“Uma menina?” — você se perguntou — “o que ela tá fazendo aqui?”
Isso foi há muito tempo. A memória ainda está lá, nos recessos mais obscuros da sua memória, agora tão fragmentada e incoerente.
Como se lembrar de algo que aconteceu anos atrás, se você mal consegue recordar dos acontecimentos mais triviais ocorridos na noite passada?
“Nunca mais eu bebo” — você pensa.
A velha promessa.
Nós sabemos que é mentira. Quase um mantra que você reza internamente na esperança de que Deus, em sua infinita misericórdia possa acabar com a ressaca que te aflige.
Claro, a ressaca é o menor dos seus problemas.
Se livrar do corpo é um problema. Não um grande problema. Só jogar um pouco mais de lixo por cima. Afinal, quem vai realmente ligar para um mendigo a menos no mundo? Não é como se tivesse sido o primeiro. Certamente não será o último.
Viu? Nem tem sangue na sua roupa. Lembro que no começo, você se lambrecava tanto que suas roupas se tornavam imprestáveis depois.
Sim, querido. Sou fruto da sua imaginação, uma velha amiga imaginária. Volte a me ignorar.
Você limpa a faca e a larga na cena do crime. Não é como se alguém fosse investigar de verdade.
A imagem da menininha ruiva, aquela coisinha sinistra, te olhando no escritório me traz boas recordações. Você pensou que era filha de algum funcionário e varreu sua imagem para debaixo do tapete da polidez. Uma pessoa polida, escondendo sob a máscara cagada de bom moço, a Fera. Isso também me traz boas recordações.
Onde está mesmo? Ah, achei. Você estava no seu escritório, aquele mesmo onde viu a menina – e onde dela se esqueceu – e estava desesperado. O prédio estava sem internet. E, sem internet, você não tinha como alimentar a Fera. Primeiro ela se alimentava de filmes de terror. Depois de histórias conspiracionistas. Depois de histórias envolvendo assassinatos reais, assassinos em série, rituais macabros, necrofilia. Em algum momento, você caiu na dark web. Red room, tráfico de amputados, bonecas sexuais, coprofagia, etc. E de lá não saiu mais. Naquele dia, você não tinha como alimentar o monstro. E o monstro queria se alimentar de você.
Felizmente havia uma outra ruiva na sua vida. Havia Giselle.
Giselle com suas unhas arteiras, sempre roçando na sua nuca. Giselle do perfume floriental demarcando o rastro dos seus passos. Giselle dos e-mails, dos docs, do chat, que nunca falhava em te fazer ejacular no escritório ou na sala de aula à noitinha. Você abriu o celular e releu os PDFs que havia salvo. O hálito modorrento da Fera deu lugar ao doce perfume. As garras deram lugar a unhas safadinhas e você quase pode sentir Giselle arranhando suas costas, enquanto rebolava no seu colo no auge da paixão. O orgasmo veio tingido de rubro. Foi como se algo dentro de si houvesse se rompido. Você olhou para a mão ensanguentada com um divertimento infantil. E a Fera só voltou para a casinha quando você deu uma boa lambida.
Foi Giselle quem te ensinou sobre os sigilos, quem te ensinou sobre os servidores. Ela dizia que a magia era mais forte nas mulheres, mas os caminhos da lua estavam abertos aos homens que se dispusessem a se ajoelhar perante a deusa. E você ajoelhou, lembra? Ela colocou a perna sobre o seu ombro e te permitiu beber do seu néctar. Você a reconheceu como sua deusa e se reconheceu como uma pequena formiguinha à seu serviço.
Mas, naquela época, nem Giselle, nem o marido dela – ela tinha marido, lembra? – estavam conseguindo pagar a internet direito. Então você ficava semanas sem ter contato com ela.
Foi quando você começou a beber.
Nem cerveja, nem cachaça eram suficientes para refrear a Fera. Então, em um ato de desespero, você fez o ritual que Giselle te ensinara. Só mulheres podem cruzar uma ponte da lua. E elas o fazem usando sangue menstrual. Nos últimos tempos, você andava gozando sangue toda vez que se masturbava pensando na ruiva. Com o sangue da lua, pouco antes de desmaiar, você fez o mais perigoso dos sigilos. E me convocou.
Naquela noite, você sonhou comigo. Você cruzou a ponte do enforcado, percorreu a vereda sanguinolenta e chegou aos meus domínios no coração da tênebra.
Eu nasci como um broto de Artemísia, que você regou com esperma, sangue, lágrimas e suor. Uma planta com raízes mandragorianas que secretava absinto. E quando você bebeu, eu surgi de dentro da sua garganta, reconfigurando sua carne para me materializar a partir dos seus muitos pecados.
Meu mijo verde te fez esquecer a Fera. Te fez aguentar firme até que sua deusa entrasse de novo em contato.
Claro que não te concedi essa bênção de graça. Houve um preço a pagar. E todos aqueles mendigos pagaram esse preço.
A cada novo sacrifício eu reivindicava mais um pedacinho da sua alma. Com o fio de prata de seus ancestrais, eu envolvi o seu lobo mau. E esperei os comandos da deusa.
Ah, aí está ela.
Interessante, então nós vamos voltar ao velho continente. Vamos novamente nos envolver nas raízes da Yggdrasill. Vamos novamente caçar Gandr e seus filhotes.
Mal posso esperar.