Júlia e Kaique internaram um dia antes para a cirurgia, se eu pudesse me dividiria ao meio para ficar com os dois, mas não deu, então fiquei com nosso filho e minha sogra seria a acompanhante da minha mulher. Eles tecnicamente poderiam transitar de um quarto para o outro, mas preferimos não fazer isso por conta do pós operatório, eu tinha medo de Kaká não entender o repouso e ficar desejando ir de um lado para o outro por ser um menino inquieto.
Combinamos com Mih que ela poderia ir desejar boa sorte, mas depois só os veria em casa, sem visitas por conta do horário e também porque ela ia ficar com meus irmãos e eles já estavam quebrando um galho imenso, não queria dar mais trabalho e atrapalhar a vida profissional deles.
- Você pode escolher o que quiser para fazer uma surpresa para quando voltarmos para casa - falei
- O que eu quiser mesmo? - Perguntou
Pensei melhor e resolvi mudar a proposta.
- Só não envolve cavalos, nem sair de casa, eles vão precisar que a gente cuide deles - disse-lhe
- Não vou colocar um cavalo lá em casa, mãe! - respondeu rindo
Eu estava um pouco tensa, porém com aquela risada dela, foi impossível não dispersar qualquer sentimento ruim.
Primeiro ela foi falar com Juh.
- Mamãe, sabia que vou fazer uma surpresa para quando vocês voltarem? - disse em um abraço
- Agora já não é mais surpresa né, filha - falei rindo
- Mas eu não sei o que é ainda, então será sim uma surpresa - disse Juh colando a testa na dela
Mimi disse que tinha levado o anjinho que pediu a Deus o rim do Kaká para casa de Loren e iria rezar todos os dias para os dois ficarem bem, nisso Júlia se emocionou e a agarrou para mais um abraço.
Quando fui levá-la até Kaique, ela viu minha sogra e já foi abraçar e contar da surpresa, só que eu precisava conversar com D. Jacira aí já pedi que ela fosse falar com Kaká.
- Sogrinha - falei com as mãos no ombro dela - a senhora conhece sua filha... Juh tá emotiva, sensível, então enche ela de dengo pra mim? - Pedi
Ela apenas assentiu, depois deu um beijo nos netos e partiu.
De longe eu vi Milena conversando com uma enfermeira, gesticulando, mostrando alguma coisa nas mãos, na maior intimidade. Quando encostei, Kaique estava confirmando algo.
- Que bênção, vocês duas têm gêmeos! - disse a pobre mulher enganada
Só consegui sorrir a acenar com a cabeça meio sem graça, quando ela saiu eu disse: - Vocês precisam parar urgentemente de mentir sem necessidade por aí, se eu dissesse a verdade, com que cara vocês iam ficar?
E eles gargalhavam, Kaique até rolava segurando a barriga de tanta graça que achava.
- Mãe, lembre que o Kaká vai fazer cirurgia não, pode brigar com ele - disse Milena ironicamente
- Então com você eu posso? - Perguntei carregando-a
- Naaaaaaao! - disse Kaká puxando-a de volta, e ela o abraçou
- Eu te amo, irmão! - disse olhando nos olhos dele
- Eu também te amo, Mimi! - respondeu apertando-a mais forte
Entreguei Mih aos meus irmãos e dei um longo beijo em sua bochecha, enquanto ela me explicava o tamanho da saudade que ia sentir. Prometi ligar todos os dias e nos despedimos.
Na volta, fui falar com Juh, nosso próximo encontro, se tudo desse certo, seria entre 1 ou 3 dias e ela já estaria com um órgão a menos no corpo.
Quando fui entrando, a enfermeira enganada me perguntou: - Ohhhh, já separou os gêmeos?
Extremamente desconfortável, eu confirmei.
- Muito linda a relação deles, são sempre assim ou brigam muito? - perguntou
- Pior que são, até hoje nunca brigaram! - falei um pouco orgulhosa
- Sério? Quantos anos eles têm? - perguntou visivelmente impressionada
- 9 anos - respondi já entendendo, ela estava pensando que eles tinham nove anos de convivência.
- Impressionante. Parabéns, eles são muito educados e engraçados. O menino é mais contido quando está sozinho, mas foi só ela chegar que se soltou, virou um furacão...
Eu sorri, agradeci e já fui me afastando para ver minha muié.
- Amor, é isso mesmo que eu entendi? Você está mentindo para enfermeira? - me perguntou sorrindo
- Ai, môh... Esses seus filhos dão um trabalho... Nem te conto! - lamentei dramaticamente
- Logo você! - disse rindo
Falei as estripulias que aprontaram com a coitada e que quando eu percebi já estava enrolada até o pescoço.
- Não posso mais ficar tanto tempo... - falei encostando nossos rostos e dando um selinho - Eu te amo muito, minha gatinha... Fica tranquila que daqui a pouco estaremos bem e em casa!
- Sem agulhas! - disse completando e eu ri
- Prometo, sem agulhas! - e dei outro selinho passando a mão carinhosamente em seu cabelo
- Eu também te amo, amor, com fé em Deus vai dar tudo certo! - e disse isso com o sorriso mais lindo no rosto
- Me dá um beijo de verdade? - Pedi já indo ao encontro de sua boca
Fiquei um tempo sentindo o cheirinho dela, enchendo de beijinhos no pescoço, mas já precisava voltar. Quando cheguei na porta, virei para ela e perguntei: - Você vai chorar, não vai?
Os olhinhos de Juh já estavam quebrados e ela respondeu: - Vou!
Precisei voltar para mais um longo abraço até ela se sentir melhor, aí sim fui para o quarto de Kaká.
- Ainda bem que voltou, ele já estava ficando entediado e eu não sou criativa para entreter crianças - disse minha sogra
Eu ri e ficamos conversando um pouco.
- Assim que tudo isso passar, a gente sair daqui, qual a primeira coisa que você quer fazer? - Perguntei
Ele ficou um pouco pensativo e disse sorrindo: - Eu vou beber um copo enorme de água gelada!
Como ele produzia pouca urina, uma colher de chá para ser exata, era perigoso ingerir muito líquido. Além de ter certa liberdade de agenda, porque se livraria da hemodiálise, o transplante também resolveria essa questão, Kaique poderia beber a quantidade de água que desejasse, levando uma vida normal, tomando cuidado somente com a alimentação; nos primeiros três meses contaria com uma grande restrição, mas depois disso era só correr para o abraço comparada a vida regrada que ele vivia.
- Ai meu Deus, você é tão fofo, meu fiuuuuu - falei apertando seu rosto e enchendo de beijos
- Assim a senhora vai me esmagaaaar - disse se divertindo
Ficamos assistindo desenho e ele estava quieto, com certeza com sono, mas deu o horário de nos separar para finalmente ser preparado.
Daí para frente, o meu coração acelerou bruscamente, finalmente havia chegado a hora, eu só desejava que desse tudo certo para os dois. Não consegui ficar no quarto esperando, fui para recepção onde tinha mais pessoas, acho que eu só não queria ficar sozinha. Coloquei as mãos na cabeça e fiquei com ela baixa um bom tempo, quanto fui ajustar a postura, olhei para o lado e D. Jacira estava sentada lá agarrada ao seu terço.
- Nem a vi aí, sogrinha... Chegou tem muito tempo? - Perguntei
- Tem um tempo, sim. Estava nervosa, resolvi vir para cá e te vi - me respondeu
- Também fiquei nervosa, sente só meu coração como está - e peguei a mão dela trazendo até o lado esquerdo do peito
- Sua mão também está fria, quer uma água? - Perguntou
- Não, não... É só ansiedade, quero que tudo acabe logo para eu ver meus amores bem - falei
- Nossa Senhora está intercedendo a Deus pelos dois - disse apertando o terço com as duas mãos
- Amém! - disse olhando em seus olhos
A companhia dela me fez muito bem, me senti muito mais calma conversando com alguém e acredito que ela também. A única coisa ruim era o tempo que parecia não passar, foram 3h15min até chamarem a gente para dizer que tinha ido tudo bem e que Juh já estava na UTI, a quantidade de tempo lá, dependeria do progresso da recuperação, no momento estava dormindo ainda e logo saberíamos notícias sobre Kaique.
Assim que a cirurgia dele terminou, eu tive acesso a meu filho. Não foi uma cena bonita de se ver, estava apagadinho, intubado e como ele mesmo diz: "cheio de fios". Logo que a função respiratória normalizou, foi extubado e ficou visivelmente mais agradável.
Passei o olho nele inteiro, e fiquei observando-o até o despertar, demorou um pouco mas nada fora do normal.
- Oi, neném... - falei fazendo carinho em seu cabelo
- Tá doendo, mãe - falou baixinho e com os olhos fechados
- Onde, amor? - Perguntei
Imaginei que ele ia se referir a sonda e se confirmou quando sinalizou, expliquei que era para monitorar a produção de urina, olhei e tinha um pouco de sangue, julguei a quantidade normal e só voltei a fazer carinho.
- Tá sentindo mais alguma coisa? - Perguntei
- Não, a mamãe tá bem também? - Me perguntou
- A mamãe tá sem acompanhante por enquanto, daqui a pouco a gente sabe mais sobre como ela está, mas saiu super bem da cirurgia - falei tentando tranquiliza-lo
- Então ela vai dormir sozinha? - disse assustado
- A mamãe não vai demorar lá, vai dar tudo certo. Você quer dormir mais?
Kaique fez que sim com a cabeça e foi só sossegar que dormiu novamente. Fui descansar com o coração mais aliviado por vê-lo bem e falante. Era só torcer para tudo continuar progredindo!
No outro estava mais esperto, porém reclamando de tudo; da sonda, da cama, de ficar deitado, do tédio, do bip bip bip do monitoramento, dos exames, do acesso... Completamente estressado, e se tem uma coisa que esse menino não é, é estressado. Quase sempre pacífico e calmo em situações adversas, mas com tudo que estava acontecendo, eu o entendia perfeitamente.
Fui cuidando dele pacientemente, com calma, enchendo de carinho, conversando e as vezes conseguia distrair sua cabeça.
Eu estava me preparando para visitar Juh, quando vieram trazer um boletim sobre os dois. Estavam progredindo, mas Juh teve uma forte crise de ansiedade, se não fosse isso, era quase certeza que ela iria para o quarto no outro dia. Foi usado Rivotril/Clonazepam e quando eu bati o olho na dosagem até me assustei, deve ter sido uma baita crise. Adiantei, mas sabia que provavelmente ela estaria dormindo, minha sogra se encontraria lá e eu teria que espera-la sair.
- Pode ir, se Kaique precisar de ti, eu peço para te chamarem - disse D. Jacira quando me viu, ela já sabia do que tinha acontecido
- Obrigada, eu não vou fingir que não queria isso... falei e já parti para ver meu amorzinho que dormia como um anjo.
Uma sensação muito boa tomou conta de mim, apesar de tudo, segurei seu lindo rosto, dei um beijinho, fiquei ali e desafoguei algumas lágrimas, depois de 1h mais ou menos, Juh começou a despertar, mas ainda muito sonolenta, o que era normal.
- Como ele tá? - Perguntou baixinho
- Agitado, inquieto, reclamando de tudo... - falei, mas sem conseguir evitar um sorriso por vê-la bem. - E você, meu amor, como se sente?
Mas ela dormiu novamente, o que me fez achar engraçado. Quando voltou, repeti a pergunta.
- Tá sentindo alguma coisa, gatinha? - e dei um beijinho em sua testa
Júlia negou com a cabeça e disse: - Só quero seu carinho
- Quer denguinho, amor? - Perguntei rindo
E enquanto confirmava, seus olhinhos fecharam de novo.
- Te deram um sossega leão bravo - falei mas nem sei se fui escutada
Não permaneci por mais tempo porque minha sogra precisava vê-la, mas se eu pudesse não desgrudava do meu amor. A senti tão vulnerável naquele momento, meu desejo era protege-la de qualquer coisa que afligisse seu coração.
Realmente, fora a crise de ansiedade, sua recuperação estava indo bem. Eu tinha a intuição (rs!) de que Júlia acordaria mais calma do que nunca e talvez ainda fosse possível sair da UTI no outro dia pela manhã e meu palpite foi quase certeiro, foi liberada para o quarto após às 12h. Senti um conforto ao saber disso, significava que estava ficando tudo bem com minha esposa, eu poderia vê-la mais vezes e agora minha sogrinha poderia acompanhá-la de perto.
Juh ficou mais um dia no quarto e estava tudo certo para receber alta, faltava só normalizar a pressão e a taquicardia que só surgia ao ver as enfermeiras. Sugeri tirar o acesso venoso e deixar eu aferir e disseram que fariam mais uma tentativa, se não desse certo no outro dia eu poderia tentar. Não foi surpresa para mim quando disseram que ela passaria mais uma noite por ali porque a tentativa foi falha.
Eu estava tendo noites péssimas porque, tinha um sofá-cama mas, além de ser um hospital, Kaká ainda não havia superado o medo de dormir sozinho, então eu passei noites e noites "dormindo" sentada, com a cabeça recostada na sua cama e meu braço envolto ao seu pescoço. Não me arrependo, foi importante para não gerar mais um estresse aos seus neurônios, mas foi sofrido.
Minha sogra não sabia disso, porém era impossível não notar o estado deplorável que eu me encontrava.
- Não está conseguindo dormir? - Me perguntou
Expliquei para ela que sugeriu fazer uma troca, essa noite, já que pela manhã eu tentaria ver a alta de Júlia. De início rejeitei porque seria uma tortura para a coluna dela, ela insistiu muito e eu acabei sedendo.
Quando contei a Juh que dormiria com ela, senti que a qualquer momento fogos de artifício se estouraria dentro daquele quarto, não contei os porquês, apenas deitei de ladinho ao seu lado e só despertei no outro dia, tinha tudo para ser desconfortável, mas eu poderia jurar que foi a melhor noite de sono da minha vida!
- Bom dia, gatinha! - e dei um beijinho quando ela acordou
- Bom dia, amor - respondia com um sorriso mas foi interrompido por um rosto espantado enquanto eu tirava o acesso do seu braço
- O que você tá fazendo? - Me perguntou
- Nada demais, relaxa, é só você e eu - e dei outro beijinho! - exclamei saindo do quarto - Era só medo de vocês fardados em cima dela - falei rindo a equipe que já me aguardava
- Ahhhh, agora está explicado! - disse um enfermeiro
Depois que verificaram tudo, finalmente a alta foi concedida e meu amor poderia ir para casa.
Nesse mesmo dia, Kaique pôde ir para o quarto, e, graças a Deus, seu humor e emoções foram se normalizando. Lá ele tinha uma liberdade maior, pude dar um banho de chuveiro nele, fez a primeira videochamada com Mih e conseguiu se concentrar assistindo desenhos.
- Tenho uma surpresa para você, bebê - falei beijando seu rosto
- Que surpresa? - Perguntou animado
- Pode entrar, surpresa!
- MAMÃE! - gritou
- FILHOOOOO! - respondeu também empolgada
Depois de muito chamego e confirmações de que estavam bem, ela precisava ir. Também me despedi com muitos beijos e abracei minha sogra agradecendo por tudo.
Ficamos mais dois dias ali e logo meu mocinho também foi liberado, já estava fazendo 2L de xixi por dia!
- Tô louco pra ver direito minha cicatr... Marca de nascença! - disse rindo
- Você e Mih são os filhos mais relaxados que existem, tenho certeza! - falei enquanto ele dava tchauzinho a todos
Assim que chegamos Kaká disse: - Tio Lorenzo e tia Loren estão aí, olha os chinelos deles
- Eles sabem mesmo fazer uma surpresa, não é, filho? - Perguntei e ele riu
- Cheguei! - disse entrando sorridente
- Bem-vindo, Kaká! - gritaram juntos
Estavam de máscara e espalhados pela casa.
- A gente sabe que você não pode ficar em local fechado com muita gente então demos nosso jeitinho! - disse Lorenzo
- Cadê Mih? - Perguntou imediatamente
- Aquiiiiiiiiiii! - disse surgindo de trás do sofá e vindo até ele
Com muito cuidado, deu um abraço e um beijinho nele dizendo que estava morrendo de saudade.
- Fui completamente ignorado - disse Lorenzo
- Prioridades! - respondi rindo
- E de mim, não estava com saudade? - perguntei para Mih que já vinha em minha direção para um abraço
- Prioridades! - brincou Lorenzo de volta
Quando chegamos a mesa tinha um café da manhã e vários desenhos feitos por Mih, onde ela relatou dia por dia tudo que estava acontecendo, coisas que tinha feito e também como se sentia.
- Eu deixei o último para a gente fazer juntos, vamos para o quarto da mamãe, você vai ficar lá - disse tentando ajudá-lo mas Lorenzo fez isso
- Eu preciso de um banho e cama - falei para Loren me jogando no sofá
- Tirei a semana de folga para ajudar vocês, semana que vem Lorenzo vai fazer o mesmo. Relaxa, agora tá tudo bem! - disse minha irmã
Eu nem consegui agradecer, mas acredito que ela entendeu meu olhar de gratidão pois me abraçou.
Tomei um banho e tudo que Kaique não queria fazer era permanecer em repouso, mas graças a Deus, D. Jacira estava dando conta de controla-lo, e também... de fazer sua filhinha se alimentar, rs!
Kaká nunca desencadeou nenhum problema referente ao transplante, sempre foi muito responsável com tudo; dos imunossupressores (saiu do hospital tomando 16 comprimidos, hoje toma somente 5), a alimentação e até a ingestão de água. A minha única preocupação era mantê-lo menos agitado pelo menos no primeiro ano, porque 4 meses depois da cirurgia ele já queria futebol, jiu-jitsu, skate, correr, carregar Milena... Coisas que ainda não podia. Com muita paciência explicamos sempre da melhor maneira possível e atualmente ele vive normal, pratica esportes e sabe o que pode ou não fazer dentro deles.
Juh desenvolveu anemia, mas só porque ela é bem relaxada com a alimentação e isso foge do meu controle, depende dela. Ela só faz algo a respeito quando começa a passar mal, tipo quando recentemente desmaiou no trabalho.
A "marca de nascença" deles têm o mesmo formato, mas a de Kaká deve ter uns 5cm a mais, não é mais tão notável, porém é visível.
Da adoção ao transplante, aconteceram muitas coisas que não me fazem tirar da cabeça que... Era para ser. O rim de Kaique estava em Júlia, e graças a uma série de milagres, coincidência, ao destino, a Deus... Hoje nosso filho vive!