CAPÍTULO ONZE
*** PEDRO FERNANDES ***
— Obrigado. — O motorista do Uber me responde com um aceno. Me obrigo a abrir a porta do carro e saltar para fora, ainda que minha vontade seja a de dizer para o homem de pele morena e cabeça calva que isso foi um erro e que ele deve me levar de volta ao lugar onde me buscou.
Miguel não se oporia, tenho certeza. A viagem é financeiramente lucrativa e ele sequer precisaria esperar que o aplicativo lhe indicasse um novo passageiro.
Nada nunca pareceu tão intimidante quanto a casa diante de mim, mesmo que eu tenha vindo até ela com as minhas próprias pernas ao longo de toda a semana. Mas esse é o problema, hoje é domingo, eu não deveria estar aqui.
Umedeço os lábios. Solto o ar pela boca, olhando para a porta, criando coragem para atravessar o caminho até ela. Meu coração bate num ritmo incoerente. Ele não deveria acelerar assim a menos que algo muito importante estivesse prestes a acontecer. É só um almoço com seu chefe e a filha fofa dele, boboca! Minha mente diz, mas ele se recusa a aceitar a simplicidade dos fatos.
Ele acelerou quando Beatrice fez o convite ontem à tarde, mesmo sabendo que eu precisaria recusar. Acelerou quando a menininha insistiu e argumentou que domingos são dias para se almoçar com a família. Ele se manteve acelerado mesmo quando o meu lado racional implorou para que o idiota entendesse que ela é uma criança, que nós não podemos ser tão carentes a ponto de desejar, com tanta intensidade, que as palavras de uma criança signifiquem alguma coisa além de determinação para que façam suas vontades.
Beatrice não me considera parte de sua família. Ela só se solidarizou com o fato de que eu almoçaria sozinho, afinal, ensinaram a ela que o domingo é o dia da família. A explicação racional é óbvia, mas o órgão estúpido martelando em meu peito se recusa a entender, da mesma maneira que se recusou a entender que Hugo estava apenas preocupado que eu tivesse um piripaque em sua casa, e por isso se recusou a me deixar sozinho quando eu pedi, quinta-feira à tarde.
— Chega! — decido e marcho na direção da porta. Toco a campainha no instante em que a alcanço e um minuto depois, Silvia aparece.
— Olá, Pedro. Boa tarde! Que bom ver você. — O sorriso em seu rosto é genuíno, assim como o abraço que ela me dá. A governanta não me pergunta por que eu estou aqui, não me olha estranho ou faz insinuações. Apenas me recebe e muito bem.
— Oi! Sim! — Sorrio de volta e espero que não pareça tão forçado quanto é. — Beatrice ficou com pena de mim e obrigou o pai a me convidar para almoçar, coitado.
— Você realmente não conhece o senhor Maldonado se acha que ele pode ser obrigado a fazer algo que não quer — brinca, mas não se prende a isso. — Vem! Eles estão na sala de TV.
— Ah. — Paro de andar. — Eu não quero incomodar.
— Não seja bobo, Pedro. Você foi convidado e tudo o que Beatrice fez essa manhã foi falar sobre você vir almoçar. Ela até pediu à chef que fizesse lasanha. Disse que era sua comida preferida.
Agora, meus olhos entram na coreografia constrangedora que está sendo performada pelo meu coração. Eles ardem. Ela pediu que fizessem minha comida preferida? Eu mal posso acreditar que Beatrice se lembre de algo que eu disse há meses, durante uma aula sobre eu nem me lembro o que.
— Lia não fez isso, certo? — pergunto, baixinho. — Não era necessário.
— É claro que ela fez! Algum de nós consegue resistir ao furacão Beatrice? — pergunta, virando-se para mim e eu inclino a cabeça, obrigado a concordar. Eu não estou aqui? Tenho certeza de que Hugo não deixou passar despercebida a ironia contida no fato de eu não ter dito não à sua filha. — Vamos? — chama e eu coloco meus pés em movimento outra vez. Alguns corredores depois, Silvia bate nas portas duplas, antes de abri-las.
— O professor Pedro está aqui.
— Professor Pedro! — Beatrice salta do colo do pai, onde estava deitada com a cabeça, assistindo televisão, e corre em minha direção, como sempre, jogando-se em meus braços completamente segura de que eu irei segurá-la.
Hugo assiste, ainda sentado, mas não há nenhum sinal da expressão vaga que tomou conta dos seus olhos ontem enquanto observava a situação semelhante na porta da sorveteria.
— Oi, amor. — Abraço à menininha e deixo um beijo em sua testa. Os braços pequenos envolvem meu pescoço e o sorriso de dentes de leite coloca um igualmente verdadeiro em meu rosto. A tensão em meu corpo é ligeiramente relaxada.
Foi por ela que eu vim, não importa como minha mente ou coração processam minha visita, importa apenas o quanto isso vai fazer a Beatrice feliz. Munido dessa certeza, vou sentindo o relaxamento se espalhar pelas pontas dos meus dedos até que eu seja capaz de expirar aliviado.
— O papai disse que depois do almoço a gente vai ver Red!
— Crescer é uma fera! — falamos juntos o subtítulo do filme que Beatrice adora, antes de imitarmos a garra de um urso com uma das mãos e emitirmos o som bobo de um rugido. — Arwn! — A gargalhada que se segue a isso jamais deixará que ninguém saiba o quanto eu estava tenso quando passei pela porta. Beijo a bochecha de Be e pincelo o dedo indicador em seu narizinho arrebitado.
— Boa tarde — Hugo cumprimenta, levantando-se do sofá.
— Olá.
— O almoço já está pronto para ser servido — Silvia avisa.
— Oba! Tô com fome! — Beatrice exclama, me arrancando mais uma risada e mesmo Hugo não fica imune à fofura da própria filha. O canto dos seus lábios se ergue. Silvia faz uma expressão engraçada quando percebe, mas não dura quase nada.
— Então vamos almoçar — o pai determina, olhando para o celular. — Seus avós e seu tio já estão esperando — avisa, e quando Beatrice bate palminhas, eu repito que estou aqui por ela, não por mim mesmo, então não faz a menor diferença quem mais vai estar à mesa, mesmo que por vídeo.
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— E tinha um cachorrinho da cor das nuvens e o papai disse que talvez eu possa ter um peixe — Beatrice continua sua tagarelice animada, contando para os avós e para o tio cada minuto da sua semana. Ela começou a falar do dia de sábado há pouco tempo, então estamos quase terminando o relatório, imagino.
Coloco mais uma garfada da lasanha divina de Lia na boca e me contenho para não fechar os olhos com o prazer do sabor explodindo na boca, mas não consigo engolir um gemido baixinho e ouço Breno, o tio de Beatrice, pigarrear. Faço o que venho evitando desde que a câmera foi ligada, olho para a tela há mais ou menos um metro da mesa redonda em que estamos sentados na sala de jantar. Beatrice está entre o pai e eu.
Conheci Breno no aniversário de Beatrice. Ele é um daqueles homens. Corpo perfeito, sorriso fácil e uma lábia que dá nó em pingo d’água, percebi imediatamente. Mas tanto naquele dia quanto hoje, algo mais ficou evidente para mim sobre o homem que é tão bonito quanto o irmão, exceto que consideravelmente mais jovem.
O caçula dos Maldonado é um homem de família. Não que isso queira dizer qualquer coisa sobre sua intenção de formar uma, mas percebi na festa de Beatrice sua relação estreita com a mãe e com a sobrinha e, hoje, vejo que o mesmo acontece com seu pai e irmão.
Seu olhar em mim é atento. Semanas atrás, ele não fez qualquer tentativa de esconder seu interesse, mesmo que não tenha feito qualquer insinuação verbal. O mesmo acontece hoje e, a julgar pelo tom de Hugo quando fala, eu não sou o único a notar.
— Breno. — O nome do irmão sai num grunhido entre dentes. O sorriso fácil bate continência na tela quando o moreno de olhos escuros se recosta na cadeira e ergue as mãos espalmadas, declarando-se, silenciosamente, inocente.
— O que o tio Breno fez, papai? — Beatrice pergunta, parecendo preocupada.
— Eu não fiz nada, linda — o tio se defende antes que o pai tenha a chance de acusar. — Seu pai só gosta muito do meu nome.
— Mas ele parecia bravo quando falou — Be argumenta, Breno levanta uma sobrancelha desafiadora na direção do irmão e Hugo estreita os olhos.
— Não estou, meu amor — Hugo diz a Beatrice antes de deixar um beijo na têmpora da filha. — Agora coma a couve-flor — pede e a menina faz careta, mas obedece.
— E você, Pedro? Como foi a primeira semana pós mudança? — A voz sorridente de Breno se dirige a mim e eu quase paro o garfo a caminho da boca, pego de surpresa. Abaixo o talher sem ter colocado a comida na boca para responder.
— Foi ótima.
— Ah, não seja econômico. Você pode fazer queixas sobre o meu irmão, nós vamos entender — brinca e eu acabo rindo, porque se Hugo fosse um dos meus alunos, eu certamente teria, sim, algumas queixas para fazer a seu respeito. O mal-humorado resmunga alguma coisa baixinho, que eu não entendo, antes de repreender o próprio irmão.
— Pare de atormentar o convidado da Beatrice, Breno! — ordena e a ênfase no fato de que eu fui convidado por Beatrice quase desfaz meu sorriso, mas eu o mantenho em meus lábios, mesmo que ele não seja mais verdadeiro.
— Ele não me parece nem um pouco atormentado, pessoas atormentadas não tem sorrisos lindos. Eu estou te atormentando, meu bem? — pergunta diretamente para mim e o elogio seguido pelo apelido carinhoso me deixa vermelho. Merda! Eu não sou uma pessoa que se constrange facilmente, mas não pude evitar.
— Aahn — pigarreio, limpando a garganta quando nada sai depois da interjeição. — Não. Eu estou bem — consigo responder e o olhar de Hugo se vira em minha direção. Seu desgosto pela minha resposta é gritante.
Um silêncio estranho recai na sala e mesmo que eu esteja curioso sobre a reação de Stelle e Leonel Maldonado à situação embaraçosa na qual fui envolvido por seus filhos, mantenho meus olhos em meu prato, recusando-me a olhar para a tela. Constrangido demais para isso.
— Acabei de comer a couve-flor — Beatrice anuncia, interrompendo o open bar de climão alguns minutos depois que ele havia começado.
— Muito bem, amor — Hugo parabeniza.
— Vovó — a menina chama. — Qual você acha que deve ser o nome do peixe que talvez eu possa ter? — pergunta e, segundos depois, a situação tensa já foi completamente substituída pelo falatório do pequeno furacão.
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O restante do almoço corre tranquilamente. Beatrice fala sem parar e os adultos não fazem nada além de orbitar ao redor dela, como o sol que a menina é. Eu observo a interação na maior parte do tempo em silêncio, participando quando sou solicitado e agradecendo, silenciosamente, pela história de Beatrice ser tão diferente da minha.
A maneira como seus avós a tratam, como olham para ela, como estão sempre ansiosos para fazerem suas vontades e lhe prometerem qualquer coisa que ela queira é tudo o que uma criança merece. É óbvio que eles exageram, mas quando o assunto é amor, o estrago feito pelo excesso é muito menor do que o rastro de destruição deixado pela ausência.
— Obrigado por ter me convidado para almoçar, Be. E obrigado por ter pedido à Lia pra fazer lasanha pra mim. Eu adorei — digo a uma Beatrice sentada em meu colo quando os pratos estão sendo recolhidos e a câmera já foi desligada.
— De nada. — Sorri e abraça minha cintura antes de apoiar a cabeça em meu peito. Hugo observa a cena sem dizer nada. Na verdade, ele não falou comigo desde que cheguei e isso não deveria me incomodar, mas incomoda. — Papai — Beatrice chama de repente.
— Sim?
— O professor Pedro pode ficar para ver Red com a gente. — Abro a boca. Deus, essa menina quer me matar de constrangimento. Eu juro que quer.
Hugo olha da filha pra mim e quando seus olhos alcançam meu rosto, provavelmente enrubescido, o brilho já familiar de diversão se espalha pelos seus olhos e eu sei que, qualquer que seja a resposta prestes a atravessar seus lábios, eu não vou gostar.
— Só se ele quiser, filha — diz o filho da mãe com a boca enquanto seus olhos enviam outra mensagem. Uma tão cristalina quanto a água em meu copo: “É mais fácil falar do que fazer, não é, professor Pedro? Vamos lá! Ensine algo sobre administrar frustrações para ela agora!”
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*** HUGO MALDONADO ***
Ele ficou.
E, agora, na sala de TV, Beatrice está deitada no sofá com a cabeça em meu colo e as pernas sobre as coxas de Pedro, dormindo, enquanto o filme que ela já viu pelo menos uma dúzia de vezes rola na tela. Minha filha não durou nem vinte minutos acordada, e se ela fosse um pouco mais velha, eu desconfiaria de que tudo isso não passou de uma maquinação sua.
Pedro ri de uma cena do filme e eu olho para ele de canto. As mãos pequenas mantêm um ritmo suave de carícias nas pernas de Beatrice enquanto os olhos acompanham o filme sobre uma menina que se transforma em um panda vermelho quando está emocionada como se aquela fosse uma superprodução hollywoodiana.
E por mais que eu goste do filme em questão, não consigo manter minha atenção em qualquer coisa que não seja no fato de que Bela Armadilha está sentado no sofá, ao meu lado, em uma cena doméstica como há muito tempo eu desisti de viver. Entretanto, a atmosfera parece ansiosa para mudar de direção.
Meu corpo está tão consciente da proximidade de Pedro que mais de uma vez precisei me remexer, incomodado com o ar. É quase como se ele estivesse anunciando a mudança iminente.
— Por que será que você gostar de animações não me surpreende? — pergunto, atraindo sua atenção.
— Porque eu sou professor de crianças?
— Não, com certeza não é isso.
— E o que é, então?
— Eu acho que talvez você se sinta representada em estatura pelas crianças. Os Smurfs é a sua animação preferida? — Sua boca se abre em choque e até eu estou chocado com o tema que escolhi para irritá-lo dessa vez.
— Sério? Você realmente está debochando da minha estatura? — Ele soa ultrajado. — Há um limite moral que impede esse tipo de coisa! — declara e eu engulo a gargalhada, mas meus ombros se sacodem com a risada reprimida.
— Não me diga que você é sensível sobre esse assunto.
— Falou o cara de 1,80 de altura.
— Um e oitenta e quatro.
— Parabéns, quer uma estrela?
— Ah, meu Deus! Você realmente é sensível sobre esse assunto! — Pedro bufa.
— Acho melhor eu ir, preciso resolver algumas coisas e daqui a pouco já é segunda.
— Eu levo você — ofereço sem pensar e quando me dou conta, já é tarde demais. Não sei o que me motiva. Talvez isso tenha alguma coisa a ver com a facilidade com que Breno o fez sorrir? Pedro me olha ainda mais chocado do que quando eu sugeri que ele se identificava com as pequenas criaturas azuis.
— Não. — Ele limpa a garganta. — Não precisa. Eu vou pedir um Uber.
— Não tem porquê. Você pode continuar bancando o orgulhoso, que pede ubers mesmo tendo um motorista à disposição, de segunda à sexta. Hoje, eu levo você. Só me deixe colocar Beatrice na cama. Ela não vai acordar em menos de duas horas e Silvia vai ficar de olho nela enquanto eu estiver fora. — Pedro abre a boca, pronto para contestar, mas eu nem deixo que comece. — Um minuto — aviso, já embalando Beatrice e me levantando com ela.
Caminho devagar para mantê-la confortável e deixo um beijo em seus cabelos. Seu cheiro se infiltra pelo meu nariz, despertando o sentimento de paz que só minha filha é capaz. Eu entro em seu quarto, a coloco na cama e cubro. Ligo o climatizador e antes de sair, paro na porta e olho para ela uma última vez.
Passo em meu próprio quarto e calço um par de tênis antes de procurar por Silvia na cozinha. Como esperado, a encontro com Lia, já ocupadas em organizar o jantar.
— Eu estava prestes a procurá-lo, senhor. O professor Pedro fica para o lanche?
— Não, Silvia. Ele já está indo. Eu vou levá-lo em casa. — As sobrancelhas da governanta se erguem, mas rapidamente se abaixam. Ela está fazendo muito isso hoje. Deve ser a quarta ou a quinta vez.
— Beatrice dormiu?
— Sim. Você pode ficar de olho nela enquanto estou fora, por favor?
— Claro.
— Ótimo.
— A babá nova chega amanhã, que horas?
— Às sete — respondo e torço os lábios. Não gostei de nenhuma das opções que me foram enviadas pela agência. Mas precisando estar no galpão da Unboxing amanhã pelo menos por meio período, não tive outra opção que não fosse contratar uma das candidatas, ainda que em caráter provisório.
— Devo continuar marcando entrevistas, senhor?
— Sim, vou pedir à Cláudia que te envie os meus horários.
— Certo. Algum pedido para o jantar?
— Não. Nada além do normal. Obrigado, Silvia. — Me despeço com um aceno e me viro para sair. Não demoro para alcançar a sala de TV, já que assim como a cozinha, ela fica no andar térreo da casa. Pedro já está do lado de fora, esperando.
— Vamos? — pergunto a mais ou menos um metro de distância.
— Você realmente não precisa fazer isso. Eu posso pegar um Uber — responde assim que o alcanço.
Eu deveria deixar que ele pegasse um carro de aplicativo. Já passamos muito mais tempo próximos do que seria aconselhável. E sozinhos em um carro? Isso não apenas tem cara de má ideia, também soa e cheira como uma.
— Por acaso você está com medo de passar quarenta minutos dentro de um carro comigo? — pergunto ao invés de reconhecer que ele está certo. Pedro estreita os olhos, analisando.
— Eu sei o que você está fazendo — acusa.
— Isso não importa. — Estalo a língua.
— Então o que importa? — Cruza os braços na frente do peito e o movimento atrai meus olhos para essa região do seu corpo por um instante.
— Que funcionou — digo e sua testa se franze. — Porque você é teimoso o suficiente pra não querer me dar nem mesmo a impressão de estar certo.
— E você é arrogante o suficiente pra estar sorrindo por isso — resmunga, indignado e eu dou de ombros antes de fazer uma reverência.
— Você primeiro. — Depois de um grunhido, Pedro passa por mim batendo os pés. Eu rio. Algo que eu fiz mais na última semana do que provavelmente havia feito no último ano.
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— Então, você não me disse o que achou do Ribeirão da Ilha. — Tento iniciar uma conversa depois de dez minutos do carro em movimento em completo silêncio. Pedro vira o rosto para mim com os olhos afinados ao extremo em uma resposta raivosa sem palavras. — Foi você quem disse que queria dormir o mais longe possível de mim — me defendo, e ele bufa.
— Se aquele paraíso foi alguma tentativa de me punir por isso, saiba que você falhou. Nunca dormi e acordei tão bem.
— É bom saber. — Não é. Porque palavras geram imagens e essas geraram mais algumas das quais eu não preciso: as de Pedro em uma cama. — Mas se eu quisesse dormir com você, eu não precisaria te punir por dizer não. Você jamais diria não.
— Você é tão arrogante, meu Deus! — Agora, ele gira o corpo, ficando de frente para mim. Apenas dou de ombros, fingindo naturalidade. Com qualquer outro homem, eu sei que o que eu disse seria verdade. Mas Bela Armadilha? Eu não tenho tanta certeza. — Continua sonhando! Eu não sabia que Floripa tinha lugares como aquele. — Aceita meu assunto.
— Como assim?
— Achei que era uma cidade totalmente urbana, mas o Ribeirão é quase como uma vila de pescadores daquelas que a gente vê na novela das nove.
— A gente? — Ele inclina a cabeça, tirando segundos para refletir, antes de assentir.
— Definitivamente, a gente! Eu tenho um dom.
— Que seria? — Ligo a seta, avisando que entrarei na próxima rua à esquerda.
— Eu sei dizer quando a pessoa é noveleira.
— E você chama isso de dom?
— Você consegue fazer? Com precisão?
— Não.
— Então não seja invejoso. Eu tenho um dom, senhor Maldonado, e o meu noveladar está em pane apontando pra você!
— Se ele está em pane, os resultados podem não ser tão confiáveis.
— Então você não gosta de assistir novelas? — Tiro os olhos da estrada rapidamente para lhe dar um olhar de esguelha.
— Talvez eu goste — reconheço.
— Talvez?
— Tudo bem! Eu gosto muito, mas faz tempo que não consigo assistir. Por que é que nós estamos falando sobre isso? — resmungo a última frase baixinho e Pedro gargalha alto.
— Porque eu tenho um dom e você debochou dele. Mas respondendo a sua pergunta, eu estou amando o Ribeirão. E a casa de vila. — Faz uma pausa. — Obrigado.
— De nada. — Outra vez, o silêncio se instala entre nós. Não um desconfortável, mas um natural. Até Pedro decidir quebrá-lo.
— Olha só! — Finge admiração. — Nós acabamos de ter uma conversa civilizada por mais do que cinco minutos?
— Se a gente não considerar a parte em que você realmente acredita que saber que uma pessoa gosta de assistir novelas é um dom...
— E agora você estragou tudo — avisa e eu rio. Pelo canto dos olhos, vejo Pedro sorrir, antes de virar o olhar para a janela.
Ele solta um suspiro quando se dá conta do pôr do sol em tons de rosa e laranja colorindo o céu da orla Florianopolitana. A visão me rouba o fôlego e eu não acho que os segundos de atenção roubada do trânsito para observar a cena são o suficiente, então estaciono o carro no primeiro recuo que encontro.
— O que você está fazendo? — pergunta e eu quase rio, porque não sei. Quando foi a última vez que agi por impulso?
— Achei que você gostaria de parar para ver o pôr do sol. — Pedro pisca os olhos três vezes. O primeiro sentimento a aparecer é a surpresa, depois, satisfação e por último, receio.
— Você não precisa fazer isso. Eu sei que você tem coisas a fazer em casa e…
— Está tudo bem, Pedro — o interrompo. O desejo de ficar e assistir ao sol se pondo, evidente em seus olhos enquanto ele morde o lábio, me dá toda a certeza de que preciso.
Abro a minha porta e salto do carro. Dou a volta pela frente para abrir a porta de Pedro e estendo a mão quando percebo que sua altura diminuta pode realmente ser um problema para que ele saia do SUV em segurança, apesar do degrau de apoio. Ele é muito pequeno.
— Nenhuma palavra! — avisa, me fazendo sorrir contido. Meus lábios formam um bico e eu balanço a cabeça, concordando em não fazer nenhuma outra piada sobre o seu tamanho.
Pedro cruza os braços e apoia as mãos sob os cotovelos assim que pisa no chão. Ele atravessa o calçadão, se abaixa e tira os sapatos dos pés antes de afundá-los na areia. Observo enquanto ele dá passos calmos até metade da faixa de grãos finos e claros e se senta.
Olhando para ele, esqueço que é esperado que eu o siga e só me lembro quando ele vira o rosto. A brisa outonal do fim da tarde balança seus cabelos soltos, espalhando-os por todos os lugares ao redor da sua cabeça e seus grandes olhos castanhos de cantos arredondados piscam para mim em uma pergunta silenciosa nada sutil “Tá esperando o quê?” eles dizem, tornando o momento único de uma maneira surpreendente.
Poderia ser qualquer homem, sentado na areia de qualquer praia, olhando para o pôr do sol em qualquer dia. Mas é o Bela Armadilha, pronto para assistir a um espetáculo natural e olhando para mim com um questionamento mudo que parece querer dizer respeito a muito mais do que ser seu acompanhante nesse momento: O que eu estou esperando?
A imagem que se colou às paredes internas do meu cérebro se acende por trás dos meus olhos. Beatrice nos braços de Pedro, em frente à sorveteria. Feliz, tão feliz que foi impossível não querer mais daquilo para a minha filha.
Um mais que, até aquele preciso momento, eu jamais havia sonhado ser possível. Porque o “mais” para ela significaria mais para mim e eu não acho que exista por aí uma segunda chance de viver o que já vivi. O homem que eu fui, ninguém é duas vezes. Balanço a cabeça, afastando os pensamentos. Isso não é hora, nem lugar.