Juh e eu fomos a Vara da Infância e da Juventude poucos dias depois que retornamos de Porto Seguro. Chegando lá, solicitamos a lista de documentos que precisariam ser entregues para dar início a todo processo de adoção. É realmente um processo longo e burocrático, mas levando em conta que se trata de vida, é até bem justificável. Saímos de lá animadas e com uma longa lista nas mãos, quando cheguei em casa liguei para o advogado porque também nos informaram que seria necessário elaborar uma petição para dar início ao processo de inscrição.
Os documentos requisitados, a maioria são os que já estamos acostumados a apresentar com os acréscimos do Comprovante de Renda, Atestados de sanidade física e mental e a Certidão de antecedentes criminais. Por conta da nossa rotina, as consultas demoraram um pouco para serem realizadas, e foi preciso umas 4 semanas para tudo ficar pronto e ser entregue.
Era um campo novo para mim, eu me dediquei tentando entender os próximos passos e tentando não ficar ansiosa. Basicamente agora era aguardar; em alguns lugares era recomendado alguns cursos (hoje em dia é obrigatório, pelo menos aqui em Salvador) e em outros lugares os candidatos apenas esperam as análises e são encaminhados uma entrevista. Esse processo introdutório mudou bastante, mas foi um pouco cruel, na minha opinião, era como se eu não tivesse segurança nenhuma de que algo iria se concretizar.
No dia da inauguração da Clínica, bem cedo, meu celular tocou e assim que desliguei, o de Juh também tocou, era a assistente social, seu nome era Carmem e ela nos convidou para uma reunião com os outros pais, onde nós faríamos o curso preparatório. Pelo que li, aquilo era só o início de um grande percurso que ainda íamos trilhar, mas foi o nosso primeiro contato com "alguém". Veio em um ótimo momento, eu estava precisando daquela boa carga de energia.
Nós chegamos para a inauguração extremamente eufóricas e sem conseguir disfarçar tamanha felicidade por aquele pequeno passo, todos pensavam que era por conta do evento, da conquista, mas com certeza 90% de mim era animação por estar um pouco mais próxima da nossa nova filha. Não que fosse um segredo o processo, eu já tinha comentado que tínhamos vontade de adotar um bebê e Juh sempre deixou isso claro, mas o fato de não ter nada nas mãos, tudo parecer muito longe e irreal, preferimos nos resguardar. E também, Milena não sabia de todos os trâmites. Eu odeio esconder ou mentir para ela, odeio enganações em geral, mas se a gente falasse com ela, poderia gerar uma frustração pelo tempo que poderia demorar e teríamos que dizer a cada segundo que não, a irmãzinha dela não ia chegar em um passe de mágica.
A abertura foi um sucesso, as primeiras semanas foram extremamente tranquilas, sem muitos pacientes mas até isso foi positivo para mim, pude sair para os cursos sem problemas. Juh precisou sair mais cedo do trabalho, o que gerou um certo desconforto com a gestão da escola.
A preparação foi bem esclarecedora, gostei porque não romantizaram, ouvimos a verdade nua e crua envolvendo preconceitos, dificuldades que poderíamos enfrentar, adaptação da criança e no último dia, que se tornou um dia muito especial em nossos corações, pudemos tirar dúvidas fazendo perguntas no final. Meu questionamento foi na verdade um desabafo, que quando terminei, percebi que era quase que coletivo, justamente sobre a falta de contato de um ponto ao outro durante o percurso que estávamos fazendo. A resposta foi mais ou menos o que eu já esperava... Que a prioridade são as crianças, mas que a partir daquele momento existiria um contato maior.
Recebemos um formulário que eu achei que só viria na entrevista, era para escolher o perfil da criança e preenchemos como tínhamos conversado antes. Uma menina, de 0 a 4 anos, sem irmãos. A única questão que não falamos sobre foi sobre "doenças" e acabamos marcando a opção doenças que possuem tratamento.
Saímos de lá com o número da assistência social e uma psicóloga, ambas fariam o nosso acompanhamento até a habilitação, se a gente conseguisse chegar até lá.
Eu fui dirigindo e subi em uma rua para fazer a volta, e demos de cara com um abrigo, era bem grande e as cores chamavam a atenção.
- Será que a gente pode entrar, amor? - Perguntou Juh esperançosa
- Acho que não, deve precisar de alguma autorização - Respondi
- Vamos tentar? - Perguntou já abrindo a porta, eu estacionei e fui atrás
Chamamos e uma senhora muito simpática nos atendeu, perguntamos se poderíamos fazer uma visita e ela perguntou qual a intenção da visita, vendo nossas caras de perdidas, ela começou a nos dar opções.
- É uma visita com interesse em conhecer o espaço? Fazer alguma doação?
- A gente quer conhecer para fazer uma doação - falei tentando passar convicção
Ela se apresentou, seu nome era Sandra e nos convidou para entrar. Fomos passeando e ela mostrava os cômodos e o que as crianças faziam fora do horário de aula. No momento, eles estavam em uma oficina de artes e pudemos observar até que um furacãozinho passou correndo por nós, gargalhando de uma funcionária que claramente estava morta de andar atrás dele.
Ele era magrinho, moreno, quase do tamanho de Mih, devia ser maior pouca coisa e tinha o cabelo raspado.
- Joaaaaaaaaaaaao! - ela gritou
E novamente ele passou rindo, se desviando dela e acabou vindo em minha direção. Por instinto ou reação eu o segurei carregando e um sorriso surgiu no meu rosto, eu olhei para Juh e acho que ela sentia a mesma coisa que eu.
- João o seu nome? - Perguntei
- É, mas eu odeio esse nome e quando crescer vou trocar! - disse decidido
- Ah, é? E qual nome você vai escolher? - Perguntou Juh
- Max, é super radical que nem eu - falou conservando o riso
- Eu posso te chamar de Max então? - Perguntei e ele acenou positivamente com a cabeça
- Quantos anos você tem, Max? - Perguntei
- 8 anos, vou fazer 9 esse ano - Me respondeu
- Sabia que a gente tem uma filha com essa idade? - Perguntou Juh e ele negou
- Vem, João! - Chamou a moça que corria atrás dele - Você sabe que não pode ficar correndo assim - completou
- Desculpa por isso! - disse Sandra tentando pegar ele que se jogou para o colo de Juh
- Você é lindo! - Disse Juh para ele
- A tia Sônia cortou o meu cabelo, sem cabelo eu sou feio - falou meio tristinho
- Ei, nada disso, você é lindão! - falei olhando nos olhos dele que eram vibrantes, marcantes
Finalmente conseguiram pegar ele e o levaram para se juntar as outras crianças.
Eu estava em êxtase, completamente apaixonada, segurei a mão de Juh e estava fria assim como a minha. Eu estava louca para sair dali e conversar com ela sobre, para saber se sentia o mesmo.
Fomos andando até o escritório e só então eu lembrei da doação, pedi a conta bancária e disse que voltava assim que fizesse para saber se estava tudo certo, Sônia deixou claro que não precisava mas eu disse que fazia questão. Era só um pretexto para voltar ali.
Íamos em direção ao carro e eu comecei a me sentir um pouco mal, sentamos em uma lanchonete e Juh pediu água.
- Acho que a minha pressão está baixa - falei sentindo a visão escurecer um pouco
Ela estava toda preocupada, enfiando copo d'água a dentro
- Vamos no hospital, amor? - Perguntou
- Não, amor, tá passando... Nem sei se foi a pressão mesmo, pode ter sido o sol... - falei
Com o ânimos mais acalmados, um medo fora do comum começou a tomar conta de mim.
- Amor, será que a gente fez bem em ir? - Perguntei
- Eu amei, amor - disse sorrindo - Max é um fofo, eu senti de imediato uma conexão, será que tem como a gente tentar? Você já leu alguma coisa sobre? - Me perguntou
- Não li nada sobre, mas sei que sem que sem a habilitação não podemos adotar ninguém... O que mais me enche de medo agora é existir a possibilidade daquele menino não ser nosso. - finalizei
Ela segurou minha mão sorrindo, me deu um beijo e disse: - Com fé em Deus será nosso!
Fomos para casa, dessa vez com Juh dirigindo. Eu já estava bem, mas ela fez questão. Pensei em ligar para a assistente social mas achei melhor reorganizar os pensamentos e formular algo forte para dizer porque eu ia tentar até onde desse.
No outro dia, eu fiz o depósito e estava em uma rua próxima ao abrigo, passei pela frente só para ver se tinha a possibilidade de ver o João, ou melhor, o Max, por ali mas nada dele, na verdade nenhuma criança.
- Amor, acho melhor a gente contar sobre o que fizemos ontem quando marcarem a entrevista - falei ao chegar em casa
Juh estava com Mih no colo e disse que concordava.
Sempre que a gente tocava no assunto, imediatamente um sorriso bobo tomava conta de nós, foi estraçalhador o que aconteceu ali. A energia daquele garoto mexeu com a gente.
Meus pais apareceram porque passariam a semana com a gente, meu pai ia me ajudar a achar uma casa legal e dentro do orçamento que tínhamos. O ap de Juh já tinha sido vendido e eu já tinha anunciado a nossa. No caminho meu pai, foi falando sobre abrir uma filial da empresa de gás em Salvador sob a gerência de Loren e Lorenzo. Eu fiquei muito feliz mas logo saquei o que ele estava tentando fazer.
- Pai, o senhor tá fazendo isso porque acha lucrativo ou porque quer deixar nós três próximos? - Perguntei
- Você sabe que eles só não moram aqui por conta do trabalho... - falou
- Pai...
- Vocês se amam, Milena sente falta... - disse-me
- Isso seria muito controlador, não acha? - Perguntei
- Eu acho que eles vão adorar a ideia, dependendo de onde você comprar sua casa, se não for incômodo para você e Juh, compro uma menor para cada um, tenho certeza que ficarão satisfeitos - concluiu
- Eu adoraria morar perto deles dois novamente, Juh e Mih também, desconfio que minha filha mais que eu até, mas não acho legal usar eles assim, sem saberem... Pergunta primeiro se eles querem isso ou o que acham, eu não me sentiria a vontade se fizessem isso comigo.
- Vou perguntar, mas já sei a resposta - disse sorrindo
O corretor nos levou em diversas casas e eu ia enviando fotos para minha mulher, ela selecionou três. Nossos únicos requisitos eram: ser ampla para que nossos filhos pudessem brincar e não tivesse aparência de hospital e sim de casa.
Das três que ela escolheu, eu gostei muito de uma e no outro dia, Juh poderia olhar pessoalmente e foi o que fizemos. Decidimos que seria mesmo aquela. Ela tem dois andares, garagem, na área externa tem uma piscina e muita área verde. Os detalhes em madeiras deixa a casa extremamente acolhedora e confortável.
Uma pessoa do condomínio, que morava na parte dos apartamentos sentiu interesse no nosso anúncio e após visitar também fechamos negócio.
Conseguimos dar uma boa entrada e financiamos o restante em prestações não muito longas, de forma que conforme íamos recebendo de um imóvel, pagaríamos o outro.
Compramos alguns móveis novos que já tinham chegado, mas também aproveitamos muitas coisas. E na semana da mudança, recebemos a ligação da entrevista. Não poderia ser em hora melhor, para não dizer ao contrário! Mas confirmamos, corremos o máximo possível para ficar tudo organizado.
A gente via diversos vídeos no YouTube de como geralmente são as entrevistas e, embora nervosa, eu me sentia muito segura. O meu tendão de Aquiles era receber a notícia de que seria impossível adotar a criança que eu observava de longe quase todos os dias brincando às 15h na varanda do abrigo.
A Assistente Social Carmem e a Psicóloga Janine fizeram várias perguntas sobre nossa vida pessoal, profissional, o porquê queríamos ter filhos e fomos bem transparente nas respostas, pediram fotos da nossa família e fomos mostrando. O bom de ter pegado gosto por registrar momentos foi que elas puderam ver muita coisa e se certificaram que teríamos rede de apoio, que é uma das maiores preocupações.
Puxaram o formulário que preenchemos no curso e perguntaram se queríamos mudar algo.
- Então... Fomos bem transparentes até agora e quero continuar sendo. Preciso relatar algo. - falei
Elas assentiram e eu continuei
- Nós fomos fazer doação no abrigo tal e nos apaixonamos a primeira vista por uma criança. Ela foge de todos os padrões que inserimos aí. É um menino e tem 8 anos. Tivemos uma ótima interação, muito rápida mas nem significativa para nós e se houver a possibilidade de ser ele, ficaríamos muito feliz. - finalizei
- O João, ou Max como ele prefere ser chamado... Despertou em nós algo que nem sabíamos que existia, o desejo dar um tom de azul ao nosso mundo tão cor de rosa. Em minutos de conversa fomos cativadas por ele, de forma singular e pura. Se o filtro puder se encaixar nele, seríamos o casal mais feliz atendido por vocês - concluiu Juh sorrindo
Elas sorriram de volta e logo Carmem começou a dizer: - Vocês fizeram bem em nós contar mas devem lembrar que não depende da vontade de vocês. Primeiro é preciso focar na tão sonhada habilitação e só depois poderemos checar as preferências de vocês com as crianças. O filtro pode sim ser alterado para se encaixar no padrão dele mas não significa que ele será escolhido. Sem falar que vocês não sabem o tipo de abrigo, o bem estar da criança é sempre priorizado, ele pode ser um dos tantos que estão lá temporariamente para voltar a sua família de origem.
Eu fiquei arrasada com o que ouvi, mas consegui disfarçar bem, Juh também. Nós conversamos antes de sempre passar neutralidade em nossas reações porque já estávamos na metade do percurso e não queríamos perder tudo por uma falha nossa.
Assim que saíram, fomos para cama e eu abracei Júlia, eu precisava muito colocar para fora, chorar e ela também. Fizemos isso juntas, uma apoiando a outra e torcendo por um milagre, uma coincidência, uma ajuda do destino. Qualquer coisa!
A psicóloga passou a nos acompanhar mais de perto e sempre levantava a questão do: "Vocês estão prontas para continuar se o resultado não for o esperado?" e assim levamos por mais algumas semanas.
Já tinha passado alguns meses após a entrega dos documentos, era o meu aniversário, uma data que geralmente eu não gosto muito de comemorar. Estava na clínica trabalhando e no meu horário de almoço, uma bela mulher adentrou na minha sala cantando parabéns com um bolinho na mão.
- Aaaaah, amor... Não precisava! - falei enquanto puxava ela para sentar no meu colo para um abraço e ganhei um beijinho
- Eu sei que não precisava, mas eu quis mesmo assim - e me deu mais um beijo
Ambas já haviam almoçado então comemos um pedacinho do bolo.
Enquanto eu tirava o jaleco ela falou: - É diferente ver você de médica, geralmente é só minha mulher psiquiatra mas assim parece tão... mais séria
- Oxe, não entendi - falei rindo
- Nem parece a pessoa mais engraçadinha do mundo assim... - continuou
- Mas isso é bom ou ruim? - Perguntei
E meu celular tocou, era a assistente social, coloquei no alto falante e avisei que Juh estava comigo.
- Tenho uma ótima notícia para vocês!
- Pode dizer! - falei
- Considerem-se grávidas, vocês estão finalmente aptas e na fila de adoção!
Era uma notícia maravilhosa, ficamos surpresas porque passamos dias e dias esperando por aquilo, e em um dia que não estávamos focadas no assunto adoção, a novidade mais esperada por todos que estão no processo vem.
Ao desligar, festejamos muito, pulamos abraçadas em gritos silenciosos e visivelmente emocionadas. Agora sim poderíamos reunir a família e contar também para Mih, ela precisava se preparar para a chegada do Max ou de qualquer outra criança que viesse a se tornar seu irmãozinho ou irmãzinha.
Fomos para casa dos meus pais e levamos também meus sogros, lá anunciamos o processo, ficaram felizes conosco e quiseram saber detalhes e há quanto tempo estávamos nisso e fomos contando, omitindo somente a parte do Max.
A noite, a sós, conversamos direito com Mih, que saltitava na cama de um lado para o outro sem parar de tanta alegria.
- Eu tinha certeza que seria um menino! - disse quando falamos como provavelmente seria
Não sabemos como pois em casa sempre falávamos no feminino, eu até pensei que ela não aceitaria muito bem mas foi mais do que bem aceito.
Um mês depois de contar para a família, recebemos a melhor ligação das nossas vidas, havia uma criança no nosso "radar" se encaixava perfeitamente no padrão e então Carmem marcou um novo encontro conosco quando confirmamos o nosso interesse.
Ela não parecia muito feliz mas tentava disfarçar.
A cada palavra dita por ela meu coração se dilatava de felicidade.
- Esse é o João - mostrou uma foto pra nós e era o nosso menino, no registro ele estava um pouco mais novo, mais fortinho e cabeludo, por sinal um belíssimo cabelo cacheadinho como o da minha esposa. Conservava o sorriso doce e o olhar marcante - ele tem 9 anos e está em tal abrigo (o que visitamos)
- É ele! - Juh disse em meio a lágrimas, eu apertava suas mãos, eu também queria chorar.
- Tem uma razão para ele estar em 1° lugar na fila e não ter demorado como é de costume para o contato ter acontecido... - ela não tinha uma cara boa e nós fomos ficando tensas - Ele tem um problema renal grave, está fazendo hemodiálise mas precisa de transplante, inclusive, está na fila.
Continua...
Obs1: Todos as informações passadas sobre adoção são baseadas no ano de 2017 e em Salvador, eu tentei colocar algumas informações novas porque meu irmão entrou no processo recentemente e eu pude acompanhar de perto, muitas coisas mudaram para melhor. Ele foi muito bem assistido no processo inicial!
Obs2: Talvez seja uma leitura um pouco chata no início, é um processo longo e burocrático. Foi assim que vivemos ele.
Obs3: O "continua" eu aprendi lendo por aí... 👀