A bruxa apagou o cigarro com um suspiro.
A lua sangrenta brilhava no céu noturno.
Os cascos dos cavalos podiam ser ouvidos sobre as nuvens carregadas. Chuva e trovão. Cães, elfos e deuses esquecidos.
— Tá entediado de novo? — ela perguntou ao ceifador — Cansou de brincar com garotinhos?
— Eles quebram rápido, esses deuses do novo mundo. E você? Ainda negociando com a Igreja?
— Consegui um bom estoque de água benta — a bruxa disse, retirando do bolso um cantil de prata — Tá servido?
— Isso vai te matar dia.
A bruxa tomou um longo gole, depois soltou fumaça pelas narinas.
— Aposto que você vai estar me esperando.
— Sei não. Quanto tá valendo a sua alma por esses dias?
— Isso depende. Os vagalumes não pagariam um tostão furado, mas dizem que o diabo subiria pra me buscar.
— Nem. Ele anda ocupado com sua pequena vendetta. Bem, ninguém me falou nada, se é o que quer saber.
— Você não veio me ver pelo azul dos meus olhos.
— Nem mesmo se eles fossem azuis.
— E então?
— Então o que?
— Tá, entendi. Você não vai me contar.
Como uma ave de mau agouro, o ceifador seguiu a bruxa. Não havia o que fazer. Ela sabia como lidar com demônios, mas condutores estavam fora da sua alçada.
Aquela era uma semana fraca, poucos exorcismos. Ela cobrou muito mais do que devia, é claro. Você precisa estar muito desesperado para recorrer a uma bruxa com tantos padres por perto, então não reclame por ela torcer a faca.
Então surgiu um trabalho que ela não fazia à muito tempo. Um velho moribundo queria que alguém devorasse os seus pecados. A bruxa não era muito fã de lágrimas, mas estava tentando largar seu vício em esperma e tinha pouco sangue de qualidade no mercado. Então ela topou. E sorriu ao descobrir quais pecados estavam no cardápio. Um dos raros pecados que ainda não deixaram de existir na modernidade líquida. Não houve negociação, o velho monstro entregou a ela toda riqueza que acumulara em troca dos tesouros do paraíso.
Outra, que não ela, acharia uma refeição um tanto indigesta, mas aquela bruxa já comeu coisa pior.
O selo foi ativado, o pactuário recebeu a sua parte. E a bruxa bebeu as lágrimas, a culpa e devorou todos os demônios que atormentavam a sua sombra.
— Seu preço acaba de subir no mercado — o ceifador disse, fazendo as contas e tentando pensar em um comprador. No entanto, os riscos ainda superavam as recompensas.
Por um extra, o ceifador despachou a alma do penitente para o além.
Ele deveria saber melhor. Bruxas não garantem o paraíso. Elas só te tiram do inferno.
A água benta desceu queimando. Todas aquelas crianças gritando em agonia.
— Precisa de ajuda para chegar em casa?
— Eu tô bem — a bruxa disse, zumbizando pela rua.
Uma gostosinha daquelas bêbada no meio da madrugada não tardou a chamar atenção. Mas o rancor em seu olhar lhes roubou a virilidade. Pelo menos a grinalda que lhe feria a coxa fez o seu trabalho.
“Uma pena” — a monstrinha dentro dela murmurou — “mesmo de má qualidade, um pouco de esperma viria bem a calhar. Um pouco de esperma e muitos litros de sangue”.
Ao chegar no santuário, a bruxa se deixou cair no sofá. Soltou um estalo de língua ao perceber o ceifador ainda por perto.
No céu tempestuoso, a caçada selvagem continuava.
Só mais uma terça-feira.