Seus sapatos ecoavam pelos corredores vazios do Bloco D enquanto Karina se dirigia à sua sala onde lecionaria mais uma aula de Literatura em Língua Portuguesa para a turma do segundo semestre de Letras.
O sopro quente e abafado vindo da sala escura era estranho para ela que habitualmente chegava poucos minutos antes do início da aula e era abraçada pelo ar gélido do ar condicionado ligado previamente. Mas naquele dia havia trabalho a ser feito antes de a aula ser iniciada. A coordenação do curso havia lhe informado sobre a chegada de um novo aluno vindo por transferência e era necessário iniciar a separação dos materiais já lecionados até o momento para que ele não ficasse para trás em sua matéria.
Sentada à mesa, com o laptop diante de si, Karina analisava o portal dos docentes com um novo nome que aparecia na lista de alunos: Bernardo Lemes. “Bem vindo, Bernardo”, pensou enquanto iniciava a revisão de todo conteúdo a ser apresentado ao novo aluno. Não seria uma tarefa fácil uma vez que já estavam tão perto das primeiras atividades avaliativas marcadas para a próxima semana.
Passando em frente à sala, Victor, promotor de justiça e professor de Direito Penal, notou pelo vidro da porta a presença da professora compenetrada no laptop, que de forma despretensiosa projetava uma postura elegante e movimentos delicados enquanto digitava.
— Boa noite, gata! — disse o professor entrando sem a animação costumeira, mas o bom humor de sempre — Estou surpreso em vê-la por aqui tão cedo.
— Boa noite, Victor! Preciso preparar algumas coisas antes do horário das aulas. Tem um aluno novo chegando e ele vai precisar de todo conteúdo da matéria que já foi passado até agora.
— Vai ser puxado tão perto do período de provas.
— Verdade. Ser transferido no meio do semestre é um desafio tanto para aluno quanto para os professores.
— Não quero atrasar seu lado. Nos vemos mais tarde, no intervalo?
— Claro.
Victor saiu, respirando fundo e com o coração acelerado. A imagem da jovem professora de 36 anos, e longos cabelos loiros escuros que emoldurava em ondas o seu rosto delicado, alugava seus pensamentos por anos em que tentava esconder seu sentimento atrás da máscara do bom humor. Não era aceitável para ele, sendo casado, permitir-se nutrir sentimentos por uma mulher também casada; e não qualquer mulher casada, mas a esposa do Juiz José Augusto Sampaio, um velho conhecido na corte de justiça e com quem cruzava pelos corredores do fórum da cidade cumprimentando-o com simples acenos de cabeça, sem qualquer relação mais próxima.
Pouco a pouco os corredores da faculdade eram tomados por burburinhos que evoluíram para falatórios até parecer uma feira livre. Eram os alunos chegando para as aulas.
Karina finalizou a compilação de slides, apostilas e bibliografias já tratadas naquele semestre quando as figuras familiares de seus alunos surgiam entrando na sala, trazendo a algazarra dos corredores para o ambiente que até poucos minutos era um reduto de paz e quietude. Ela acompanhou a entrada de cada um até aparecer o que ela desconhecia. Os murmúrios da sala cessaram e todos os olhares se voltaram para o novo aluno que acabava de entrar, destacando-se com seus 1,82 de altura. A professora o acompanhou com o olhar desde a porta até vê-lo se sentar em uma das últimas carteiras, ao fundo da sala. Os murmúrios teriam voltado como se nada demais tivesse acontecido não fosse os olhares curiosos de umas e outras alunas curiosas em saber quem era o novato de porte atlético e pele parda, cabelo escorrido e olhar altivo.
Ao se certificar que a maior parte da turma já estava presente, Karina fechou a porta da sala, isolando-os do barulho dos corredores e com um pigarro, chamou a atenção para si.
— Boa noite a todos. Como devem ter notado, temos um aluno novo com a gente — disse estendendo a mão em direção ao rapaz — Sei que pode ser intimidador e constrangedor, mas poderia se apresentar à turma?
Erguendo-se com um sorriso amarelo esboçado no rosto, ele olhou para os alunos.
— Boa noite, me chamo Bernardo, tenho 22 anos e fui transferido recentemente.
— De onde você era, Bernardo? — perguntou Karina tentando quebrar o gelo.
— Sou de Ponta Grossa, e vim para Curitiba semana passada. Trabalho com vendas online de equipamentos de computadores.
— Que interessante — comentou a professora — Muito obrigada e seja bem vindo à turma.
Bernardo se sentiu com a sensação de dever cumprido e ao longo de toda a aula prestou atenção em cada palavra proferida por Karina, cada passo dado pela sala de aula, cada ajeitada de cabelo. Era impossível que sua beleza e elegância passassem despercebidas.
Ao fim de um dia exaustivo de aula, os alunos saíram de debandada e em questão de segundos os corredores se encheram de jovens e algazarra. Bernardo ia se misturando a eles quando ouviu sendo chamado.
Karina se sentou à mesa e abriu o laptop.
— Pois não? — disse Bernardo se aproximando.
— Se importa de ficar mais uns minutinhos após as aulas para repassarmos os assuntos que você perdeu?
— De forma alguma. Eu até agradeceria se não for um incômodo.
— Puxe uma cadeira. Vamos começar.
Nas sessões iniciais de estudo, Karina dedicou-se a entender o que Bernardo já conhecia sobre o assunto e a partir disso iniciar sua explanação sobre a matéria. Ela notou como Bernardo franzia a testa quando estava concentrado, o brilho em seus olhos quando algo novo fazia sentido, e a forma gentil com que ele a agradecia por cada explicação. Havia uma sinceridade em suas interações que a cativava.
Quando a sessão terminou, Karina sentiu uma satisfação profissional, mas também uma curiosa expectativa pela próxima aula. Bernardo agradeceu e saiu da sala com um sorriso tímido, deixando Karina com uma sensação de realização que costumava sentir apenas nas formaturas
Nas aulas seguintes, a relação entre Karina e Bernardo se aprofundava, ainda que permanecesse estritamente acadêmica. Ele se destacava como um aluno dedicado, surpreendendo a docente sempre em busca de materiais além dos que ela lhe apresentava.
— Estou admirada com seu entusiasmo com a literatura — confessou Karina ao fim da última sessão de aulas de reforço.
— A literatura portuguesa e brasileira sempre teve um cantinho reservado no meu coração. Sempre fui apaixonado pelo nosso idioma e a evolução natural que ele sofreu ao longo dos séculos é intrigante.
— Queria que os outros alunos tivessem esse mesmo interesse. Pelo menos não estariam tão desesperados pelas provas da semana que vem.
— Eu estou ansioso — disse esboçando um sorriso tímido — Afinal, tive uma ótima professora.
Karina agradeceu o sincero elogio com cordialidade apesar de não conseguir esconder as maçãs do rosto que tomaram o tom avermelhado.
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O final de semana era um momento de esquecer o mundo exterior e aproveitar o conforto da família, mas Karina direcionava seu foco para a elaboração das provas para a próxima semana. No sábado de manhã, José Augusto, sempre carregado de responsabilidades inerentes de sua profissão, poderia esquecer tudo e passar horas brincando com a pequena Alice, de 3 anos. Karina, embora preocupada com as provas, sente um momento de paz ao ver a interação amorosa entre pai e filha.
O final de semana passa em um piscar de olhos, mas a breve pausa da rotina é o suficiente para trazer um respiro para a família. Karina sente a complexidade de suas emoções, equilibrando a vida familiar com as pressões profissionais. José Augusto, por sua vez, continua a ser o pilar da estabilidade, mesmo enquanto lida com o peso de suas responsabilidades. Com o fim do domingo, a tranquilidade do fim de semana se dissipa, preparando-os para mais uma semana de rotina.
Durante a segunda fase daquele semestre, Bernardo demonstrava que não era mais um aluno qualquer, mas que se destacava em todas as disciplinas, especialmente na matéria de Literatura, a quem ele reservava uma dedicação especial. Os intervalos passados com outros alunos haviam sido substituídos por momentos de discussão na biblioteca sobre obras literárias com sua professora.
Karina ficava cada dia mais encantada com a paixão com que Bernardo tratava o assunto, ao falar de livros que havia lido ou que estava lendo. Os momentos de intervalos tornavam-se curtos demais e o barzinho em frente à faculdade tornava-se o novo ponto de encontro perfeito para estender a discussão, agitado com o burburinho típico dos estudantes, luzes amareladas e o som de música ao vivo criavam uma atmosfera acolhedora.
Entre as longas conversas e aperitivos, a troca de olhares eram mais intensas e desafiadoras, a empolgação que compartilhavam pela literatura tomava contornos mais íntimos.
— …Álvares de Azevedo trouxe um tom mais sombrio e introspectivo ao romantismo, quase gótico em alguns aspectos — dizia Bernardo.
— Sim, em Noite na Taverna, ele mescla o lirismo romântico com uma visão mais cínica e melancólica da existência. É como se ele estivesse sempre oscilando entre o sonho e o desespero.
A conversa fluía com naturalidade, cada um complementando o pensamento do outro, criando uma sintonia de ideias e interpretações. Eles estavam tão imersos na discussão que o ambiente ao redor parecia desaparecer. Karina sentiu uma conexão intelectual e emocional crescente com Bernardo, um vínculo que transcendia a simples relação professor-aluno. O coração de ambos batia acelerado, seja pelo entusiasmo do assunto que discutiam ou a simples presença um do outro. O sentimento de ambos era embalada pela música ao fundo, com o cantor, em uma voz suave, interpretava a canção Tudo Que Você Quiser enquanto tangia as cordas do violão com delicadeza.
“...Muito mais que um dia eu sonhei pra mim
Tem a pureza de um anjo querubim
Eu trocaria tudo pra te ter aqui
Eu troco minha paz por um beijo seu
Eu troco meu destino pra viver o seu
Eu troco minha cama pra dormir na sua
Eu troco mil estrelas pra te dar a Lua
E tudo que você quiser
E se você quiser, te dou meu sobrenome…”
Bernardo inclinou-se levemente em direção à Karina em um duelo interno entre a razão e o coração enquanto suas mãos se aproximavam das dela, que por sua vez também enfrentava o sentimento ardente que crescia dentro de si que a forçava a manter as mãos onde estavam para que ele as tocasse.
Karina sentiu os dedos grossos deslizando por entre os seus e uma sensação de êxtase tomou todo seu corpo, fazendo com que ela se entregasse àquele sentimento proibido. Sentia que seu coração em breve arrebentaria seu peito a menos que ela saísse dali imediatamente, mas seu corpo se recusava a obedecê-la.
O encontro suave entre seus lábios foi suave, quase hesitante, mas logo a hesitação deu lugar à intensidade. O beijo se aprofundou, carregado de paixão e desejo reprimido. Uma onda de calor os atingiu e cada fibra de seus corpos foi tomada por uma descarga de emoção ardente e incontrolável. Bernardo segurou seu rosto arraigando seus sentimentos mais profundos em um entrelaçar de línguas. Karina sentiu sua pele se arrepiar e seu corpo entrar em ebulição,se entregando ao beijo, sentiu cada nuance, cada movimento, como se fosse a primeira vez que experimentava algo tão intenso. A sensação era avassaladora, uma mistura de desejo e emoção que a fazia perder-se naquele momento.
Quando finalmente se separaram, ambos estavam ofegantes, os olhos brilhando com a intensidade do momento. Karina sentiu suas bochechas queimarem, uma mistura de excitação e culpa. Ela olhou para Bernardo, vendo nele não apenas um aluno, mas um homem que despertava nela sentimentos profundos e conflitantes. Bernardo, em êxtase, sabia que aquele beijo mudava tudo, que não havia como voltar atrás.
— O que foi isso? — indagou a professora piscando como se tivesse despertado de um transe, mas ainda sentindo o calor tomando o seu corpo.
— Uma demonstração física da nossa paixão literária.
Karina sentiu os dedos de Bernardo percorrendo seu pescoço até sua nuca causando um arrepio enquanto os lábios insistentes se mantinham próximos aos seus.
— Te admiro tanto, Karina — continuou — Sua inteligência e a sua paixão pela literatura são tão admiráveis quanto a sua própria beleza e elegância.
— Bernardo… — ela tentava raciocinar — Não devemos prosseguir com isso. É errado de tantas formas diferentes que… — Karina fechou os olhos para se concentrar no que falava ao invés de nos lábios cálidos de seu aluno — Eu sou casada, isso por si só já é um problema… e… sou sua professora, isso é contra o código de ética da faculdade.
O rapaz recuou percebendo que havia avançado demais. A última coisa que queria era fazer com que Karina se sentisse pressionada a fazer algo que não quisesse.
— Me desculpe por isso.
— Eu também peço desculpas se eu te dei a impressão errada sobre mim — disse ela, se endireitando na cadeira e ajeitando o cabelo.
— Não tive qualquer impressão errada. Sei que tudo o que vejo em você é a mais pura verdade e o que eu sinto também é real — ele fez uma pausa e respirou fundo desviando o olhar para a mesa, onde a distância que havia entre suas mãos mais parecia um abismo — Mas eu sei que você tem razão sobre isso ser errado e… eu sinto muito.
Karina sentiu como se um buraco se abrisse em seu peito e foi tomada por uma sensação de vazio e abandono. Era como se todo o ar tivesse sido sugado do ambiente, deixando-a sufocada e perdida. O barzinho, antes acolhedor e vibrante, agora parecia distante e opressor. A intensidade do beijo, a conexão profunda que havia sentido, tudo se transformou em uma confusão de pensamentos e sentimentos.
— Eu... preciso ir — ela murmurou, com voz fraca e distante. Sem esperar uma resposta, ela se virou e começou a caminhar em direção à saída. Cada passo parecia levar uma eternidade, o barulho ao redor dela se transformando em um zumbido indistinto.
O beijo, a atração, a culpa, tudo se misturava em um turbilhão que ela não conseguia controlar. O buraco em seu peito parecia crescer a cada segundo, deixando-a com a sensação de que algo vital lhe tinha sido arrancado.
Conforme caminhava em direção ao estacionamento da faculdade, onde estava seu carro, a sensação de ser observada começou a se insinuar. Karina parou por um momento, olhando ao redor. As sombras dançavam sob a luz amarela dos postes, criando formas indistintas que faziam sua imaginação correr solta. Seu coração acelerou ainda mais, agora não apenas pela confusão emocional, mas também pela inquietante sensação de estar sendo vigiada.