CAPÍTULO QUINZE
*** PEDRO FERNANDES ***
O bolo de chocolate me encara com um olhar de julgamento, perguntando se eu vou ou não comê-lo. Quase rio, porque tudo o que consigo fazer é enxergar os olhos debochados de Hugo quando eu lhe digo que é a última vez. Talvez seja por isso que eu não tenha dito na noite passada.
— Tudo bem? — Silvia pergunta e eu nem mesmo finjo não entender o que ela quer dizer. Qual é? Eu estava tendo uma conversa mental com um bolo de chocolate.
— Tudo. Eu só estou distraído. Preocupado com a chuva — conto uma meia verdade, olhando para as janelas. — Li algumas coisas na internet, parece preocupante.
— É triste, né? E a pior parte é que passa ano, entra ano, e essas coisas continuam acontecendo. As autoridades parecem ter memória mais curta do que a Dory. Assim que para de chover e o dia amanhece, eles esquecem do problema e só se lembram quando outro desastre acontece.
— Exatamente — suspiro. — Mas hoje ainda não choveu. Espero que continue assim.
Não consegui não me preocupar com as pessoas do Ribeirão da ilha depois que Hugo me deu a notícia sobre o alagamento. Não tive tempo de fazer amigos, mas já tinha conhecido algumas pessoas. Pensar na possibilidade de elas estarem passando dificuldades dá um nó no meu estômago.
— O lado bom de tudo isso, se é que tem algum, é que a menina vai te ter por perto por mais uns dias. — Sorrio com o comentário. — Eu nunca a vi tão feliz, em todos esses anos. É engraçado, achei que a mudança a faria sofrer um pouco por causa da distância dos avós e do tio, mas Deus escreve mesmo certo por linhas tortas, né?
As palavras de Silvia fazem meus olhos arderem. Nos últimos quase vinte dias desde que saí do Rio de Janeiro, a proximidade com Beatrice tem sido uma experiência que eu não acho que serei capaz de esquecer. Eu sei que não deveria me apegar tanto. Mas como evitar? A garotinha é tão especial, tão ansiosa para amar.
De um jeito completamente diferente, ela é tão ou mais irresistível quanto o pai. Mais, com certeza, porque eu não vejo como me render aos encantos de Beatrice possa gerar qualquer problema. Me render aos encantos? Me choco com a traição dos meus próprios pensamentos. Deus, eu estou tão ferrado.
— Definitivamente, é um lado bom. — Volto a prestar atenção em Silvia, sem disposição para continuar minha investigação interior.
— Não vai comer o bolo? — Silvia pergunta e eu olho para o prato.
— Vou. — Balanço a cabeça, pego o garfo e espeto a massa fofa. O sabor do chocolate é delicioso e eu gemo. Debochado e gostoso? Ele é mesmo como o Hugo.
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— Esse seu delay tá um pouco irritante. — A voz de Matheus soa frustrada através do viva-voz. Deitado na cama do meu quarto provisório, olho para o teto perfeito sem prestar atenção nele.
— Foram alguns dias, Matheus. O que você queria? Que eu pedisse pra ir ao banheiro depois que o homem saiu de dentro de mim e imediatamente te mandasse uma mensagem ou fizesse uma ligação?
— Eu teria gostado disso.
— É claro que teria.
— E em alguns dias, você conseguiu transar duas vezes e ser sarrado prensado em uma parede. Eu acho que eu merecia ter ouvido sobre tudo isso antes.
— Quando você coloca os fatos nessa ordem... — Ele bufa.
— Você é insuportável.
— Fazer o quê? É um dom. Mas e então?
— Então o quê?
— Como a sua cabecinha surtada tá lidando com isso?
— Foi só sexo...
— Bananeira plantada que não foi, né, Pedro? Mas eu quero saber é desse seu coraçãozinho emocionado.
— Eu mal o conheço, Matheus — digo, mas sinto a mentira no momento em que ela toca a minha língua. Posso não saber uma infinidade de coisas sobre Hugo, mas dizer que não o conheço parece errado.
— E vai continuar assim? Com você morando com ele?
— Eu não tô morando com ele.
— Eu entendi errado? Você não tá morando na casa dele?
— Tô, mas do jeito que você falou, parece que somos só nós dois. Não somos, tem a Beatrice. E na maior parte do tempo, tem os outros funcionários da casa também.
— Mas nada disso muda o fato de que antes de ir pra Floripa ele era um bastardo arrogante e gostoso, e agora...
— Ah… — Arranho a garganta com uma risada. — Quanto a isso, nada mudou.
— Claro que mudou! — argumenta. — Agora, ele é um bastardo arrogante com quem você transou duas vezes e sarrou uma.
— Ninguém tá contando, Matheus.
— Eu tô! Deixa eu amargar minha inveja em paz, por favor?
— Desculpa, Deus me livre ficar entre você e a sua inveja.
— Obrigado.
— Já quer começar a falar sobre como você se sente de verdade? Sobre o porquê de você estar tão determinado que fosse uma vez só, pra começo de conversa?
— Hoje não.
— Vou aceitar isso por enquanto, porque tenho informações mais importantes para descobrir.
— Tipo?
— P, M, G, XG, XXG, G1, G2... — enumera a lista de tamanhos e eu gargalho escandalosamente.
— Você é impossível!
— E curioso! Pode falar!
— Matheus, eu não faço a menor ideia de como é que você faz essa classificação, então vou só dizer que ele é enorme no nível daquele ator da série Sex Life.
— PUTA QUE PARIU! — meu amigo grita, e eu rolo na cama, rindo. — E você ainda tá conseguindo andar, Pê? Quer que eu te mande umas pomadas?
— Matheus! — chamo seu nome, mas não aguento e gargalho ainda mais. — Eu consigo andar perfeitamente bem, obrigado. E aqui tem farmácias, se eu precisar de pomadas. Mas não preciso, só pra constar. Hugo sabe o que está fazendo.
— Ui! Deus, se for da tua vontade, teu filho está pronto!
— Eu tô com tanta saudade de você! — digo baixinho. Me sentindo em paz só de conversar com ele.
— Quando você vem ao Rio?
— Ainda não sei. Com isso de a casa ter alagado, não sei como vão ficar as coisas. Preciso esperar pelos próximos dias. — Empurro a bochecha com a ponta da língua. — Mas chega de falar de mim, me fala de você. Como estão as coisas no estágio? — O grunhido que recebo em resposta já dá uma boa ideia do que está por vir.
— Pê! Eu odeio aquele lugar!
— Que isso, Matheus? — Estranho a declaração, porque Matt sempre reclamou do trabalho de estagiário, mas nunca do ambiente de trabalho. Ele estava ansioso por uma promoção, assim como eu.
— Tá! Dizer que odeio o trabalho é exagero, mas tem um cliente me tirando do sério! — Grunhe outra vez. — Eu odeio aquele cliente! Um nerd, programador de jogos que fica metendo o bedelho onde não é chamado! Pelo amor de Deus, o que que ele sabe sobre direito? Pergunta se eu me meto nos joguinhos que ele cria? Não! Mas ele acha que tá tudo bem lotar minha caixa de e-mails com um zilhão de perguntas que não vão mudar em nada a droga da aquisição que a companhia dele tá fazendo. — Dispara a falar como sempre que está muito irritado e se eu fosse o tal programador, não ia querer passar a menos de dez quilômetros de Matheus.
— Espera, companhia? Ele não é um nerd programador? — A palavra me faz sorrir, porque me lembro da conversa que tive com Hugo. Não admiti, mas ele definitivamente é sexy demais para a ideia que eu tenho de um nerd.
— Ele é o dono da empresa. — Grunhe pela terceira vez e isso, definitivamente, é um marco — Irritante! A empresa dele tá comprando uma outra e o escritório tá cuidando da papelada. O homem simplesmente não se conforma com o fato de que não fez faculdade de direito. E pra alguém que mexe com computadores, ele simplesmente não entende qual é o papel do Google, porque as respostas para pelo menos metade das perguntas que me faz estão lá.
— Uau! Esse, definitivamente, é um G3 na sua escala de clientes que te irritaram.
— O quê? Esse infeliz explodiu a minha escala!
— Bem, veja pelo lado positivo, depois que a aquisição acabar, você não vai mais precisar lidar com ele.
— Que Deus te ouça, porque se algum dia esse homem aparecer na minha frente pessoalmente, eu juro por Deus que não me responsabilizo pelos meus atos.
— Vamos torcer pra não chegar a isso.
— Amém! — concorda lamuriosa e suspira. — Amém. Agora, vamos voltar ao que interessa. Você tá usando hidratante anal? Acho que você devia.
— MATHEUS!
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Eu não deveria estar aqui.
As paredes cobertas por estantes da biblioteca me cercam, acolhedoras, mesmo que eu não esteja entre elas por nenhum outro motivo além de uma vontade irracional de que a noite de ontem se repita. E o mais preocupante é que não é pelo sexo de outro mundo que eu estou mais ansioso, é pela conversa. Eu não esperava ser encontrado por Hugo ontem.
Na verdade, me escondi na biblioteca e me enterrei em trabalho justamente para não me dar a chance de fazer outra besteira. Como segui-lo até a academia, por exemplo, caso o homem decidisse fazer uma sessão de musculação tardia ou algo do tipo.
Não só falhei, como criei uma desculpa ridícula para me defender do meu próprio julgamento. Afinal, eu não estou esperando por ele. Estou, despretensiosamente, lendo um livro na biblioteca. Se ele me encontrar não será culpa minha. Ridículo, Pedro! Ridículo.
Aperto o botão de ativação do kindle pelo que deve ser a quinta vez nos últimos trinta minutos. Minha concentração na tela é tamanha, que o tempo limite sem interação para que a tela apague sozinha já foi ultrapassado inúmeras vezes antes que eu percebesse.
Eu adoraria culpar meu ego que se recusa a obedecer meu interesse literário atual. Enquanto vasculhava a loja de e-books atrás da minha próxima leitura, as únicas sinopses que realmente me interessaram foram aquelas que anunciavam romances proibidos cujos personagens centrais eram sempre professores ou professoras. Irônico nem começa a descrever.
Mas a verdade é que se me perguntarem quantos passarinhos cantaram ou quantos carros estacionaram lá fora na última meia hora, eu serei capaz de responder com precisão. Meu problema não é a falta de atenção ao livro, é excesso de interesse pelo que está acontecendo do lado de fora da casa.
Continuo com a brincadeira de esperar o kindle apagar para acendê-lo por mais uns quinze minutos antes de ouvir o carro estacionando lá fora. Olho para o relógio pendurado na parede. Onze e trinta e dois da noite. Hoje ele chegou ainda mais tarde. Meu coração dispara no peito enquanto espero, agarrando o leitor de livros digitais com força o suficiente para sovar uma massa de pão.
Mantenho os olhos baixos, fingindo estar concentrado na leitura, mesmo que eu sequer saiba qual é a primeira palavra do primeiro parágrafo. O tempo parece ter decidido se sentir exausto e passa a se arrastar pelo ponteiro do relógio. A sensação de frustração se aproxima, colocando-se a postos, pronta para ser sentida quando ouço os passos na escada.
Conto as batidas do meu coração na garganta. Por que, exatamente, estou nervoso? Não faço ideia. Mas é impossível negar que estou. Engulo em seco, esperando, esperando e esperando. Os passos se aproximam e eu seguro a respiração, querendo esperar que eles passem reto pela porta encostada, assim, não vou me sentir tão frustrado se acontecer. Mas não acontece.
A porta é aberta com suavidade e eu conto até cinco antes de levantar a cabeça na tentativa de não parecer tão ansioso quanto me sinto.
— Atrapalho? — Hugo pergunta e eu balanço a cabeça para um lado e para o outro, negando.
— Não, eu só estava lendo um livro. — Ergo o kindle, pedindo mentalmente pelo amor de Deus que ele não me pergunte o nome, porque eu não faço a menor ideia de qual é o e-book cujo texto está exibido na tela.
Hugo acena e entra na sala. Ele não diz nada, como se também não soubesse o que está fazendo, ao chegar do trabalho e entrar na biblioteca, mas ele não deixa que o silêncio dure muito.
— E então, qual história você contou hoje? — A pergunta me faz sorrir.
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*** HUGO MALDONADO ***
Sou atraído pelas gargalhadas infantis no momento em que piso no corredor dos quartos. É a primeira vez em quatro dias que consigo voltar para casa antes do horário de dormir da minha filha.
A risada de Beatrice é escandalosa e coloca um sorriso curioso em meu rosto. Sem nem me incomodar em passar no meu próprio quarto antes, vou até o da minha filha para encontrar a porta aberta.
Tenho apenas um vislumbre do que está acontecendo antes de a menina notar a minha presença. Pedro está sentado no chão, de costas para a porta, com as pernas cruzadas. Seus cabelos estão presos em marias-chiquinhas altas e Beatrice tem um batom nas mãos, me dando uma boa ideia do que estou prestes a ver.
— Papai! — ela exclama e corre em minha direção, jogando-se em meus braços.
— Oi, meu amor. — Pego-a imediatamente e abraço o corpo pequeno. Porra! Inspiro profundamente, aproveitando a sensação que apenas estar com a minha filha me dá.
— Eu estava maquiando o professor Pedro — diz, e eu me viro. Bela Armadilha continua de costas e eu tenho a impressão de ouvi-lo gemer, choroso e isso aumenta o meu sorriso. — Professor Pedro! Mostra pro papai como você tá bonito! — Beatrice pede e eu ouço a expiração forte do professor antes de se virar, como se estivesse buscando coragem no gesto.
No instante em eu vejo seu rosto, aperto os lábios, segurando a gargalhada. As pálpebras estão pintadas de cores diferentes, a esquerda de azul e a direita de amarelo. As bochechas estão extremamente avermelhadas e os lábios cobertos por um batom vermelho vibrante, e tudo isso, é claro, coroado pelos cabelos presos em marias-chiquinhas tortas.
Ainda assim, o professor tem um sorriso luminoso no rosto, dizendo, sem pronunciar uma palavra, que a felicidade da minha filha faz a sua.
— Ele não tá lindo, papai? — Beatrice pergunta e Pedro estreita os olhos para mim, desafiando-me a dizer a verdade, se eu tiver coragem.
— Lindo, meu amor! Ele está lindo — respondo e Bela Armadilha sorri, satisfeito, sem ter a menor ideia de que eu não precisei mentir. A pintura em seu rosto está hilária, é verdade, mas há um traço de algo mais nele que ofusca qualquer coisa que tente apagar a sua beleza.
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Quanto tempo de repetição é necessário até que possamos chamar uma interação constante de rotina? Uma semana e um dia depois do meu primeiro encontro com Pedro na biblioteca, não encontro uma palavra melhor para definir nossas noites.
Se eu chego cedo, nós colocamos Beatrice para dormir juntos e, de alguma maneira, por volta das onze da noite, nos encontramos na biblioteca. Se eu chego tarde, vou direto para lá e o encontro, algumas vezes envolvido com trabalho, outras em uma leitura.
Nenhuma palavra foi dita a respeito. Simplesmente aconteceu e, cada vez mais, esses encontros se parecem mais com a recompensa por não importa a merda que aconteça durante o dia. A primeira vez aconteceu porque tinha que acontecer, a segunda também, eu suponho, só não foi regida pelo acaso também. Assim como nenhuma das outras foi.
Minha mente tem construído expectativas em torno desse momento. Chegar em casa sempre foi uma hora importante. Eu sabia que minha filha estava me esperando. Mas agora a sensação é diferente e o que acontece no quarto, depois que saímos da biblioteca, não é o único motivo.
O professor não diz mais que é a última vez. Entretanto, continua se recusando a ficar na minha cama por um minuto que seja depois que caímos exaustos no colchão, depois de foder a noite inteira.
Pedro praticamente sai correndo, como se ficar significasse algo que elale, de maneira nenhuma, quer dar a entender. E é quase engraçado como isso faz com que eu me sinta seu segredinho sujo. Aos quarenta e três anos, depois de incontáveis fodas que praticamente vinham com um certificado de casualidade, eu não achei que veria um cara fugindo da minha cama como se ele estivesse pegando fogo apenas para ter certeza de que eu não entenderia as coisas errado.
— É nesse fim de semana que a Beatrice vai ao Rio? — ele pergunta, sentado em uma das poltronas de frente para a lareira, com seu kindle na mão.
— Sim, é. Deveria ter sido na semana passada, mas minha mãe teve algum tipo de imprevisto. — Ele concorda e inclina a cabeça, pensativo.
— Qual é a sua coisa favorita sobre o Rio? — Faz a pergunta despretensiosamente e eu sorrio.
Essa é uma das coisas que eu mais gosto nesses momentos. Não há regras, nem uma linha de raciocínio a seguir. Nada que não seja a vontade pura e simples de conversar. Não me lembro de outra pessoa ter despertado essa vontade em mim em anos.
— De onde veio isso?
— Esse livro! — Levanta o o leitor de e-books. — É legal, mas a autora se empolgou e parece ter escrito um guia de turismo. Dá tantos detalhes, como horários e tempo exato de deslocamento entre os pontos da cidade. Me fez pensar, se eu tivesse que escrever um guia sobre o Rio, o que não poderia faltar?
— Eu costumava adorar fazer trilhas, descobrir novas vistas. — Sentado na poltrona ao lado da de Pedro, inclino a cabeça levemente para trás, como se eu pudesse ver no ar as lembranças sendo projetadas em minha mente.
— Costumava? Não gosta mais? — Balanço a cabeça, pensativo.
— Elas se tornaram cheias de lembranças demais. — Consigo dizer depois de algum tempo em silêncio. — Eram o passatempo preferido da Thaís. Ela só não entrou em trabalho de parto no meio de uma, porque eu não a deixei ir. — Rio com a lembrança da discussão absurda. A conversa flui tão naturalmente, que eu só percebo que acabei de falar sobre a minha falecida esposa com a pessoa que passou as últimas quase dez noites em minha cama quando já é tarde demais. Espero pelo momento estranho, pela tensão desconfortável, mas eles não vêm.
— Minha coisa favorita são as comidas. — Seus olhos não se desviam dos meus quando ele responde. — Eu adoro fazer turismo gastronômico. — Dá uma risadinha e eu acabo rindo também. Ele ri de tudo e eu não sabia que podia gostar tanto desse traço de personalidade em alguém que não fosse a minha filha. Geralmente, adultos sorridentes demais me irritam, mas não ele. — Eu sinto muito — diz por fim, deixando claro que não ignorou o peso da minha resposta, mas é maduro o suficiente para compreendê-lo. E isso, mais do que qualquer coisa, me impacta. Ele entende.
Minhas sobrancelhas se franzem quando eu me divido entre surpresa e admiração. Mais de uma vez, já me peguei achando que a forma que Pedro tem de pensar é racional demais, madura demais e impulsiva de menos para a idade que ele tem e eu nem sei se isso é uma coisa boa.
Aos vinte e três, eu estava gastando a parcela de merdas que me cabia, não estava sentado numa biblioteca, tendo conversas tranquilas sobre qualquer assunto que fosse. Me pergunto o que Pedro fez com sua parcela de direito à irresponsabilidade. Desejo vê-lo esbanjando-a, na verdade. É uma vontade estranha, inesperada.
— Eu sinto muito também. — Seu sorriso é triste quando assente.
— O que você tem com a Be... — Pausa e abaixa a cabeça. — É fantástico.
— Eu não faço nada mais do que a minha obrigação. — Pedro ergue os olhos, voltando a encontrar os meus.
— Eu sei. Mas nem todo mundo acha que amar é uma obrigação. — A declaração é feita tão baixinho e me conta tanto a seu respeito que eu não sei se foi algo dito consciente ou inconscientemente.
Eu já vivi o bastante para entender o que está sendo dito nas entrelinhas. Pedro está falando sobre a avó e mesmo querendo saber mais, não pergunto. Deixo que ele continue, se quiser.
— Eu mal posso esperar pra fazer turismo gastronômico pela ilha. — Muda de assunto e eu levo um segundo para me adaptar à mudança de rota.
— As chuvas estão diminuindo.
— Sim, hoje eu vi algumas notícias que diziam que a água finalmente está escoando nos lugares mais afetados. Graças a Deus.
— Vou ligar para o seu senhorio amanhã — digo, porque é o que se espera que eu diga, mas não gosto da ideia.
— Obrigado por isso. Eu meio que tô com saudades das minhas roupas. — É impossível impedir que os meus olhos deslizem pelo corpo pequeno aninhado entre as almofadas da poltrona macia.
— Eu gosto dessas roupas.
— Eu também gosto das suas.
— Talvez nós devêssemos tirá-las — sugiro, por nada além da piada, porque a sugestão nem sentido faz. E quando Pedro gargalha, eu me sinto, ao mesmo tempo, extremamente satisfeito, por ter sido eu a provocar o som gostoso, e curioso, sobre quando foi que eu recomecei a fazer piadas.
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— SURPRESA! — O grito, assim que passo pela porta de casa pela manhã, pronto para sair para correr, me faz erguer os olhos do chão.
— O que caralhos você está fazendo aqui? — Breno está parado nos degraus de acesso com os braços abertos, erguidos para o ar. Eu pisco, duvidando seriamente que essa seja uma alucinação matinal.
— Vim fazer uma surpresa, não é óbvio? Vim buscar a Be no lugar da mamãe.
— Hoje é quarta-feira, Breno. Beatrice tem aulas até sexta, ela só viaja na sexta à noite.
— Nós vamos ter essa conversa do lado de fora?
— Caso você não tenha percebido, eu estava de saída.
— Pra correr?
— Não, Breno. Eu estou vestido assim porque parecem trajes apropriados para aprender a pilotar um avião. — Meu irmão bufa e revira os olhos antes de pegar a pequena mala ao seu lado e se colocar em movimento.
— É bom ver você também! — Me abraça e, mesmo contrariado, eu o abraço de volta, porque sim, senti a sua falta. Só não admitirei em voz alta. O ego de Breno não precisa de nenhum tipo de incentivo.
Quando o abraço se desfaz, Breno abre a porta da minha casa e faz um aceno, me convidando a entrar. Apoio as mãos na cintura e balanço a cabeça, negando, mas volto para dentro. Ele vem logo atrás e eu vou direto para a cozinha, à procura de café. Vou precisar, já que, aparentemente, minha corrida foi cancelada.
— Casa legal — diz enquanto passamos pelos cômodos.
— Você já tinha visto.
— Não pessoalmente.
— Ah, isso! Por que você a está vendo pessoalmente? — pergunto, no momento em que alcançamos a cozinha vazia. — Café?
— Por favor.
— E então?
— Eu disse, vim buscar a Be.
— E eu disse que a Be só vai viajar na sexta à noite.
— Poxa, que pena. — Finge decepção. — Isso significa que eu vou ter que passar dois dias com o meu irmão. — Breno balança a cabeça, atuando porcamente uma tristeza que ele obviamente não sente. — É realmente um problemão.
— Você não tem o que fazer, Breno? Uma empresa pra comandar?
— Claro que tenho! Você sabe, nós estamos no meio de uma aquisição importante.
— Então que caralho você está fazendo aqui?
— Eu estava entediado. E a família vem primeiro, o trabalho depois. Na nossa última conversa eu tive a impressão de que você estava precisando de apoio.
— Pelo amor de Deus! Você pode entrar no mesmo avião em que veio e arrumar, no Rio de Janeiro, alguém pra infernizar que não seja eu.
— Na verdade, eu já arranjei. Um estagiário, mas eu consigo infernizar mais de uma pessoa por vez — diz, como se não tivesse acabado de confessar um crime.
— Isso! Eu vou adorar ver um processo por assédio bem no meio do seu rabo! — resmungo, pegando a jarra da cafeteira e servindo duas xícaras.
— Isso não vai acontecer. — Dá de ombros. — Ele não é meu estagiário. É estagiário da empresa de advogados que está cuidando da aquisição. Mas isso…
— Espera, você tá assediando um advogado, sério? — o interrompo, incrédulo, empurrando seu café pelo balcão em sua direção.
— Nhe! — exclama e pega a bebida. Breno dá um gole antes de continuar a explicação tão louca quanto poderia ser. — Ele não é advogado. É só um estagiário, mas isso não é importante. — Abro a boca para contestar, mas desisto. — Agora que nós já estabelecemos que a família vence o trabalho no jokenpô da vida, quando eu vou conhecê-lo?
— Do que você está falando?
— Não seja tímido, nós estamos falando da pessoa que está te fazendo malhar às onze da noite. — Passo as mãos pelos cabelos e a impulsividade de Breno me faz perder o controle, e eu rio.
Estico os braços sobre a bancada, abaixo a cabeça e rio, sem poder acreditar na insanidade do meu irmão. É o silêncio súbito que me leva a erguer o rosto, porque Breno nunca cala a porra da boca, pelo menos, não voluntariamente.
Os olhos do meu irmão me analisam, investigativos, e eu ergo uma sobrancelha.
— Tem uma coisa aqui — avisa, limpando o canto da boca, indicando que eu faça o mesmo. Inclino a cabeça, desconfiado, porque não comi nada, não tem como eu estar sujo. — Ah, não! Espera! — Faz uma pausa dramática. — É um sorriso! Desculpa, é que fazia tanto tempo que eu não via um aí, que achei que fosse uma sujeira.
— Vai se foder, Breno!
— É, porque você, definitivamente, já está fodendo alguém. Você, meu irmão, está reluzindo com o brilho que só sexo bem feito e diário pode dar! — Desdenho, soprando o ar por entre os dentes. — Quem é ela ou ele? Beatrice disse que você anda chegando tarde do trabalho. É alguém da empresa?
— Agora você tá usando minha filha pra me espionar?
— Cada um usa as armas que tem.
— Beatrice não é uma arma, Breno. — Meu irmão tem a cara de pau de dar de ombros.
— Eu não perguntei, tá legal? Foi ela quem contou.
— Sei...
— Qual, é?! Você tem que, pelo menos, me dizer o nome!
— Pelo amor de Deus, Breno. Não tem ninguém, porra!
— E não tem nenhum jeito de eu acreditar nisso. Então, facilite as vidas de nós dois e só me diz o nome! Eu juro que não pergunto mais nada. — Ergue as mãos espalmadas para cima em uma promessa condicionada de rendição.
— Tudo bem, só o nome?
— Só o nome — promete, ansioso.
— Tudo bem. O nome dele é… — Os olhos do meu irmão se arregalam em expectativa. — Naoé.
— Naoé? — Ele franze as sobrancelhas. — Que tipo de nome é esse?
— Não é da sua conta, Breno! — Os olhos de Breno se esbugalham e ele abre e fecha a boca várias vezes antes de realmente dizer alguma coisa.
— Espera. — Ele leva a mão ao peito, como se tentasse conter as batidas descontroladas do coração, depois, coloca as duas mãos na cabeça e pisca freneticamente. — Você... Vo-Você... — gagueja, pausa. — Você acabou de fazer uma piada? — pergunta, chocado, e o sorriso que brota no canto da minha boca é incontrolável. — E você está sorrindo! Meu Deus! É hoje! Hoje é o dia que a terra parou! DEUS! — grita pela divindade. — Eu não estou pronto pra morrer! Por favor, ainda não Deus, ainda não! — Eu balanço a cabeça, sem poder acreditar.
— Vai se foder, Breno!
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*** PEDRO FERNANDES ***
Bastardo arrogante: Falei com seu senhorio, a água escoou. Quer ir até lá mais tarde?
A mensagem não deveria fazer meu coração disparar, mas faz. Assim como provoca o mesmo frio na barriga que sinto todas as noites quando vou para a biblioteca, mesmo que a minha primeira reação ao ler o remetente tenha sido soltar uma gargalhada que assustou Lia. A chef está ao meu lado na cozinha, concentrada em confeitar um bolo.
Salvei o número de Hugo antes de nos mudarmos para Santa Catarina. Como nunca tinha usado o contato até hoje, fosse para uma troca de mensagens ou um telefonema, sequer me lembrava do nome registrado.
É estranho pensar que quase dois meses se passaram desde que nos conhecemos, no aniversário de Beatrice, e quase um mês e meio desde que ele bateu na minha porta e eu me recusei a deixá-lo entrar em meu apartamento. Ainda acho que ele é um bastardo arrogante, mas depois de alguma convivência, já sei também que ele é bem mais do que isso.
Hugo é um pai incrível, um empresário profissional e uma companhia deliciosa, não só na cama. Apesar da fachada de seriedade constante, ele é divertido, engraçadinho, cheio de piadinhas. O homem é uma caixinha de surpresas e eu não esperava gostar tanto de descobrir cada uma delas.
Até mesmo a gravidade em seus olhos parece ter se suavizado, ou talvez a mudança na minha percepção se deva ao fato de que elas não são mais a única coisa que vejo quando olho para eles. Na maior parte do tempo, me pergunto o que diabos estou fazendo, no que sobra, concluo que não sei, assim como também não sei por que não consigo me impedir de fazer.
Sentado diante do balcão, tento entender os sentimentos conflitantes despertados pela perspectiva de voltar para casa depois de doze dias hospedado com Beatrice e Hugo. O primeiro é fácil, satisfação. Ter meu espaço é algo de que aprendi a gostar muito cedo. Mas para o segundo não sei qual nome dar. Sei apenas que não gosto e ele está diretamente ligado a tudo que voltar para casa significa deixar para trás.
A participação ativa na rotina de Beatrice, para muito além das nossas aulas, o ritual noturno com Hugo e, é claro, o sexo, porque eu também não sou de ferro. Mas independente do quanto eu goste de agir irracionalmente, sei que preciso parar e é isso que ir embora implica.
Há muito a perder para depois de uma vida inteira fazendo planos, para eu decidir ser impulsivo justamente agora. É essa certeza que me diz o que responder. Olho para o celular em minhas mãos e umedeço os lábios. Depois de uma expiração curta, digito a resposta.
Pedro: Claro. Você se importa se eu pedir ao Jorge que me leve até lá depois que as aulas de Beatrice acabarem?
Envio a mensagem e deixo o telefone sobre o balcão, imaginando que a resposta deve demorar a chegar. Mas não demora. Vem quase imediatamente.
Bastardo arrogante: Claro que me importo. Eu vou levar você até lá.
Não há nada demais nessa declaração, certo? Então por que eu me sinto tão subitamente animado? Por que o tom definitivo me faz palpitar, e não só no peito? Mesmo assim, respondo o que se espera.
Pedro: Não precisa. Não quero te atrapalhar.
Bastardo arrogante: Eu não estava me convidado, Pedro. Estava te informando.
Pedro: Você é tão arrogante!
Bastardo arrogante: Devo sair da empresa por volta das 16:30h, no máximo às 18h, chego em casa.
Pedro: Não vai mesmo te atrapalhar? Tem certeza?
Bastardo arrogante: Me atrapalharia saber que você está indo sozinho para um lugar potencialmente perigoso.
Deus, um adolescente. Eu me sinto umal adolescente, procurando significados escondidos em cada palavra lida. Não gosto da sensação. Enquanto no aspecto físico meu descontrole com relação a Hugo é algo eletrizante, do ponto de vista emocional, eu não gosto nem um pouco de me sentir uma bagunça, de não saber o que está acontecendo.
Pedro: Tudo bem.
Bastardo arrogante: Bom.
Bastardo arrogante: Podemos ir depois do jantar. O que você acha?
Estranho o pedido, faria sentido que fôssemos o mais cedo possível, mas logo depois entendo. Hugo está me dando a chance de me despedir da rotina que estabeleci com a Beatrice. Sorrio.
Pedro: Acho uma excelente ideia.
Bastardo arrogante: Depois do jantar, então.
Bastardo arrogante: Breno está incomodando muito você?
A pergunta transforma meu sorriso em risada. O tio de Beatrice é uma figura e tanto! Estou com pena das professoras de música e educação física, aulas que a Beatrice tem agora pela manhã, porque tenho a impressão de que ele não as está deixando trabalhar.
Foi impossível não me lembrar de Matheus quando cheguei à sala esta manhã e me deparei com a energia caótica de Breno. Se o universo, por alguma razão, achasse que seria uma boa ideia colocar os dois no mesmo lugar, ao mesmo tempo, o resultado seria interessante e potencialmente destruidor também.
Pedro: Não, ele está ocupado atrapalhando as aulas de Beatrice.
Bastardo arrogante: É claro que ele está.
E, como se fosse atraído pela conversa a seu respeito, o homem alto de pele bronzeada e cabelos e barbas escuros entra na cozinha. Ele se parece muito com o irmão, mas ao invés da áurea de constante seriedade de Hugo, ao redor de Breno há uma de descontração.
Ele estaca no momento em que se depara com Lia e eu. Seus olhos se movimentam entre nós dois de uma maneira estranha, antes de ele decidir alguma coisa.
— Eu... — Pausa e eu franzo as sobrancelhas. — Eu não quero atrapalhar — diz por fim, deixando-me ainda mais confuso. Atrapalhar o quê? Lia parece entender e responde por nós dois.
— Não atrapalha.
— É... — Pausa outra vez, mantendo o olhar estranho se movimentando entre a chef e eu. — Só vim buscar um copo de água.
— Claro. — Lia continua a ser aquela entre nós dois que mantém a conversa ativa.
Ela vai até a geladeira, tira uma garrafa de vidro lá de dentro, serve um copo de água e oferece ao Breno. Ele aceita, agradece e, logo depois, sai da cozinha.
— Só eu achei que isso foi esquisito? — pergunto à chef.
— Foi, não foi? — Lia concorda com as sobrancelhas franzidas.