondeu que antes dela eu e meu pai já estávamos em primeiro lugar. Isso me fazia sentir que Marcelo era um irmão que nunca tive. Com o tempo, comecei a esvair aquele vazio dentro de mim; no entanto, o tempo o trouxe de volta.
Algo estava mudando dentro de mim desde a noite anterior. Quanto mais conhecia Léo, mais me identificava com ele. Havia algo entre nós que nos unia. Era como se ele fosse um mar de emoções buscando uma âncora, e eu desejasse gradativamente ser essa âncora. Ambos tínhamos sentimentos e emoções fortes, mas, enquanto Léo, em alguns momentos, os expunha demais, eu os escondia, prendendo-os veementemente. Essa prisão de sentimentos sempre foi uma característica minha, pois acreditava que ninguém precisava lidar com as dores e dúvidas dos outros. Marcelo conseguiu quebrar alguns tijolos dessa parede, mas Léo era como um trator prestes a desabá-la.
Ter aqueles momentos com Léo preenchia o vazio que eu sentia. Era como se minha vida estivesse completa; e não me refiro ao sexo, mas à companhia dele. Seu jeito, sua maneira de sorrir, de falar. Além disso, ele era inteligente de uma forma que não se vê todo dia, e eu sabia do seu potencial. Essas primeiras impressões poderiam ser confundidas como uma admiração por um personagem que alguém incorpora ao usar drogas, mas não; essas conclusões eram bem claras para mim.
Acreditei que essa completude que Léo me proporcionava trouxe pensamentos insanos de inveja e ciúme. Tentava imaginar o quanto Caio era importante para Léo, para ele agir daquela forma. Eram pensamentos imaturos e egoístas, mas era o que eu sentia naquele momento. Tentava me convencer de que eu também era importante. Calculava mentalmente as reações e atitudes de Léo para corroborar meu desejo. Ouvi-lo, ter aquele contato íntimo na madrugada passada e, principalmente, termos criado uma conexão fazia meu coração pulsar de esperança, como se estivesse em pé de igualdade com Caio. Minhas esperanças eram ofuscadas quando lembrava que os dois se conheciam há muito mais tempo do que eu conhecia Léo. Era bobagem pensar que eu poderia ocupar um espaço semelhante ao de Caio. Minha disputa pela prioridade em sua vida aumentava a cada segundo em que sentia sua nuca repousada em meu abdômen.
No fundo, sabia que era lamentável me deixar dominar por esses pensamentos, especialmente sabendo que Caio estava lutando pela vida no hospital naquele momento. A amizade deles era algo que eu desejava vivenciar um dia.
Apesar de Marcelo e eu sermos bastante próximos, havia algo que nos diferenciava de Léo e Caio. Era como se Marcelo preenchesse outra camada de mim, como se "irmãos" definisse melhor nossa relação do que "amigos". Por essa falta em mim, meus sentimentos por Léo se tornavam ainda mais confusos. Eu não sabia se o que sentia era amizade, paixão ou apenas uma necessidade desesperada de ser importante para alguém. A neblina refletia a confusão na minha mente, obscurecendo meus pensamentos e sentimentos. Embora ainda fosse jovem, hoje entendo que, naquela época, tudo era mais intenso para todos nós.
SOMBRAS DE NÓS
Observando a neblina se intensificar e preso em meus pensamentos, não percebi que Léo massageava minha mão direita como se estivesse brincando; ele mexia meus dedos e, por fim, entrelaçou minha mão na dele, fechando-a. Não havia como saber o que se passava em sua mente. Eu apenas observava.
- Pedro... Mano, posso trocar uma ideia?
- Fala, Léo. Claro que pode! - respondi, dando um breve aperto na mão que ele segurava.
- O que você acha de mim? Você acha estranho tudo isso que está acontecendo? - escutei as palavras de Léo saírem com angústia. Aos poucos, todas as fortalezas que ele me mostrara se desmanchavam.
Definitivamente, não sabia o que responder. Não estava preparado para aquelas perguntas. Se, naquele momento em que decidi subir as escadas da minha casa, alguém me dissesse que estaria pavimentando um caminho que me levaria a esse momento íntimo e público com outro homem, certamente eu diria que sim: tudo era estranho pra mim. Mas as coisas aconteceram de uma forma tão natural; não sabia se era destino, nem se acreditava nisso, mas tudo se desenrolou de maneira muito sutil.
Quanto ao que eu achava dele, tinha tantas coisas para dizer, tantos pontos de vista que se moldavam a cada momento que passava com ele. Era tudo muito fluido o que imaginava sobre Léo. A única certeza que eu tinha era que ele mexia comigo; ele mudava todo o meu conceito de sexualidade. Via-o como alguém de quem eu me sentia atraído, mas não tinha pensamentos semelhantes aos que geralmente tinha em relação a outros homens.
Logo ele se virou de lado, encostando seu ouvido e parte do rosto em meu peito, me dando meio abraço. Eu desejaria parar o tempo. Seu abraço era tão precioso para mim, pois validava minha importância para ele. Parecia, por um instante, o gesto de um filho buscando conforto em seu pai. Obviamente, quem olhasse de fora acharia que éramos íntimos há anos, ou até mesmo que namorávamos.
Era tudo tão confuso que não conseguia externalizar isso para ele, então respondi, repetindo a pergunta, como se estivesse pensando no que dizer. Mas minha tentativa de ganhar tempo foi destruída pelo imediatismo dele pela minha aprovação.
- Deixa quieto. O que importa é que você está aqui e não tem vergonha de mim… - ele falava com a voz embargada.
Pausei por um instante. O Léo que me ensinou a broderagem, aquela pessoa tão confiante, não estava mais ali. Ele havia se desfeito por completo e, naquele instante, senti que havia conquistado sua confiança.
- Por que... eu sentiria vergonha de você, mano? - perguntei em tom acolhedor.
- Sei lá, mano... Tu já reparou que sou um viciado… um drogado fodido... Sem nada na vida.
- Esse homem acha tudo isso de você? - Falei espontaneamente, com a voz carregada de desaprovação. - Sai dessa, Léo. Você é “o maior presença”.
- Poxa, Pedro… bom ouvir isso de você. — Ele beijou meu peito rapidamente, fazendo-me sorrir. — Valeu, meu fi!
- Sem contar que eu só me importo com o que meu pai pensa. - completei.
Nos calamos enquanto víamos a neblina se transformando em chuva. Perguntei se não seria melhor voltarmos para a barraca, mas ele negou, dizendo abertamente que queria mais um tempo comigo a sós. Sorri.
JUÍZES
Havia falésias um pouco afastadas de onde estávamos, onde se escondia um abrigo natural que a chuva e o mar não golpeavam com tanta força. Era perfeito para nos escondermos da chuva e um bom lugar para nos sentirmos à vontade. Assim, chamei-o para que fôssemos até lá. Logo nos levantamos.
Enquanto caminhávamos pela areia molhada, o som das ondas quebrando na praia se misturava aos pios da chuva que caía em um ritmo constante. O vento soprava forte, levando alguns respingos até nossos rostos. Eu não lembrei da recomendação de Marcelo, mas ele conhecia o lugar e certamente saberia onde nos encontrar.
Dessa vez, caminhamos separados, mas bem perto um do outro. A cada passo, eu olhava em sua direção; seu rosto parecia focado apenas na caminhada, devido à chuva que ficava mais forte. Perguntei se ele estava bem. Sua resposta foi apenas que sentia que Caio, apesar de não ser mais o mesmo, ainda era um amigo distante que o fazia lembrar que não estivera só durante sua queda. Era visível que ele ainda estava preocupado.
— Ele vai ficar bem. O Marcelo disse para você não se preocupar — respondi, dando-lhe um leve tapinha no ombro na tentativa de transmitir um pouco de conforto.
— É muito complicado isso... Seu pai estava numa mesa com drogados... zoado demais isso. A cidade logo vai estar cheia.
— Não se preocupe... Quem conhece meu pai sabe que ele é careta — Falei, sem desviar os olhos dele. — Ele já hospedou todo tipo de gente lá em casa. Ele é muito tranquilo em relação a isso. Relaxe!
— Pode até ser, mas ele não vai querer que você tenha mais contato comigo. Quando ele descobrir que sou usuário também... — Ele baixou a cabeça. — Aí que a gente não vai conseguir nos ver mais.
— Você ainda precisa conhecer o coroa. Ele não é assim, não! — respondi, sendo sincero sobre o que sabia sobre meu pai.
— Sei! — comentou ele, sem mudar a expressão, mas notei o julgamento velado.
Com isso, continuamos a caminhada sob a chuva, imersos em nossos pensamentos, mas confortados pela presença um do outro, embora em silêncio. Já estávamos vendo as falésias um pouco distantes, quando um grito cortou o ar. Nos viramos e vimos a figura de Marcelo, embaçada pela chuva, correndo em nossa direção. Ele estava apenas de sunga e corria protegendo mais o cabelo do que os olhos dos respingos violentos.
— Vocês vão aonde? — ele gritava, esforçando-se para ser ouvido acima do barulho da chuva.
A chuva caía intensamente, então cobrimos nossos rostos com as mãos, inclinando as testas para proteger os olhos enquanto conversávamos com Marcelo, que se aproximava rápido.
— A gente tá indo lá nas falésias. Você vem com a gente? — perguntei, tentando manter um tom animado.
— É lá na cobertura? — perguntou, gritando mais alto do que o necessário.
— É, vamos! — respondi, e vi Marcelo concordar antes de lançar um olhar rápido para trás. A expressão em seu rosto mostrava a decepção por não conseguir decidir se seria uma boa ideia ir tão longe.
Marcelo se juntou a nós e, após poucos passos, mencionou que meu pai havia ligado, informando que Caio já tinha sido atendido e estava fora de perigo. Ele estava tomando soro e dormia tranquilamente, mas talvez só recebesse alta à noite, pois a quantidade de droga havia sido alta.
— Ele perguntou se eu podia ligar para o Luiz ir pra lá, pra poder voltar pra cá.
— E o que você disse? — perguntei curioso, enquanto Léo o olhava com atenção.
— Falei a verdade: que ele estava dormindo e que dificilmente acordaria com a ligação. Aí ele disse que a gente ficasse aqui até a chuva diminuir. Assim ele ficaria mais tranquilo e…
— Fez bem. O Luiz não iria mesmo se conseguisse acordar. Ele está pouco se importando com a gente — Léo interrompeu, com a frustração evidente na voz.
— Que é isso, cara? O Luiz tem suas falhas, mas não deixaria vocês na mão! - argumentou Marcelo.
— É? Você realmente acha isso dele? — gritou Léo, visivelmente irritado. — Então, pede pra ele deixar eu seguir minha vida... Conseguir um emprego como você fez... Tentar ser alguém nessa porra de vida.
Tanto eu quanto Marcelo arregalamos os olhos, assombrados pela agressividade na voz de Léo, algo novo para nós dois naquele momento.
— Do que você está falando, Léo? Você pode sair quando quiser, cara. — Respondeu Marcelo, com firmeza.
Léo permaneceu em silêncio, virou as costas e balançou a cabeça em desaprovação. Eu não reagi; apenas olhei rapidamente para Marcelo e continuei a caminhar atrás de Léo, que acelerou o passo após seu desabafo. Marcelo diminuiu o ritmo e segurou minha mão.
— Você sabe do que ele está falando, né? — Sussurrou Marcelo, sem perceber que sua voz provavelmente não seria ouvida em meio ao ruído da chuva. — Hoje você me disse algo sobre chantagem. Estou percebendo que tem algo errado, Pedro. Vai me contar ou não?
— NÃO! — respondi de forma brusca. — Isso é coisa dele. Você não pode fazer nada e não tem nada a ver com isso.
— Tem certeza de que eu não posso fazer nada?
Encarei Marcelo com uma expressão fechada, mas no fundo, havia uma pequena chama de esperança ao perceber a determinação em seus olhos. Léo olhou para trás e mandou que nos apressássemos.
— Pedro, meu irmão... Confie em mim. Eu conheço você, mano. Acho que te entendo. — Disse, com a voz suave.
— Isso não é da sua conta, Marcelo! Presta atenção, cara! — Respondi, irritado, sem saber bem por que de minha agitação.
Marcelo inclinou-se para a frente, tentando olhar nos meus olhos, mas eu só conseguia ver as mechas curtas de seu cabelo molhado cobrindo sua testa, não conseguindo descer até seu olhar.
— Você pode até tentar se enganar, mas eu sei que você está gostando do Léo... — ele pausou, olhando para a areia enquanto pensava em como continuar. — E... de verdade, Pedro. Está tudo bem, cara. O que você não pode é achar que o problema do Léo, que está te incomodando, não é importante para mim.
— Vamos logo, mano! Léo vai desconfiar que aconteceu alguma coisa com Caio e você está escondendo dele. — Tentei correr, mas fui interrompido pela mão de Marcelo segurando meu braço.
— Pedro, pare com essa mania de guardar tudo para você. Eu estou sempre do seu lado! — Marcelo dizia, enquanto minha visão ainda não conseguia alcançá-lo. — Deixa pelo menos eu saber se posso ajudar. Porque se o Luiz está no meio disso, eu tenho certeza de que consigo.
— Vou pensar, cara. — Respondi amargamente, tentando encerrar o assunto.
— Você sabe que vou trabalhar amanhã. Não sei nem se voltarão aqui na cidade ou se seu pai aceitará o Luiz depois de hoje.
— Mano, se eu decidir contar, você vai saber na hora. — respondi, forçando o braço para me soltar dele. Com a cabeça baixa o tempo todo, não fui capaz de ler sua expressão.
Fiz uma breve corrida para alcançar Léo, enquanto Marcelo me acompanhava. Durante todo o percurso, minha mente se debatia, questionando se esconder aquilo dele era a decisão correta.
ACÚSTICA SILENCIOSA
A falésia se erguia imponente, exibindo uma silhueta de rochas majestosas. Seus rochedos brilhavam em meio à chuva, destacando-se contra o céu escuro. De um dos lados, havia um grande rochedo que se sobressaía. Ele possuía uma parte plana em cima, onde os banhistas podiam se sentar e apreciar a vista do mar. As laterais eram altas e formavam um tipo de parede que protegia do vento e do sol intenso. Era como estar em um pequeno esconderijo feito de pedra.
- Olhem ali! - apontei animadamente, dirigindo-me ao rochedo. Rapidamente, corremos na direção dele.
As gotas grossas nos acertavam como pequenas flechas enquanto corríamos pela praia em direção ao abrigo na falésia. Eu o conhecia bem e, a cada passo apressado, lembrava-me de como ali seria um ótimo lugar para nos afastarmos do dia que nos assombrava.
Dentro do rochedo, havia uma abertura que levava a uma cavidade agradável, onde era possível se refugiar tanto se a chuva começasse a cair quanto se o sol estivesse muito forte. O ar era fresco. Ali dentro, era possível ouvir o som suave das ondas batendo na rocha. Quem se abriga nesse lugar pode observar a beleza do oceano e sentir a brisa. É um espaço perfeito para relaxar, conversar com amigos ou apenas apreciar a beleza da natureza ao seu redor.
Finalmente, alcançamos o abrigo, um lugar seguro e de fácil acesso. Era diferente para mim estar ali, pois, em todas as outras vezes, o local estava cheio. Ao entrarmos, ficamos encantados com sua beleza. O som da chuva tornou-se um suave tamborilar sobre as pedras ao nosso redor.
- Esse lugar é diferenciado, viu? - Disse Marcelo ao caminhar, tocando as paredes rugosas.
Léo e eu nos encaramos e sorrimos um para o outro, satisfeitos pela nossa escolha.
- Esse lugar é inacreditável! - Falou Léo, um pouco ofegante da corrida, respirando fundo enquanto desviava o olhar de mim para observar os detalhes à nossa volta.
Nos acomodamos dentro do abrigo, e a sensação de segurança comum para nós três. Era como estar em um lugar que a natureza havia moldado especialmente para aquele momento. O ar fresco e o som das ondas quebrando lá fora traziam uma tranquilidade única, contrastando com a tempestade que se desenrolava.
Escolhemos o lugar mais bem iluminado e nos sentamos, com Marcelo bem ao meio. Ele abraçava as próprias pernas, tentando se aquecer do frio. Algumas vezes, Marcelo se levantava para mostrar a Léo algum detalhe da formação rochosa. A maior parte do tempo consumíamos admirando a torrente de chuva se misturando com o mar; era uma vista inconfundível. A conversa, em boa parte do tempo, era aleatória; porém, nossos pensamentos eram naquele momento sincronizados.
— Que droga de dia, hein? — Comentou Léo.
— É… ainda nem acabou... — Respondeu Marcelo.
— E o coroa? Vai ficar lá mesmo?
— Ele disse que não se sentiria à vontade saindo do hospital sem um parente de Caio por perto — explicou Marcelo.
— Que chato para o coroa. Ainda nem dormiu desde ontem. — Comentei. — Típico dele.
— Né isso. — concordou Marcelo. - O doutor tem um coração muito bom.
— Ele não desconfia do Luiz, não? Ele realmente acreditou que ele é nosso tio? — perguntou Léo, com a voz baixa e cansada.
— Douglas não liga muito para essas coisas. — disse Marcelo. — Até hoje nunca o vi julgando ninguém.
Permaneci em silêncio. Meu pai, de fato, é uma boa pessoa, mas não é santo. Ele só se preocupa para que seus pensamentos não sejam prioridade em uma conversa. Se eles soubessem o quão astuto ele realmente é.
— Então, quanto tempo vocês pretendem ficar aqui? — Marcelo perguntou. — Essa chuva parece que vai demorar e logo anoitece.
— A gente ia passar só mais um tempo para trocar melhor algumas ideias. — respondeu Léo, como se fosse uma dica de que a presença de Marcelo, por mais que não incomodasse, de certa forma estava impedindo Léo e eu de nos comunicarmos abertamente.
— Eu vou precisar voltar para a barraca. Seu pai pode ligar. — Marcelo falava com firmeza enquanto se levantava. — Vocês também precisam ficar mais à vontade. Não vou atrapalhar mais... — complementou, já caminhando para fora.
Surpreendentemente, não me constrangi; pelo contrário, a maneira espontânea como Marcelo se expressou trouxe-me uma sensação de acolhimento, como se todos estivéssemos do mesmo lado. Olhei para o lado e notei que os olhos de Léo estavam prestes a lacrimejar, mas rapidamente desviei o olhar.
Antes que conseguíssemos dizer ao menos um “até logo”, Marcelo bateu a mão na testa, de forma teatral, e virou-se para me encarar. Ele mencionou que meu pai dissera que, se não tivesse tempo para voltar e nos buscar eu , eu precisaria falar com Dona Lúcia para assinar a nota da conta. Aquilo me parecia um total absurdo. Dona Lúcia conhece meu pai há anos; aliás, desde sempre. Além disso, ele já me pedira várias vezes para ir à barraca resolver os assuntos com ela, pois não tinha tempo, e na época o Pix ainda não era tão popular, especialmente para Dona Lúcia, que evitava acompanhar a tecnologia. Nunca houve qualquer papel para assinar. Eu franzia a testa, atordoado, mas percebi que ele me lançou um código para que pudéssemos ficar a sós e tentar me convencer a falar sobre o o que estava acontecendo . Olhei para Léo e não notei nenhum sinal de desconfiança.
Apesar de perceber seu empenho em querer me ajudar, fui arrogante ao desviar o olhar e manter o silêncio como resposta. Léo acenou para ele, enquanto, com minha vista longe dos olhos de Marcelo, levantei a mão sem acenar.
Quando ele saiu, meu silêncio foi acompanhado de pensamentos que ressoavam em minha mente como um assunto inacabado. Por um momento, arrisquei mais uma vez pedir ao universo, esperançoso que ele me atendesse novamente. Desta vez, queria um sinal pra saber se realmente eu estava fazendo a coisa certa em não compartilhar aquilo tudo com Marcelo.
ENTRELINHAS
Me aproximei de Léo pela direita, ocupando o ponto vazio que Marcelo deixara entre nós.
"Bonito, né?" iniciei a conversa. Léo, olhando para mim e sorrindo, respondeu que achava bacana e que nunca tinha visto nada parecido. Comentei que já tinha estado ali algumas vezes, mas nunca com chuva. Léo riu observando a intensidade e perguntou, brincando, se era possível que ela ficasse mais forte. Eu expliquei que, embora as chuvas fossem raras na cidade, elas eram longas e que aquela talvez se estendesse até o outro dia. Ele assentiu, deixando o espaço para o silêncio.
— Posso te fazer uma pergunta? — tomei impulso de coragem.
— Sempre! Manda ver! — Sua voz confiante.
— Você acha que Caio sente alguma coisa por você? — arrisquei para sondar seus sentimentos por ele.
— Caio? Sente sim: amor e ódio. — respondeu, olhando para o mar, e com o rosto um pouco surpreso com a minha pergunta.
— Amor e ódio? Como assim? — perguntei, imediatamente, sem entender o clichê da resposta.
Léo silenciou por um instante, talvez tentando encontrar as palavras certas.
— Lembra quando falei sobre o pai dele ter dado aquela deixa sobre nós dois? No quintal, naquela noite? — Respondi que sim.
— Pois é, eu não falei antes para não me alongar, mas no dia seguinte ele me acordou furioso. Queria que eu fosse embora... Disse que aquilo não ia mais rolar, que ele não era viado, que não dava mais certo a gente beber ou ficar no quarto. Ele me ameaçou de verdade. Eu fui embora sem entender nada.
— Sério, cara? Que porra foi essa?
— O pai dele entrou na cabeça dele. Tanto que, na mesma noite, quando saímos para nos acertar com Luiz, ele precisou se drogar muito para conseguir chegar perto de mim. — Léo falava sentindo o peso da lembrança. — Ele ficou muito abalado pelo pai ter o encurralado.
Eu fiquei estranho por Caio ter reagido assim com Léo. Quando ele me "forçou" a receber o oral no quarto, parecia que sempre gostou daquilo. Nunca poderia imaginar que um dia já tivesse tido problema com o contato com outro cara.
— Deve ter sido difícil ter visto essa atitude de Caio com você, né?
— Foi..., mas sabe o que foi mais difícil? — ele olhou para mim como se eu pudesse imaginar algo. — Foi imaginar que você podia fazer algo parecido comigo.
— Por isso que você falou aquilo sobre a pessoa se arrepender de fazer certas coisas depois de se drogar. — Falei enquanto ele assentia.
— Você e seu pai receberam um chá de espera porque eu estava insistindo que não dava certo, já Caio estava pronto e decidido. Marcelo que me convenceu.
— E o que ele falou para te convencer?
— Que você iria gostar de me ver. — ele falou com a voz um pouco envergonhada. — Ele gosta de você, sabia? Falo assim... como amigo mesmo. Deu para perceber.
Fiquei com a consciência pesada, um pouco, mas resolvi quebrar um pouco a conversa. Não estaria preparado para falar sobre mim naquele momento.
— E como você e Caio resolveram?
— Não resolvemos. Nos afastamos por muitos dias. Eu até tinha esquecido que a cocaína existia. Só se vicia nessa porra quando se cria o hábito. Tinha voltado de boa para minha rotina. — Ele parou para tomar um gole de água da garrafa esquecida por nós. — Ele me ligou com a voz alterada, de bebida e pó, dizendo que queria falar comigo, que estava mal.
— E aí? - Perguntei ao receber a garrafa de suas mãos.
— Aí que ele queria mesmo era voltar a ganhar dinheiro comigo. Quando cheguei lá em sua casa, nós ficamos a sós no mesmo quarto que ele disse que eu não entraria mais. Foi quando ele me falou detalhe a detalhe do que o pai dele disse e como se sentiu por isso. Só falou porque estava lombrado demais.
— É, o cara errou e reconheceu que tinha exagerado, né?
— Ele não reconheceu. Não me pediu desculpas. Apenas falou dele. Não perguntou como eu tinha me sentido... ele apenas desabafou.
— Pesado.
— Pesado foi ele usar o que ele fez e o que sentia com seu pai para me convencer a aceitar a proposta de Luiz.
- E foi assim que se formou o grupo dos Tekados? - perguntei, tentando surpreendê-lo por eu saber esse nome simbólico. Ele não demonstrou muita surpresa, pois era óbvio que foi o Marcelo quem me falou o nome do grupo dele.
- Esse nome já existia antes de mim. Uma vez, me disseram que um dos boys comentou em uma mesa com Luiz e outros caras na brincadeira. Luiz gostou e batizou.
- Essa porcaria de esquema tem até história… - Comentei sorrindo. - Espera aí, mano. Esse grupo não é só você e Caio, não?
Léo sorriu indignado com o que seria a resposta.
- Pedro, o negócio é maior do que a gente pensa. Nesse pouco tempo, eu já conheci vários outros. Caio conhecia uns "boys vida louca" e recrutou. - Ele falava decepcionado. - Por causa da dedicação de Caio, ele virou o "filhinho" de Luiz, mas eu digo que é a linha de ovos dele. Pior que isso é que eu entrei no barco e virei um dos “favoritos” de Luiz… não tenho orgulho disso.
- Esse título de favorito é oficial, é? - lancei a brincadeira, por ter ouvido de Marcelo sobre sua posição em relação a Luiz.
- O quê? - ele perguntou, sem entender.
- Só estou brincando. Marcelo hoje me falou que, quando era do grupo, Luiz o considerava o favorito. - Léo riu.
- Marcelo não é o favorito de Luiz e nunca foi. Luiz é apaixonado por Marcelo. - Ele falou com tanta firmeza que lembrei da certeza de Marcelo em conseguir qualquer coisa de Luiz.
- Sério isso?
- São os comentários que rolam no grupo. E também desconfiei de como ele falou de Marcelo durante a viagem pra cá. Era insuportável. Pensei até que o cara fosse o maior PNC. - Falou com a voz um pouco alterada. - Mas percebi o quanto ele é humano. Deve ser por isso que Luiz deve ser apaixonado por ele.
- E Caio? Será que Luiz é apaixonado por ele agora? - perguntei, brincando novamente pra tentar aliviar o peso da conversa. Léo percebeu, mas mesmo assim respondeu.
- Caio, depois de um tempo, simplesmente se alienou. Curtia de todo jeito e, depois que conheceu uns boys do grupo, aí que piorou.
- Por que você acha isso?
- Eu notei, né? Sempre pensei que ele estava esperando um momento pra se aproveitar de mim. Tipo, conseguir fazer eu me sentir como ele se sentiu. Ele é vingativo, Pedro.
- Ele é imprevisível. Já tô ligeiro.
- Depois do sítio, percebi ele e Luiz muito próximos. Sinto um frio na espinha quando imagino ele ajudando Luiz de alguma forma nisso tudo. – Léo falava sem força na voz. – Se ele tinha a intenção de fazer eu me sentir como ele, então deu certo. No outro dia só consegui me sentir um lixo.
- Entendo você, mas nem isso fez você ser agressivo com ele. - comentei e logo em seguida ele concordou.
- O pior foi quando descobri que tinha uma câmera no quarto. - Léo falou enquanto jogava algumas pedras além de uma pequena poça de água.
- Oxe! E você não tinha visto a câmera no quarto? Talvez nem tenha câmera lá. - Falei empolgado.
- Eu fui lá no sítio outro dia. Fui até o quarto e a câmera estava lá. É real, mano.
- Mas podia ser que não estivesse funcionando no dia. – Tentava ainda achar uma brecha de esperança.
- E eu vou confiar nisso, Pedro?
- Eu arriscaria. - Respondi, me posicionando à sua frente.
- Por quê? Você acha que eu não tenho nada a perder? – Dessa vez, uma das pedras atingiu muito além da poça.
- Não é isso, meu irmão. É que é melhor do que viver nessa prisão. – Falava enquanto prendia minhas mãos em seus ombros.
- Essa prisão tira meu sustento e mantem meu vício. – Ele falou, com os polegares apertando os olhos. - De que adianta eu arriscar tudo e depois ficar sem nada?
- Você não ia ficar sem nada. - Falei, me deixando sentar novamente ao seu lado. - Eu seria seu amigo... Te apoiaria... Você não ficaria só!
- Você tem sua vida, Pedro... – Ele procurava alguma pedra, mas não encontrou. - Sou mais velho que você, e você é de outro nível... Seu pai não ia aceitar essa amizade.
- Tá julgando meu pai de novo...
- Não estou julgando... – Ele disse apontando para algumas pedras próximas a mim. - Seu pai é rico! Enquanto eu sou apenas um miserável, sem profissão...
- Mas por que ele se importaria com isso? - Retruquei, lançando algumas pedras em sua direção, como se oferecesse munição para seu devaneio. - Não é necessário ter tanto para manter uma amizade verdadeira.
- Você ainda tem muito a aprender, Pedro.
Senti o peso das palavras. Baixei a cabeça, perplexo, incapaz de compreender a profundidade de sua visão. Ele não sabia o que meu pai realmente pensava dele. O silêncio retornou entre nós, enquanto ele insistia em um pensamento que já havia tomado forma em sua mente.
Quando finalmente elevei a cabeça, percebi que, às vezes, minhas palavras não eram suficientes para convencer Léo. Agarrei algumas pedras e o acompanhei nos lançamentos, adentrando em seu breve devaneio.
RASCUNHO DE NÓS
Ele me olhou com um brilho ambíguo nos olhos e disse para deixarmos aquele assunto de lado, pois Caio já estava bem. Aquelas palavras me deixaram intrigado. Apenas algumas horas antes, ele estava completamente despedaçado, com o rosto encharcado de lágrimas por Caio. A mudança repentina de atitude me deixou perplexo.
— Achei que fosse bom para você falar sobre ele. — Murmurei, tentando entender o que havia mudado.
Léo sorriu de forma enigmática, como se tivesse plena consciência de que eu hesitaria em prosseguir. Depois, virou-se, ajustando suas pernas de maneira íntima ao meu redor. Recordo-me de como a perna esquerda dele repousou delicadamente sobre a minha, enquanto a perna direita apoiou minha costa, como se fosse o encosto de uma poltrona aconchegante. Aquela posição criava uma sensação de conforto, misturada a uma eletricidade que eu não conseguia ignorar.
— Você não se importa, né? — ele perguntou, sua voz suave se misturando ao som das ondas. O tom não era apenas curioso, mas também provocativo.
— Claro que não. Estamos à vontade aqui. O que é nosso fica entre nós — respondi, tentando manter a voz firme, mesmo que o nervosismo estivesse crescendo em meu peito.
Então, Léo começou a se abrir de uma maneira que eu não esperava.
— Pedro, meu choro não foi por ele, mas por mim. A ideia de que um dia isso também pode acontecer comigo me assombra. É angustiante. Não quero que nada aconteça com Caio, mas não sou mais tão próximo dele assim. Seria fácil me afastar se pudesse. — Suas palavras saíam carregadas de um desespero oculto.
— Ele tem uma energia pesada, né? — soltei, um pouco envergonhado.
— Não é só isso. Ele mudou, e não mostra interesse em voltar atrás — a frustração na voz de Léo reverberava em mim. Quando ele terminou de falar, inclinou-se contra meu ombro, e por um momento, o silêncio que se seguiu era pesado, carregado de incertezas.
— Obrigado, mano. De coração. Obrigado! — Ele disse, quase em um sussurro, enquanto um beijo leve em meu ombro selava a conversa, deixando uma marca indelével na minha pele. O toque do seu bigode me fez sentir um misto de confusão e conforto.
— Pelo quê? — indaguei, meu coração acelerando.
— Por não me tratar como um noiado — a vulnerabilidade em sua voz era clara.
Era evidente que Léo lutava com sua autoestima. Ele havia estado à deriva, preso em um ambiente que o empurrava à autodestruição, vivendo numa constante necessidade de proteção. Quando encontrou abrigo ao meu lado, seu verdadeiro eu emergiu.
— Eu dou valor a você, Léo. — declarei.
— Eu sei. Aliás, eu sinto... Ah, e outra coisa: esquece o que te falei mais cedo — sua risada leve quebrou a tensão, mas esse riso não conseguiu ocultar a profundidade de seus sentimentos, ao retomar o assunto sobre minha primeira vez. Era como se ele não se sentisse digno nem especial o suficiente pra isso.
A cada palavra que trocávamos, o nervosismo dentro de mim aumentava, um eco de emoções não ditas pulsando entre nós. As lembranças dos meus dias sem vida voltavam à tona: momentos com Carla, uma namorada cujo relacionamento era tão monótono que se tornava quase uma obrigação. Em contraste, ali estava eu, prestes a revelar um lado meu que nunca havia explorado.
— Então você não quer isso? — Meus olhos se fixaram nos dele, buscando uma resposta.
— Não é bem isso. Eu quero. Nada mudou. Só não precisa ser dessa forma, como uma obrigação. Se um dia acontecer, que seja de forma tranquila, sabe? Sem drogas, apenas nós dois e a sinceridade. — Sua voz mostrava um lado vulnerável e esperançoso.
Concordei, segurando sua mão, entrelaçando nossos dedos como um pacto silencioso. — Promete? — Pedi, o coração acelerado pela expectativa.
Ele observou nossas mãos unidas antes de responder. Talvez associando minha atitude com as mãos como sendo a mesma que a dele mais cedo.
— Vamos combinar assim: se um dia a gente se encontrar de novo e estivermos no clima, a gente transa. Sem drogas. Fechado?
— Fechado! — eu disse, selando a promessa com um beijo no dorso de sua mão, um gesto que se sentiu como uma reinvenção de tudo.
Finalmente, vi um sorriso largo e verdadeiro em seu rosto. As feições dele brilhavam com uma energia vibrante, e naquele instante, senti o volume de sua cueca pressionar contra minha cintura. Um arrepio percorreu meu corpo ao perceber que, provavelmente, ele também notou o volume do meu. Éramos dois jovens de sunga, entrelaçados em um lugar isolado, e aquela cena era, no mínimo, sugestiva. Para quem estivesse à distância, um olhar poderia parecer inocente, mas a atmosfera carregava uma possibilidade entre nós.
Enquanto os pensamentos dispersos continuavam em minha mente, lembrei-me dos meus colegas de estudo e das tardes jogando futebol sob o sol com os colegas do bairro. Aquelas memórias traziam um sorriso nostálgico aos meus lábios, mas logo se misturaram a uma pontada de preocupação. Pensei na Carla e no que ela diria se visse aquela cena se desenrolando diante de seus olhos. Meu namoro com ela sempre foi monótono, uma rotina sem vida. Conversas escassas e encontros que mal aconteciam três vezes por semana se tornaram um fardo pesado. As mensagens eram quase inexistentes e, por incrível que pareça, aquela ausência nunca me incomodou. Na verdade, encontrar Carla às vezes parecia mais uma obrigação do que um momento de prazer. O tempo parecia escorregar entre meus dedos, e a repetição diária tornava-se um eco sem emoção. Agora, finalmente compreendia o vazio que isso me deixava, como um espaço escuro e amplo no meu peito.
Pode soar ousado da minha parte, mas acreditem: eu não estava apaixonado por Léo. Até aquele momento, minha vida parecia uma tela em branco. Passava grande parte do tempo em casa, mergulhado nos estudos ou preso àquela relação sem cor. As viagens que fazia eram limitadas ao meu pai. Amigos? Eram inexistentes, apenas coleguismo. Meus primos eram uma miragem distante, raramente se fazendo presentes em minha vida. A ação mais ousada que eu tivera até então — e que me parecia uma aventura épica — foi fumar um baseado com a turma do futebol, um momento que mais me deixou faminto do que realmente satisfeito. O que estava acontecendo ali, entre Léo e eu, era o resultado de uma coalisão de fatores: uma nova experiência, uma carência que me surpreendia, a ebulição dos hormônios, o cansaço intermitente, a ressaca pós-droga e uma curiosidade gentil que desafiava as normas que eu sempre conheci.
Confesso que seria injusto da minha parte dizer que não sentia nada por ele naquele momento. Havia algo ali, uma conexão intensa, mas não era tão explosiva quanto eu imaginava. Era uma mistura de emoções, uma paleta de incertezas adequada ao meu estado confuso. A curiosidade pulsava, mas o medo de me perder naquelas águas desconhecidas também sussurrava em meu ouvido. A sensação era nova e ao mesmo tempo familiar, como um farol chamando um barco perdido na noite.
A LEVEZA DO AGORA
— Acha que a gente deve voltar? — perguntei, sentindo um misto de relutância e desejo.
— É verdade. Não quero que o cara fique sem graça com a gente aqui, e eu ainda quero tomar umas. — A luz nos olhos de Léo já havia surgido nesse momento.
Nesse instante, ele deu um pulo, me puxando pela mão para fora da falésia. Apesar da sua energia ter se elevado, ele tinha cuidado enquanto chegávamos à praia.
— Que foi, maluco? Surtou? — Brinquei, rindo da súbita mudança enquanto voltávamos a chuva.
— Quero descobrir se ainda estou em forma. – A intensidade da sua expressão parecia provocar algo mais profundo em mim.
— É o que, maluco? — Ri da maneira dele, tentando esconder a admiração pelo seu entusiasmo.
— Oh, filhote, preste atenção... O negócio é o seguinte: Quem chegar por último é a mulher do padre! — Ele dizia isso com um brilho travesso nos olhos, enquanto começava a se aquecer com pulos alternados.
— Você é criança ou o quê? — O tom da minha voz era levemente cínico, mas eu realmente admirava sua capacidade de se divertir.
— Podemos ser crianças só por alguns minutos. Algum problema com isso? — Ele se aproximou de mim, com uma simpatia que só ele tinha, e chacoalhou minha cabeça com um leve toque. — Algum preconceito, meu maninho?
— Ah, é? Sabia que sou o melhor do meu time de futebol? — Me gabava, meio exagerado, enquanto começava a alongar as pernas, tentando imitar sua energia.
— E daí? O que isso muda? – Seus movimentos eram infantis e diferenciados.
— E daí que você, meu amigo, vai ser a mulher do padre! — E, sem olhar para trás, saí correndo, rindo como uma criança que ele tirou dentro de mim.
- EI! - Gritou correndo atrás de mim.- Assim não vale, moleque.
A liberdade pairava no ar enquanto corríamos, sem competição; apenas um jeito de liberar nossos medos e frustrações. O riso de Léo ecoava como uma música que me elevava. Durante o caminho, percebi que ele tinha o talento de fazer um "mortal", enquanto eu só conseguia fazer uma plantada de bananeira. Essas pequenas competições eram parte de algo maior, um ciclo de amizade que a vida nos dava.
De repente, um relâmpago cortou o céu. O trovão que se seguiu parecia o próprio chamado do universo, anunciando algo. Ambos paramos, meio surpresos, num misto de risadas e sustos. Agora, era difícil saber quem ria mais: se era Léo de mim ou eu dele. A própria situação era tão "ridícula", vista sem contexto, que precisei de alguns segundos para me recompor antes de recomeçar a caminhada, nossa respiração ainda acelerada e solta.
— Olha a sua cara, maluco! — comentei, rindo das expressões que ele fazia enquanto tentava imitar o trovão.
— E você não fica atrás! — respondeu ele com um sorriso, cada palavra preenchendo a distância entre nós, enquanto caminhávamos.
Quando avistamos a barraca, já começávamos a recuperar o fôlego. Tentei retomar a corrida, mas Léo me impediu ao cruzar o braço em volta das minhas costas, como se quisesse me proteger de algo. Voltamos exatamente como saímos, mas desta vez em posições opostas, mal conseguindo conter a alegria que nos cercava.
— Esse momento é insuperável, Léo. — Eu não conseguia colocar em palavras o que estava sentindo, mas era uma alegria genuína.
— É, cara. Fizemos o tempo parar por um instante, não foi? — Léo sorriu, e naquele sorriso havia um reconhecimento da profundidade do que estávamos vivendo.
Não conseguiria descrever o quanto foi importante esse tempo na falésia e divertido a volta pra barraca, mas posso afirmar que foi uma das melhores experiências que já tive ao lado de Léo. Dessa época, esse momento foi de longe o mais forte e inesquecível entre nós.
O PESO DO REMORSO
Mesmo em meio ao toró, consegui avistar a escada que leva os visitantes da faixa de areia até a área elevada onde a barraca estava construída.
- Olha lá o Boy Marcelo na gela! Agora a sede aumentou. Bora! - disse Léo iniciando uma corrida enquanto eu o incentivei a continuar que estaria tudo bem. - Espero você lá!
Quando Léo chegou, eu ainda estava um pouco distante e notei Marcelo caminhando pra fora da barraca e se expondo a chuva. Curiosamente notei, mesmo de longe, que seu cabelo não era prioridade; pois ele não o tocava naquele momento. E aquele olhar que me perseguia desde mais cedo continuava a tentar encontra o meu.
À medida que me aproximava, a figura de Marcelo se destacava à distância, e uma onda de remorso me envolveu. Recordei o quanto fui injusto com ele. Marcelo sempre foi um porto seguro, uma presença acolhedora e solidária em momentos de incerteza. Suas intenções eram sempre as melhores, e ele esteve ao meu lado em momentos críticos, oferecendo conselhos e apoio incondicional. Em questão de horas, esqueci todo o peso da amizade que ele me oferecia, uma conexão que eu muitas vezes considerava mais forte que a de irmãos.
Ele estava posicionado no alto da pequena escada, a expressão no rosto revelando uma mistura de expectativa com preocupação. Com um gesto rápido, bateu a mão no pulso, como se quisesse me lembrar da importância do tempo que passava. Por um instante, achei que ele estivesse me apressando a ir embora, mas rapidamente percebi que a minha interpretação estava equivocada. A intensidade do nosso laço me fez querer acreditar que, na verdade, ele aguardava ansiosamente a minha resposta sobre como poderíamos ajudar Léo e, por consequência, a mim mesmo.
Enquanto me aproximava, a chuva intermitente dificultava nossa troca de olhares, mas Marcelo, com sua inteligência aguçada, percebeu a mudança em meu semblante. Quando alcancei o pé da escada, nossos olhos finalmente se encontraram e reconheci na sua expressão a confirmação de uma compreensão mútua.
— Então, finalmente você decidiu assinar a conta de seu pai? — Indagou ele, sua voz carregando a sutileza do código que só nós dois entendíamos, uma pergunta retórica repleta de significados ocultos.
Desviei o olhar para Léo, que estava absorto em sua cerveja, sorrindo despreocupado; como se a felicidade simples do momento fosse o único objetivo ali. Esse instante era um refúgio para ele, e eu não queria que essa realidade se desfizesse tão rapidamente. Desejava ardentemente fazer parte da sua reconstrução, do seu retorno ao que poderia ser um novo começo.
Marcelo, meu grande amigo e aliado, estava ali, pronto para me ajudar. Senti uma determinação renovada ao subir a escada e, em um gesto de camaradagem, bati levemente em seu ombro.
— Claro, irmão. Vou precisar de uma caneta. — Respondi codificando minha decisão. Ao me dirigir pra dentro do ambiente coberto, dei uma rápida olhada para trás e vi o sorriso de Marcelo, feliz pela minha decisão. Sorri de volta com o olhar agradecendo por não desistir de mim.
Com o coração acelerado, atravessei o salão do restaurante e acenei rapidamente para Léo, que sorriu me gerando forças. O som das conversas nas mesas se confundia com o barulho da chuva e a música ambiente. O cheiro forte de comida e bebida me fazia esquecer como era bom inalar o aroma da madeira envelhecida que sentíamos quando o lugar estava sem muito cliente.
A essência de meus passos determinados era um eco das promessas que ainda poderíamos cumprir, das risadas e dos sonhos que compartilhamos. O peso das minhas inseguranças evaporavam a cada passo. Compreendi, afinal, que aquilo não era somente sobre Léo, mas sobre um futuro que um dia poderíamos construir. Eu finalmente havia encontrado um propósito para a minha vida.
Marcelo seria a peça-chave. Ele possuía a confiança necessária para colocar um fim naquele emaranhado confuso e doentio que aquele maldito grupo representava.
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