XXXIII
Atravessando a casa na pontinha dos pés, entre as paredes e os móveis excessivamente rosas de Lulu Beicinho, ainda mais rosas com o clarear do dia, o cheiro doce de castanha e amêndoa permeando o lugar, repugnou meu estomago.
O ar da rua me devolveu o cérebro, respirei gole a gole como água. Encontrei a republica entregue às moscas "...cheiro bom de macho...", pensei safado.
O silêncio e o cheiro da casa foram para mim como um abraço pelas costas e uma fungada barbuda no pescoço.
"Maicon está bem" dizia a mensagem no meu celular "por favor não comente o que aconteceu ontem", era do Frederico, usando o celular do Maicon, provavelmente.
Eu ainda oscilava entre dúvidas sobre o que fazer com relação a tudo o que havia acontecido nas últimas horas. Um problema sério demais sempre me fazia pensar em sexo.
"O correto era procurar uma delegacia", caralho, foder é tão mais simples que isso...
O lençol sobre o colchão do Betão estava esticado "deve está com alguma mulher", pensei comigo sem sentir pesar nenhum com essa ideia.
Procurei nos contatos do celular o número do Maicon e liguei. Após algumas chamadas:
- Oi Yuri, - Frederico atendeu a contragosto. - Fala rápido.
- E aí? Deu tudo certo?
- Sim, - ele respondeu. - Você está bem?
Sem esperar por minha resposta, emendou em um folego só:
- Vê se não abre a boca para ninguém, - disse severo - eu vou resolver tudo.
- Vai resolver tudo como? - perguntei deixando-o em silêncio - posso falar com o Maicon?
Frederico cobriu o celular com a palma da mão para abafar a própria voz.
- Melhor não, agora, - disse - não se preocupe, ele está bem, só não quer falar no momento. Está abalado. Você entende não é?
"O que aconteceu?", a dúvida espalhou-se dentro de mim, não pregava os olhos pensando em espancamentos, estupros! Meu corpo esquentava e uma sensação de prostração fazia com que rejeitasse a ideia de levantar da cama.
Eu tranquei a porta do quarto por dentro e encolhido no meio do colchão oscilei entre um cochilo e outro. Mas ao passar a língua por meus lábios senti o gosto de sangue dos lábios rachados "estou com febre".
Não conseguia levantar. Os lençóis pareciam feitos de neve. Minhas pernas não obedeciam minha vontade. Continuei deitado com olhar de peixe morto presos na porta.
- Yuri você está aí? - Duval perguntou do outro lado. - Você comeu alguma coisa hoje? Está se sentindo bem? Sumiu sem dizer nada caralho! Yuri! Yuri!
Eu tentei esboçar uma resposta mas tudo que consegui foi cair do colchão de cara no chão, o frio do chão na minha cara arrepiou todo meu corpo. Com o tombo Duval começou a forçar o trinco da porta, e conseguiu abri-la.
Eu senti suas mãos segurando-me pelas axilas e erguendo de volta ao colchão.
- Cê tá pelando em febre, - disse - que porra Yuri!
Eu nem conseguia articular palavras. Mas compreendia o que estava acontecendo a minha volta. Vi o torso de Fabrício, junto com Duval me carregando para o banheiro. A água fria atingiu minha cabeça e eu tentei escapar das mãos deles.
"Está congelando aqui... está congelando aqui...", era tudo que passava por minha cabeça. Eles me carregaram de volta para a cama e senti uma picada no meio do braço esquerdo.
Tudo apagou a minha volta "o que é isso?", eu abri os olhos, com a dor fina no meu braço como uma picada de um grande besouro sugando meu sangue.
- Que porra é essa!
Mas era só o acesso de um soro que estava na parte de cima de um rodo próximo a minha cama plugado a uma agulha na minha veia. Duval dormia de barriga para cima na cama do Betão, e despertou.
Ele olhou para mim e sorriu colocando a palma da mão sobre minha testa.
- A febre cedeu, - ele disse - agora, desembucha, o que aconteceu com você ontem?
As palavras do Frederico voltaram a soprar nos meus ouvidos como um aviso do além "não conte a ninguém o que aconteceu... eu mesmo vou resolver isso". Era uma ideia tentadora a de dividir com Duval aquela desgraça toda.
Mas ajeitei-me na cabeceira da cama com os travesseiros nas minhas costas e sacodi a cabeça.
- Devo ter comido algo estragado, - falei - foi isso.
- E aquele carro que te trouxe?
- Espera, você viu?... - sacodi a cabeça. - Não é nada Duval...
- Como nada Yuri? Você teve uma febre que parece provocada por crise nervosa. Podia ter dado um choque anafilático se nós não tivéssemos te socorrido.
Duval falava alto e as feias em seu pescoço apareciam grossas como dedos. Eu respirei fundo deixando o ar sair dos meus pulmões e sentindo uma dorzinha dentro de mim que não saberia localizar.
- Choque anafilático? Que bobagem, - eu disse.
Fabrício com uma mão na cintura como uma alça de xícara olhava para nós com as sobrancelhas arreganhadas, e sem camisa o que era uma tentação:
- Será efeito de alguma infecção sexual?
- Não fala asneira, - Duval reclamou.
Eu engoli em seco sentindo a garganta arranhando e perguntei severo:
- Por que desgraça eu teria uma infecção sexual?
- Ah não sei, - disse Fabrício - talvez porque está fodendo com o Betão, que todo mundo sabe que tá podre de ists?
- De onde tirou isso? - falei indignado.
A raiva espumou por dentro do meu peito de tal forma que comecei a tossir. Duval tentou retomar o assunto da noite passada mas eu fechei a cara e não olhava para nenhum dos dois. Eles saíram me deixando sozinho.
"Betão seu filho da mãe!", era coisa dele com certeza, devia estar espalhando por aí que havia me comido.
"Que porra ele ganha com isso?", eu puxei o acesso do meu pulso, sentei na cama, e finalmente fiquei em pé mais uma vez.
- Eu quero saber que porra é essa rolando com meu nome! - gritei para ninguém em especial.