Cahya, a mulher que atraiu Nestor tinha o rosto típico das mulheres orientais. Olhos oblíquos, rosto largo e o nariz meio achatado, mas a harmonia dos seus traços a colocaria sem nenhum favor entre as mulheres mais bonitas de seu país. Ou talvez do mundo inteiro.
Não bastasse a beleza deslumbrante de seu rosto, ela tinha um corpo maravilhoso. Com um metro e setenta de altura, cinquenta e oito quilos, seu corpo tinha tudo do tamanho correto. Não se podia dizer que alguma parte dele fosse pequeno, grande, quanto mais exagerado para um lado ou para o outro. Seios, bunda, cintura fina, pernas roliças e longas e uns pezinhos adoráveis.
Mas não foi o seu corpo que chamou a atenção de Henrique. Aliás, ele nem sequer teve um vislumbre disso em virtude do vestido largo e simples que ela usava. O que o encantou no momento em que pôs os olhos nela foi a beleza de seu rosto e nem mesmo os seus lindos pés chamou a atenção dele naquele momento, uma vez que não conseguia desviar os olhos da beleza de sua face.
Não bastasse isso, ainda tinha o fato de ela ser extremamente tímida. Cahya manteve a cabeça baixa e parecendo sempre estar olhando para seus próprios pés mesmo quando foi cumprimentar os visitantes, pois Bonaparte estava junto com ele nessa visita. Mas ao sentir a temperatura cálida da mão dela em contato com a sua o Henrique chegou a estremecer, principalmente porque, nesse momento, ela levantou um pouquinho a cabeça e forçou os olhos para cima. Seus olhos se encontraram e o rapaz se sentiu em queda livre nos abismos daqueles olhos negros e sentiu naquele momento que estava perdido, pois foi atingido pela beleza daquela mulher como se um raio tivesse caído em sua cabeça.
Sua mão se recusava a libertar a dela que também não fazia esforço nenhum para se livrar daquele contato. Nesse momento, uma mecha de seus cabelos negros e com cachos que caiam como uma cascata até o meio de suas costas se soltou e cobriu seus olhos e ele teve que lutar contra o impulso de estender a outra mão e arrumar aquela mecha que impedia o contato visual entre eles.
Ainda sem soltar a mão da mulher, Henrique pediu para que o Bonifácio lhe entregasse uma sacola que carregava e lhe entregou. Era um simples ato de cortesia. Ele escolhera com cuidado e se decidira levar vários pacotes de Kopi, uma bebida feita à base de grãos de café e muito popular naquele País. A garota viu o que tinha dentro e agradeceu com um simples obrigado.
Foi a única palavra que ela disse naquele momento, mas para o Henrique era mais que suficiente. Sua voz, embora um pouco tremida, o que ele creditou à timidez dela, soou aos seus ouvidos como um sino de prata manuseado por um anjo.
Mas o ato de entregar o presente fez com que o contato de suas mãos se desfizesse, O Henrique olhou para o Nestor e seus olhos se encontraram sendo impossível que ele não percebesse que aquele brilho homicida que o fuzilava não podia ser nada bom. Naquele momento o Henrique percebeu que a sua permanência naquela casa tinha que ser breve, pois sabia que não estava preparado para ficar sob o mesmo teto e respirar o mesmo ar que aquela linda mulher e ao mesmo tempo resistir ao desejo de tê-la em seus braços.
O problema é que já era tarde demais. Nestor, sentindo um ciúme que lhe corroía as entranhas, já estava pensando em fazer alguma coisa contra o seu amigo. Melhor dizendo, ele não via o Henrique mais como um amigo. Para ele, era simplesmente um rival que tinha ido até ali para roubar-lhe o bem mais precioso que ele possuía.
Desta forma, o que era para ser uma reunião alegre de dois amigos que não se viam há oito meses, tornou-se um encontro constrangedor onde, a cada minuto, Henrique tinha que lutar para impedir que seus olhos ficassem seguindo os movimentos da bela mulher enquanto Nestor não fazia nenhuma questão de mostrar que ele não era bem vindo à casa dele.
Foi por causa disso que, logo depois de um almoço simples, mesmo assim delicioso, Henrique apareceu com a desculpa de um compromisso e começou a se despedir do amigo. Ele não estranhou que, logo depois do almoço, a casa começou a receber outras pessoas que, pela aparência, eram todos nativos daquele país, não havendo entre eles nenhum que não fosse oriental.
Ao ver que o amigo estava pronto para se retirar, o Nestor insistiu para que ele ficasse mais tempo ali e quando sentiu que o Henrique resistia ao seu convite, apareceu com uma história de que tinha um serviço para fazer em uma casa que pertencia a um parente de Cahya que ficava próximo dali e que eles não conseguiram porque necessitava de alguém com força e quando Henrique lhe ofereceu ajuda, ele disse que não precisava, que o Bonifácio e dois de seus amigos poderiam fazer isso.
Henrique não percebeu que havia algo de estranho naquela história. Afinal de contas, se bastava o Bonifácio e mais dois homens, deveria haver homens o suficiente nos arredores que, unidos, conseguiriam realizar a tarefa. Desejando ser gentil, concordou em ficar e deixou que o Bonifácio acompanhasse os dois rapazes que, segundo o Nestor, eram muito amigos dele. Ele também não estranhou o fato de que, desde o término da refeição, a mulher tinha desaparecido. Ele olhava para todos os lados para que pudesse, pelo menos, apreciar sua beleza, mas parecia que ela tinha se evaporado.
Quando estavam sentados em cadeiras desconfortáveis na frente da casa de Nestor, Henrique viu um grupo de cinco homens se aproximando deles e, quando pararam diante do amigo, começaram a conversar em sudanês, uma língua original da Java Ocidental. A princípio ele achou aquela situação normal, pois era justamente essa a sua localização no momento, porém, quando os homens começaram a olhar muito para ele e alguns até apontavam para ele quando falavam, começou a ficar apreensivo. Ele percebeu que era o assunto daquela conversa.
Sua preocupação se dissipou quando o Nestor, se dirigindo a ele, disse:
– Esses caras são todos da família da minha mulher. Eles estão insistindo em que você não pode ir embora sem olhar a beleza do rio que passa aqui perto.
Se Henrique conhecesse um pouquinho mais da geografia da Indonésia saberia que naquela região não havia nenhum rio que despertasse a atenção de alguém, mas querendo ser gentil, aceitou e não demorou a se arrepender quando viu que o seu amigo dava sinais que o acompanharia. Olhou nos olhos de cada um daqueles homens e o que viu não lhe agradou.
Foi então que o Nestor explicou para ele que seria uma falta de gentileza não aceitar esse convite e ele, tentando fugir, perguntou:
– Então vamos. Assim podemos continuar a falar de como foi nossa vida nesses últimos meses.
Nestor coçou levemente o queixo e respondeu hesitando:
– Ah! Que pena, cara. Eu não vou poder ir. Prometi para minha esposinha ir com ela visitar uma irmã que ganhou bebê há três dias.
Com as pernas tremendo de medo, pois a cada minuto e a cada gesto ou palavra de Nestor, ele sentia que havia ali um ressentimento muito grande. Isso era algo que ele não conseguia entender, pois em sua mente, não havia feito nada que pudesse ofender a ele.
Henrique foi conduzido por uma estrada e depois de andar duas centenas de metros foi orientado, através de gestos, a entrar em uma espécie de trilha. Dois dos homens iam andando à sua frente, um ao seu lado e outros dois atrás. Andaram apenas alguns minutos quando os dois homens que iam à frente pararam. O que estava ao seu lado olhou para trás e disse alguma coisa.
Quando pressentiu que aqueles homens pretendiam fazer alguma coisa, começou a se virar corpo, mas não teve tempo de concluir o movimento, pois logo a seguir sentiu uma pancada no lado esquerdo da cabeça e só teve tempo de sentir a temperatura quente de seu sangue escorrendo por sua face antes de desabar no chão, já mergulhando em um mundo de total escuridão.
Henrique acordou e percebeu que estava em um quarto totalmente escuro e só soube para que lado ficava a porta porque viu uma réstia de luz rente ao chão. Resolveu andar em direção a ela, mas quando tentou levantar viu que suas mãos estavam atadas e seus pés estavam presos com cordas a uma cama mal cheirosa. Tentou gritar e sua garganta seca parecia se recusar a permitir que emitisse qualquer som. Começou a se debater, porém, a dor que sentiu na cabeça o obrigou a permanecer imóvel.
Uma das qualidades de Henrique foi sempre conseguir se manter calmo nas situações de crise ou em momentos que sentia estar em perigo. Nesses momentos, seu cérebro agia diferente do da maioria das pessoas, pois em vez de se deixar dominar pelo pânico, começava a trabalhar febrilmente analisando a situação. Foi isso que aconteceu e ele não demorou chegar à conclusão de que, naquele momento, não adiantava lutar contra a situação em que se encontrava. Resolveu então ficar quieto e tentar descansar da melhor forma que pudesse. Analisou sua situação e, mesmo com as mãos atadas, conseguiu passar os dedos no ferimento em sua cabeça e notou que havia uma espécie de unguento ali, o que significava que seus algozes queriam que ele permanecesse vivo. O problema era definir qual o motivo de eles estarem desejando isso. Controlando sua pulsação para que seu coração voltasse a bater no ritmo normal, não demorou a dormir novamente. Seu último pensamento foi sobre Bonifácio. Onde estaria o seu amigo gigante e que papel ele desempenhava naquela trama? Essa era a resposta que ele precisava, pois se o Bo estivesse ao lado dos nativos ele estaria completamente fodido.
Já era noite quando Henrique foi acordado com alguém sacudindo seu corpo. Ele soube disso quando olhou para a direção da porta que estava aberta e notou que estava escuro. Dentro do quarto também estava completamente escuro, mas ele sabia que era Nestor quem estava ali ao reconhecer a sua voz que dizia:
– Acorda Henrique. Eu trouxe comida para você.
Ao dizer isso, Nestor empurrava algo frio de encontro ao seu corpo e, ao sentir a temperatura em sua pele, ele levou a mão até ali e segurou um copo. Levou a boca e sentiu um sabor desconhecido. Tinha um gosto ligeiramente amargo e um sabor de uma fruta que ele não conseguia identificar. Novamente sentiu algo sendo empurrado de encontro a sua mão e segurou, percebendo que era um pão.
O medo e o torpor que sentia em virtude do ferimento tiraram o apetite de Henrique, mas ele sabia que, se tivesse alguma chance de sair dali, precisaria de suas forças e isso fez com que forçasse o alimento garganta abaixo enquanto tentava estabelecer um diálogo:
– Que porra é essa Nestor? O que foi que eu fiz para você me tratar assim? Você ficou louco?
– Não se faça de inocente seu safado. Você acha que eu não vi você olhando para a minha esposa?
– Isso é loucura sua. Eu nem conversei com ela!
– Sorte sua. Se tivesse conversado já estaria morto. Aqui os costumes são diferentes e você vai aprender a não desejar a mulher do próximo. Isso é pecado, sabia?
– Deixe disso Nestor. Você está vendo coisas. Não fiz nada disso.
– Fez sim. E o pior é que ela parece ter gostado de seus olhares cheios de desejos. Mas ela já foi devidamente castigada por isso.
Ao saber que aquela linda mulher estava sendo maltratada por causa da loucura de seu amigo, Henrique perdeu as estribeiras. Ele começou a gritar com Nestor dizendo que ele estava louco e em seguida o ofendeu fato que só serviu para que o antigo amigo lhe desfechasse dois socos no rosto, fazendo com que o copo escapasse de sua mão e molhasse toda a sua roupa e o pão rolasse para o chão. Depois de agredi-lo, Nestor se afastou dizendo:
– Ainda não decidi se te mato ou apenas te educo para você aprender. Está difícil, pois os parentes da Cahya ficaram muito ofendidos e estão pedindo a sua cabeça numa bandeja.
Nestor saiu pela porta sem olhar para trás, Fechando a porta e depois se ouviu o barulho de uma corrente sendo presa a um cadeado, Henrique permaneceu ali com suas dores. Dor física pelo ferimento na cabeça ao mesmo tempo em que seus pés estavam dormentes por causa da corda que os prendiam e impedia que seu sangue circulasse normalmente e, para piorar, o sangue escorria de seu nariz e da boca em virtude dos golpes recebidos. E tudo isso não se comparava ao aperto no coração por imaginar que aquela bela mulher estava sendo castigada sem ter feito nada para merecer isso. A partir desse acontecimento o Henrique não conseguiu mais dormir e ficou a noite inteira pensando em uma forma de se livrar daquele pesadelo. Em sua cabeça não cabia a ideia de que o cara que foi seu amigo durante mais de um ano pudesse agir daquela maneira.
Sem conseguir dormir, Henrique notou quando o dia raiou por causa da luz que aparecia no vão inferior da porta, portanto, o que reinava era o silêncio, pois apesar do canto dos pássaros, não se ouvia mais nada. Nenhum ruído que indicasse que havia algum humano por perto. Isso para ele não mudava em nada, pois ele sabia que não adiantava gritar pedindo ajuda e agora sua maior preocupação era com o Bo. Mais uma vez se perguntou onde estaria seu amigo gigante e como ele estaria reagindo ao fato de ele ter desaparecido, pois ele decidira não acreditar que o Bo pudesse fazer parte daquela ação covarde.
Durante todo aquele dia ele foi agredido. Ele não sabia se era a cada hora, ou se era em intervalos de tempos irregulares. Alguém entrava naquele quarto escuro e lhe desferia socos e pontapés. Seu corpo estava totalmente dolorido e ele ainda resistia ao sono, mas quando a noite voltou, ele finalmente foi vencido e, embora durante a noite tenha sido acordado três vezes com agressões, conseguiu intervalos irregulares de um sono agitado.
Outro dia e Henrique estava acreditando estar perdido. Por mais que pensasse, ele não tinha a menor ideia do que fazer para se livrar daquela prisão. A escuridão impedia que ele procurasse por algo que estivesse ao seu alcance para se livrar das cordas que o prendiam e eram essas mesmas cordas que o impediam de sair tateando em busca de algo. A diferença foi que, nesse dia, ele não foi agredido, mas por outro lado, ninguém apareceu para lhe levar algum alimento e o mal estar provocado pela fome era esquecido por causa de algo muito pior que eram as dores em seu corpo e a sensação de sede.
Sem poder se mover daquela cama, ele não conseguira evitar fazer suas necessidades ali mesmo e o fedor de fezes e urina, apesar de não ser a pior de suas aflições, era um incômodo a mais. Se esforçando em permanecer atento, ele percebeu quando o dia findava e a noite avançava com seu véu a cobrir mais uma noite de agonia e desespero. Nesse momento Henrique começou a sentir o desejo de morrer, pois já sabia que apenas a morte o tiraria daquela insana situação.
Enquanto isso, Bo estava no hotel que eles estavam hospedados esperando por Henrique. Ele fora ajudar os amigos de Nestor e nem se deu conta que o serviço era tão simples que poderia facilmente ser feito sem a ajuda dele. Depois disso, voltou até a casa do Nestor que o esperava em frente dela dizendo que o Henrique precisou voltar para o hotel e que estava esperando por ele lá.
Bonifácio não era nada inteligente e certamente, tirando a preocupação por estar sozinho, não conseguia entender o motivo de Henrique ter desaparecido. Ele não tinha a mínima ideia do que faria caso o amigo não aparecesse e foi por isso que ele resolveu voltar até a casa de Nestor para perguntar a ele que, se não pudesse dar informações de onde Henrique tinha ido, pelo menos diria o que ele deveria fazer. Depois de dois dias, ele finalmente se colocou em movimento. Saiu antes do raiar do dia.
Enquanto isso, o Henrique se mantinha acordado. Apesar do cansaço que sentia, com o seu corpo todo moído de pancadas, o desespero falava mais alto. Desta forma, ele percebeu quando a porta de sua prisão se abriu e acreditou que seria submetido à outra seção de tortura. Apesar de ser noite, a claridade da lua permitiu que notasse ser o corpo da pessoa que entrava menor do que as dos homens que sempre vinham lhe agredir ou que fosse o Nestor. Outra diferença foi que, dessa vez, a porta foi fechada depois que a pessoa passou, coisa que seus agressores não se preocupavam em fazer.
Aguardando e já preparado para ser mais uma vez torturado, ele ficou imóvel sem notar que os passos de quem se aproximava era mais leve. Sentiu o contato da mão que, depois de tatear pelo colchão finalmente encontrou o seu braço, porém, em vez de começar as agressões, pode perceber que o contato com sua pele era cálido e suave e que, depois de identificar que parte do seu corpo estava tocando, continuou tateando em direção à sua mão até chegar às cordas que lhe prendiam. Logo em seguida sentiu o contato frio de aço sendo introduzido entre seus pulsos e depois a corda se retesar como se estivesse sendo forçada enquanto um leve ranger de aço esfregando alguma coisa chegou aos seus ouvidos.
Ficou quieto ao perceber que a corda que lhe prendia os pulsos estava sendo cortada. O tempo que precisou para que a corda o trabalho fosse concluído lhe pareceu uma eternidade, porém, a primeira reação que teve quando se sentiu livre foi de esfregar o pulso e depois posicionar as mãos para baixo para que o sangue circulasse livremente em seus dedos que já estavam dormentes. Estava assim quando sentiu novamente o contato do aço, desta vez em sua mão direita que estava aberta.
Percebendo que alguém estava lhe entregando a faca que usou para cortar a corda que o manietava, segurou com cuidado para não se ferir e com a outra mão procurou pelo cabo, conseguindo encontrá-lo na primeira tentativa. Imediatamente, sentou-se na cama e começou a se livrar das amarras que prendiam seu pé naquela cama. Depois de soltar o pé esquerdo e começar a livrar o direito, disse baixinho:
– Quem é você? O que você pretende fazer comigo?
– Psiu. Não falar nada. Ter gente vigiar lá fora.
Não soube o que pensar quando notou que a voz era de uma mulher. Aliou esse fato à visão do corpo delicado que ele vislumbrou por um tempo muito curto quando passou pela porta, concluiu que só podia ser a Cahya e seu coração perdeu um compasso. Mas mesmo assim continuou a cortar a última corda que o mantinha preso àquela cama e quando conseguiu se colocou sentado à borda do colchão e tocou o chão com seus pés, sentindo o formigamento a subir por suas pernas. Tentou ficar em pé e voltou a se sentar como se alguém houvesse lhe empurrado para trás.
A mulher parecia saber o que estava fazendo, pois ao notar os movimentos dele, concluiu que ele estava sentado na cama e, ainda tateando, agachou-se na frente dele e se pôs a lhe massagear os pés. Henrique sentiu um calor quase insuportável queimando sua pele e percebeu que ela devia estar usando algum tipo de pomada. Teve certeza disso quando o formigamento começou a diminuir até desaparecer por completo. Finalmente ele conseguiu se colocar em pé, embora as contusões provocadas pelas constantes agressões fizessem com que seu corpo reagisse à dor quase insuportável.
Entretanto, tudo o que Henrique sabia naquele momento é que tinha que suportar a dor e não vacilou em começar a caminhar em direção à porta. Não deu dois passos quando sentiu sua mão ser puxada enquanto ouvia:
– Não aí. Eu já dizer, Ter homem lá fora.
Sem esperar resposta, a mulher começou a se mover em direção oposta à da porta até chegar a uma parede onde voltou ao exercício de tatear até encontrar o que desejava, pois não demorou em se agachar e a forçar algumas tábuas. Henrique, que sequer sabia que a sua prisão era construída em madeira, agachou-se para ajudá-la em questão de minutos duas das tábuas se desprenderam dando passagem para que eles saíssem pela abertura provocada pela retirada das tábuas.
A voz sussurrada de Cahya soou no seu ouvido como a de um anjo:
– Vai.
Ele não se moveu e perguntou:
– E você?
– Eu não poder ficar aqui. Se ficar, morrer. Cahya depois de você.
Ao ouvir o nome daquela bela mulher o Henrique confirmou o que já sabia. Era ela, o motivo de seu infortúnio, que estava lhe salvando e ele soube naquela hora que não importava mais se ia viver ou morrer, mas ninguém mais tocaria em um fio de cabelo dela. Então ele apenas tocou em suas costas e a empurrou em direção à abertura na parede e ela, talvez por saber do perigo que havia em iniciar uma discussão naquele momento, deitou-se no chão e começou a rastejar para fora.
Assim que o corpo ela desapareceu pelo buraco a sua voz baixinha se fez ouvir:
– Você agora.
Ele a imitou e rastejou para a liberdade. O ar fresco da noite lhe devolveu parte de suas forças e ele se levantou antes dela e a ajudou a se levantar depois. Em seguida, com as mãos dadas, começaram a se afastar dali.
Tudo daria certo se não fosse o cachorro de Cahya. Quando os fugitivos estavam próximos de alcançar uma densa vegetação que os protegeria, o animal veio correndo atrás dela latindo e acordando o homem que estava guardando o local da prisão de Henrique. Ele olhou para o lado que o cachorro corria e viu os dois fugitivos, começando a gritar dando o alarme. Em questão de segundos, o ambiente calmo da noite se encheu de luzes e gritos e logo depois dos dois fugitivos se embrenharem na mata, um grupo de homens enfurecidos saiu ao encalço deles.
A perseguição foi insana. Henrique não estava em condições físicas para fugir e não demorou em que ele perdesse o equilíbrio e caísse. Os gritos dos perseguidores já estavam próximos e ele soube naquela hora que estava perdido. Desesperado, gritou para Cahya que fugisse, porém, não soube se ela não entendeu o que ele dizia ou se não quis fugir, Em vez disso, ela o ajudou a se levantar e o ajudou a se movimentar até um barranco e, sem pensar um segundo sequer, empurrou Henrique e depois se jogou atrás dele.
A altura do barranco não chegava a dois metros e logo a frente havia um riacho de águas cristalinas que corria fazendo barulho em virtude do aclive do terreno provocar uma corredeira. Ao lado direito deles moitas de um capim alto ondulava ao sabor do vento e foi para lá que a garota rebocou Henrique e ambos se deitaram no chão lamacento.
De onde estavam, ouviam seus perseguidores correrem de um lado para outro e o momento mais tenso foi quando um deles chegou até a beira do barranco e ficou examinando o terreno abaixo dele sem conseguir ver os dois corpos ocultos pelo capim. Henrique imaginou que, se eles não fossem avistados, logo os perseguidores desistiriam e iriam procurar em outro lugar.
Mas não foi isso que aconteceu e a situação tendia a se complicar, pois logo a noite daria lugar ao dia e seria impossível que não os vissem.
E foi o que aconteceu. Logo foram descobertos e obrigados a subir o barranco e depois cercados por homens que não escondiam suas reais intenções. Cada um deles tinha em suas mãos um porrete parecido com um bastão de basebol e olhavam para o casal com uma expressão homicida. Henrique sabia que tudo estava perdido, mas mesmo assim, sentiu-se na obrigação de proteger a mulher e, tirando forças do ódio profundo que o invadiu, ficou em pé e a puxou para que ficasse atrás dele, encostada a uma árvore enquanto assumia a posição de quem está pronto para se defender.
A reação dele provocou um acesso de gargalhadas entre seus perseguidores. Eles riam a ponto de dobrar a barriga enquanto Henrique os estudava tentando descobrir qual daqueles homens seria o elo fraco que lhe permitisse dominar alguém e depois usar o corpo de sua presa como escudo.
Não houve tempo para decidir qual deles seria. Com uma expressão agora zombeteira, seus algozes batiam com o bastão na palma da mão livre enquanto avançavam. Mesmo sabendo que sua hora tinha chegado, Henrique se manteve firme. Em sua mente, acabara de se formar o propósito de que, pelo menos um daqueles filhos da puta ele mandaria para o inferno.
Quando a horda estava a três metros dele, aconteceu algo que mudou um pouco a situação. Vindo não se sabe de onde, surgiu Bo. O gigante surgiu de repente entre a vegetação que existia atrás dos perseguidores de Henrique e, sem dizer uma única palavra, alcançou aquele que estava mais atrás do grupo e, em um único gesto, deu-lhe um murro na cabeça e o homem desabou na mesma hora. Antes que o homem o caísse ainda conseguiu arrancar da mão dele o porrete que segurava e, antes que o grupo percebesse o que acontecia, ele já havia desferido dois golpes rápidos e dois outros homens caíram por terra. Só então os cinco restantes se deram conta do ataque que sofriam e se viraram. Quando viram aquele gigante brandindo o porrete na mão, vacilaram o tempo suficiente para que outro deles fosse atacado e caísse sem sentidos.
Henrique não pensou duas vezes. Aproveitando que não estavam mais prestando atenção nele e a despeito das dores que sentia a cada movimento, atirou-se contra aquele que parecia ser o líder da quadrilha o agarrando pelo pescoço enquanto segurava sua mão. O aperto que dava no pescoço do homem logo surtiu o efeito desejado e, sem poder respirar, o cara foi perdendo forças possibilitando que ele se apossasse do bastão que ele segurava. Agora só restavam dois para lutar contra ele e o Bonifácio e isso significava que não havia mais equilíbrios, pois aquele gigante, segurando um porrete na mão, era o suficiente para enfrentar um número maior de oponentes. Os dois homens demonstraram que sabiam disso, pois começaram a recuar andando de costas até se sentirem seguros para lhes virarem as costas e sair correndo dali.
O alívio que invadiu Henrique não demorou muito. Ele não teve sequer tempo de agradecer ao Bo por sua ajuda quando o barulho de vozes e gente correndo através da vegetação foi ouvido. Reforços estavam chegando. Os dois amigos se prepararam para continuar lutando.
Logo a pequena clareira que eles estavam foi invadida por muitos homens. Henrique não se interessou em contar quantos eram, mas se tivesse visto isso saberia que eram nove e, à frente deles, vinha Nestor. Henrique não vacilou, correu de encontro ao homem que desejava vê-lo morto e, pegando-o desprevenido lhe desferiu um golpe na cabeça fazendo com que ele caísse desacordado. Mas antes mesmo que o Nestor caísse no chão o Bo já estava cercado.
Ao ver que as atenções dos novos perseguidores se dirigiam apenas a ele, Bo gritou:
– Henrique foge. Bo segurar homens aqui.
Henrique não estava disposto a obedecer ao gigante, porém, sentiu que a Cahya segurava sua mão enquanto falava:
– Fugir. Você não ter condições de lutar. Você fraco.
Dizendo isso ela começou a puxá-lo e ele, embora não quisesse deixar Bonaparte sozinho, enfrentando todos aqueles homens, olhou então para o lado onde o gigante se defendia dos ataques e viu que três outros homens jaziam no chão, o que o fez acreditar que os restantes não seriam páreo naquela luta. Então resolveu obedecer aos pedidos de Cahya e se deixou ser conduzido para longe dali.
Tinham corrido cerca de trezentos metros quando ouviram o barulho de tiros sendo disparados. A reação de Henrique foi imediata:
– BO! NÃO!
E tentou se livrar da mão de Cahya, o que não conseguiu. Logo notou que não se livraria dela, pois ao começar a caminhar em direção onde haviam sido disparados tiros de arma de fogo, a mulher segurava sua mão e caminhava ao seu lado.
Sabendo que era uma decisão difícil, uma que jamais sonhara em ter que fazer, ele viu que voltar até o local da luta era a certeza de morte. Mas não era a vida dele que o impediu de ceder, mas sim o fato de saber que a mulher também seria sacrificada e ainda teria que agradecer aos céus se fosse morta imediatamente, pois as marcas de agressão que ela tinha em seu rosto demonstrava que ninguém estava agindo com compaixão em relação a ela.
Morrer para Henrique era considerado uma coisa normal naquele momento, pois ele estaria morrendo para defender um amigo que tinha, mais uma vez, arriscado a própria vida para defendê-lo. Só que não se tratava mais só da vida dele. A vida daquela mulher também estava em jogo e seu coração não resistiu ao pensar nessa possibilidade. Com todos esses fatores, ele se rendeu à situação e deixou-se conduzir por ela, pois as lágrimas que lhe escorriam dos olhos impediam que ele visse por onde andavam.
Se algum dos perseguidores de Henrique saiu atrás dele depois de se livrarem de Bo, não conseguiram encontrar nenhuma pista. A partir do som dos tiros, eles conseguiram fugir em direção à cidade sem serem incomodados.
Quando chegaram à cidade, Henrique começou a procurar pela lei. Quando Cahya percebeu isso o impediu fazendo com que ele entendesse que, sendo ele estrangeiro e ela uma mulher, o mais provável é que a polícia os prendesse.
Com as informações da mulher de que nem a polícia os protegeria ali, Henrique acreditou que o único meio de se salvarem era se afastar o máximo possível daquele lugar. Para sua sorte, ele ainda tinha algum dinheiro guardado no hotel onde se hospedara. Procurou então um local seguro para deixar Cahya, optando por um bar movimentado depois de conseguir explicar a ela que um local público como aquele impediria que alguém fizesse alguma coisa contra ela, ele pediu para que, por nenhum motivo desse mundo, ela saísse daquele local antes que ele voltasse para buscá-la. Pediu então para que alguns lanches fossem servidos na mesa que ela ocupava e correu até o hotel onde tomou um banho, vestiu roupas limpas. Depois jogou suas roupas limpas e objetos pessoais em uma mochila e o resto de dinheiro que possuía e também o que pertencia a Bo. Saiu de seu quarto, fechou a conta e voltou para o local onde Cahya o esperava.
Em menos de vinte minutos ele foi encontrá-la no local onde a deixara, olhando para os lanches intocados à sua frente. Pegou um para si um deles e empurrou o outro para ela que começou a mordiscar, logo mudando de atitude e devorando o mesmo com a pressa que a fome que sentia impunha. Henrique também devorava o seu e eles não trocaram nenhuma palavra.
Depois de se alimentarem, ele a levou até o local que servia como estação rodoviária e pegaram um ônibus com destino a Jacarta aonde chegaram ao entardecer daquele dia. |Lá chegando, procurou por um hotel. Ele não pensou muito na hora de pedir um apartamento e optou por um para casal só depois que já estava lá dentro se deu contas que a garota estava junto com ele, porém, ela agia com naturalidade. Quando ele conseguiu fazer com que ela entendesse que deveriam estar ocupando dois apartamentos, ela protestou e, com o seu jeito peculiar de se expressar, fez com que ele entendesse que ficaria muito mais caro e que ele não teria dinheiro para pagar. Ele acabou concordando, mesmo porque, a ideia de ficar com aquela linda mulher em um quarto era muito promissora.
Henrique tomou outro banho, agora mais demorado. Foi o banho mais dolorido de sua vida. Seu corpo apresentava marcas roxas das agressões que sofrera uma dor do lado direito do corto estava insuportável. Ele saiu do quarto enrolado na toalha e se deitou na cama enquanto dizia à Cahya que ela podia tomar um banho. Só nessa hora se deu conta que ela não tinha roupa. Ela foi para o banheiro segurando a toalha e alguma coisa que ele não conseguiu saber o que era e, quando saiu de lá, estava usando uma camisa. A camisa era de abotoar na frente e ele reconheceu como sendo sua. Os dois botões de cima não estavam fechados, o que permitia que ele tivesse uma visão da parte superior de seus seios durinhos e o cumprimento da mesma ia até o meio das coxas, deixando grande parte de suas pernas longas e lindas à mostra. Mesmo com várias marcas roxas provocadas pelo castigo a que foi submetida, ela ainda era muito desejável.
Ficou extasiado quando aquela linda mulher, com os cabelos ainda molhados e cheirosos, se aproximou dele e começou a tocar todo o seu corpo, mas antes que ele se entusiasmasse demais, percebeu que não eram carinhos o que ela fazia, mas sim um exame minucioso em seus ferimentos e não demorou em que ela dissesse:
– Estar quase inteiro. Só costela quebrada.
Dizendo isso, ela pegou a toalha que ele usou, dobrou até que ficasse da largura de uma faixa estreita e, fazendo com que ele erguesse o tronco, envolveu a região torácica dele. Depois ela pegou o cinto e o usou para prender a faixa no local e fizesse uma pressão que o impedisse de fazer movimentos bruscos. Em seguida, procurou por algo sobre o frigobar e depois voltou para perto dele com um comprimido em uma mão e o um remédio na outra e o fez tomar. Só então ela ordenou:
– Você ficar deitado aí. Não mexer.
Depois ela se sentou ao lado da cabeça dele e começou a fazer carinhos nos cabelos e rosto dele. O efeito daqueles carinhos inocentes logo se fez sentir e ele finalmente caiu em um sono profundo.
Quando Henrique acordou, o sol invadia o quarto pela janela aberta. Ele olhou a volta e percebeu que estava sozinho. Examinou a volta e viu a camisa que Cahya tinha usado pendurada no encosto de uma cadeira e não encontrou nenhum outro vestígio dela naquele ambiente. Apreensivo, ficou juntando forças para se levantar, mas cada movimento que fazia seu corpo reclamava com dores intensas. Quando ele resolveu que, a despeito do sofrimento que o menor movimento lhe causava, ele devia levantar e procurar por ela, já imaginando que ela tinha ido embora. Mas sua iniciativa foi abortada quando, no exato momento em que ele ia se levantar, a porta se abriu e ela entrou acompanhada por um funcionário do hotel que empurrava um carrinho. Ela dispensou o funcionário e empurrou o carrinho até o lado da cama, sentou-se no colchão procurando não provocar nenhum movimento brusco e, agindo com uma graça incrível, pegou um prato fundo e o encheu com uma sopa que fumegava em uma vasilha de barro. Retirou da parte de baixo do carrinho uma mesinha dessas de servir as pessoas deitadas, ajeitou o corpo dele se preocupando em colocar todos os travesseiros disponíveis para apoiar suas costas e colocou a mesa na frente dele. Um aroma delicioso invadiu as narinas de Henrique enquanto seu estômago se manifestava emitindo um ronco. Ela sorriu ao ouvir o som e depois colocou a sopa diante dele dizendo:
– Agora comer. Descansar, remédio e comida fazer bem depressa.
Degustar aquela sopa foi uma coisa que o rapaz não precisou de incentivo. O aroma e o sabor se encarregaram disso. Isso sem falar na fome que ele estava. Só quando ele já tinha comido a metade do prato se lembrou dela e perguntou:
– E você?
– O que ter eu?
– Você não vai comer?
– Eu não ter fome. Eu já comer.
Depois que Henrique devorou o segundo prato, ela fez com que ele se deitasse e, retirando um creme da sacola que já estava ali e ele não notara, começou a aplicar o produto em seus ferimentos e a cada toque suave dela suas dores iam desaparecendo. Olhando para ela, Henrique comentou:
– Como você fez para sua roupa estar limpa.
– Eu lavar na noite. Depois secar.
– Quanto tempo eu dormi?
– Você dormir muito. Dia já acabar.
Cahya disse isso olhando para um relógio que tinha na parede. Ele olhou na mesma direção e descobriu que já passava das dezenove horas. Ele calculou que, como tinha dormido de madrugada, provavelmente por volta das três horas da madrugada, tinha dormido mais umas quatorze horas sem nenhuma interrupção. O tempo que passou dormindo, a deliciosa sopa que degustou e o efeito do remédio que a mulher aplicou em seus ferimentos fez com que ele se sentisse mais disposto. A única coisa que o impediu de se levantar e dar um abraço naquela linda mulher foi a dor que sentiu na região das costelas quando tentou isso. Mas ela não percebeu isso, pois estava cuidando de retirar um remédio de um frasco e servir a ele junto com um copo de água. Ele notou que o comprimido não era o mesmo que tomara no dia anterior e perguntou:
– Aonde você achou esse remédio? Esse não é o mesmo que você me deu de madrugada.
– Não ser mesmo. Cahya comprar remédio pra você.
– E como você pagou?
Isso fez com que Cahya se lembrasse de alguma coisa. Ela então se levantou, mexeu na mesma sacola de onde tirara o remédio e retirou de lá alguns papéis, e umas cédulas de dinheiro e algumas moedas e começou a explicar:
– Eu pegar duzentos. Comprar remédio. Sessenta. Comprar comida para mim e pagar para fazer sopa. Tudo cento e dez. Trinta sobrou e está aqui. Perdoe mexer em dinheiro seu.
Aquela foi a frase mais longa que ele ouviu a garota dizer e também a que ouviria durante muito tempo.
Henrique sabia que precisava ajudar aquela bela mulher a falar sua língua, porém, resolveu deixar para depois, pois ele estava gostando do jeito peculiar que ela usava, com frases curtas e sem conseguir usar os verbos no tempo certo. Entretanto, ele se admirava por ela já possuir um vasto vocabulário da língua portuguesa.
Tivesse ele em condições de se movimentar, teria se atirado sobre ela e beijado aqueles lábios carnudos e a obrigaria a olhar em seus olhos. Cahya ainda relutava a encarar seu companheiro de aventuras e quando fazia isso era por um átimo de tempo, logo baixando a vista enquanto seu rosto ficava rubro.