O Bernardo deu partida no carro, e seguimos em silêncio. Evitei olhar diretamente para ele, ainda perdido em meio ao turbilhão de emoções que tinha tomado conta de mim. Eu estava triste, confuso, e não sabia como administrar tudo aquilo. Bernardo, sensível à situação, respeitou meu silêncio. Ele ligou o som baixinho, deixando uma música suave preencher o espaço vazio. O som das rodas na estrada de terra e a paisagem do campo passando pela janela começaram a me acalmar.
Enquanto observava as colinas, as árvores e o céu mudando de cor conforme a tarde avançava, meus pensamentos foram se aquietando. Aos poucos, as palavras do Silas e os sentimentos confusos que surgiram dentro de mim começaram a perder força. Olhei para o Bernardo, que dirigia concentrado, com o olhar atento à estrada. Nesse momento, ele também me olhou, e nossos olhares se cruzaram.
Meu coração aqueceu. Não consegui mais segurar tudo dentro de mim. Pedi, com voz suave:
— Para o carro...
Ele imediatamente atendeu, sem hesitar. O carro desacelerou até parar ao lado da estrada. Ficamos em silêncio por alguns segundos, apenas nos olhando, sentindo o que estava por vir. Me aproximei dele e o abracei, mas era um daqueles abraços complicados dentro de um carro, em que o espaço apertado não permite transmitir toda a intensidade do que a gente sente.
Mesmo assim, ficamos ali, abraçados, com ele alisando minhas costas. A sensação de conforto que eu tanto precisava começou a tomar conta de mim. O caos no meu peito foi aos poucos se transformando em tranquilidade. Quando me afastei um pouco para olhar em seus olhos, não precisei dizer nada. Senti seu afeto, sua compreensão.
Sem pensar muito, puxei ele para um beijo. Foi um beijo calmo, doce e cheio de carinho. Não havia pressa, nem a urgência dos momentos anteriores. Era apenas nós dois, naquele instante, nos entendendo sem palavras, compartilhando algo que ia além de qualquer confusão interna.
Paramos o beijo, e Bernardo me olhou nos olhos com uma expressão de ternura e preocupação.
— Está melhor? — perguntou ele, com um sorriso suave.
Assenti, ainda sentindo um pouco do peso das emoções, mas mais tranquilo. Ele manteve aquele olhar curioso, como se quisesse perguntar mais, mas estivesse escolhendo as palavras. Percebendo isso, resolvi me adiantar.
— Acho que a gente precisa conversar — comecei, respirando fundo. — Você precisa conhecer um pouco da minha história.
Bernardo ficou em silêncio, atento, dando-me espaço para continuar. Meu coração ainda estava apertado, mas sabia que precisava dividir aquilo com ele.
— Minha mãe engravidou de mim, e o meu pai... — fiz uma pausa, lembrando das palavras que me marcaram tanto. — Ele não me quis. Pediu para ela sumir. Foi duro, cruel. No final, minha mãe foi expulsa de casa também. Acabou indo morar no interior de Minas, onde nasci e me criei na fazenda antiga, onde eu trabalhava. Quando o dono da fazenda morreu, minha mãe decidiu voltar para cá, para o Alto, e... aqui estamos.
Bernardo permanecia em silêncio, absorvendo tudo, o olhar sério e preocupado. Senti a necessidade de continuar, de abrir tudo que estava trancado dentro de mim.
— Minha tia conseguiu o emprego com o seu pai, e foi assim que tudo começou a se encaixar... mas é uma história longa — tentei resumir. — O que importa é que, no meio disso tudo, nós somos primos, Bernardo. Eu sou filho do Silas. Ele é o homem que abandonou minha mãe e eu antes mesmo de eu nascer. Eu só descobri tudo há pouco tempo, e o Alysson... bem, ele me contou que o Silas vinha para o aniversário e hoje ele tentou se reaproximar, e acabamos ficando sozinhos, conversando.
Senti meu peito apertar de novo ao lembrar da conversa com Silas, mas continuei, tentando manter a voz estável.
— Eu acabei falando muita coisa para ele, coisas que estavam entaladas. Fui duro nas palavras, e isso me deixou mal. Quando voltei para a fazenda, o Alysson me abraçou, e eu simplesmente desabei. Chorei tudo que eu estava segurando... desabafei tudo o que vinha sentindo desde quando descobri essa história.
Fiquei em silêncio por um momento, processando tudo o que tinha dito. Bernardo continuava me olhando, sem dizer nada, mas dava para ver que ele estava refletindo sobre cada palavra.
Bernardo não pareceu surpreso ou preocupado com tudo o que eu havia dito. Na verdade, sua expressão era serena, acolhedora. Ele me puxou para um abraço e, sem hesitar, me deu um selinho antes de começar a falar.
— Não se preocupa, Rafinha — começou ele, com a voz calma. — Essa dor que você está sentindo... só você entende. Eu nem consigo imaginar o quão difícil deve estar sendo processar tudo isso. Mas eu te peço uma coisa: tenha calma. Não estou aqui para defender meu tio, longe disso. Mas acho que você está olhando toda essa história por um único ângulo, o ângulo da rejeição, do abandono. E, claro, isso pesa muito para você... como não pesaria? Afinal, foi você quem passou por tudo isso.
Ele fez uma pausa, como se estivesse escolhendo as palavras com cuidado, respeitando meus sentimentos.
— Mas o passado... bom, o passado fica no passado, Rafael. Eu sei que o que o tio Silas fez foi errado, pesado, e não há como justificar o que ele te fez. Foi injusto. Só que, se você olhar de um outro ângulo... quando ele soube da sua existência através do Alysson, ele poderia ter escolhido o caminho mais fácil: simplesmente te ignorar de novo. Poderia ter decidido que não queria te conhecer, poderia te abandonar pela segunda vez sem olhar para trás. Mas ele não fez isso.
Eu olhei para Bernardo, tentando absorver o que ele estava dizendo. A lógica dele fazia sentido, mas meu coração ainda estava confuso.
— Ele está tentando se redimir — continuou Bernardo, com um tom mais suave. — Talvez ele queira uma nova chance. E eu sei, isso é complicado, muito complicado. Mas, no fim das contas, essa é uma decisão que depende de você. Só você pode decidir se quer dar essa chance a ele. Como eu te disse, esse é um sentimento que só você pode resolver.
Eu respirei fundo, sentindo o peso de cada palavra. Bernardo não estava tentando impor nada, apenas me mostrando uma perspectiva que eu talvez não estivesse pronto para enxergar. Mais uma vez, ele me acolhia, sem pressão, mas com o coração aberto, e isso aquecia algo dentro de mim, mesmo em meio a tanto caos, e ele seguiu falando:
— Talvez, do mesmo jeito que foi difícil para você, tenha sido complicado para o meu tio também — continuou Bernardo, com um tom mais sério. — Aposto que ele deve ter pensado em você e na sua mãe muitas vezes. Não estou dizendo que isso o absolve de nada, mas pra ele também não deve ter sido fácil.
Ele fez aspas com os dedos ao dizer "fácil", dando ênfase à ironia.
— Afinal, foi cômodo para ele, de certa forma, se livrar daquela responsabilidade. Mas a dor, a culpa... essas coisas devem ter permanecido com ele. Hoje, ouvindo tudo isso que você está me contando, faz sentido pra mim. O tio Silas sempre foi sério, meio fechado, nunca dava muitos sorrisos. Ele tinha um jeito amargurado com a vida, como se os pensamentos dele o levassem para longe o tempo todo. Talvez ele estivesse sempre se perguntando sobre você, sobre as escolhas que fez.
Eu absorvia as palavras de Bernardo, que continuava com o olhar fixo na estrada.
— Como te disse antes, não estou defendendo meu tio — ele prosseguiu. — Estou tentando ser imparcial. É como se isso fosse um julgamento. Tem a acusação e a defesa, certo? E no fim, um juiz analisa as provas, os depoimentos, e decide quem é culpado ou inocente. Mas, nesse caso, o juiz é você, Rafael. Só você pode decidir. Só estou sugerindo que talvez seja interessante ouvir a história do lado dele também.
Ele fez uma pausa, me olhando com empatia, antes de continuar:
— Acredito que a conversa de vocês deve ter sido muito dura. As emoções estavam à flor da pele, não tem como negar. Eu, particularmente, gosto de esperar um pouco antes de tomar qualquer decisão importante. Lembra do que aconteceu entre nós... quando você me traiu com o Luís Ricardo?
A menção ao acontecido entre nós me pegou desprevenido. Senti um frio na espinha, mas ao mesmo tempo compreendi aonde Bernardo queria chegar. Ele estava me lembrando de como a calma e a reflexão ajudaram a resolver aquela crise entre nós, quando eu achei que tudo estava perdido.
— Eu esperei, não tomei nenhuma decisão precipitada — disse ele, com um sorriso suave. — E olha onde estamos agora. Talvez, se você der um tempo para o seu coração acalmar, você consiga enxergar tudo de forma mais clara.
O silêncio que se seguiu foi carregado de significados. Bernardo havia sido cuidadoso em cada palavra, tentando me guiar por um caminho de reflexão e empatia, sem pressionar ou julgar. Eu o admirava tanto por isso. Ele não só entendia a minha dor, mas também estava disposto a me ajudar a enfrentar esse labirinto emocional da forma mais sábia possível.
Por um lado, Bernardo estava certo. Eu precisava admitir que o caminho mais fácil era me afundar na minha dor, me deixar levar por ela. Mas, como ele havia dito, essa dor era minha, algo que só eu poderia administrar. A conversa dele me fez olhar as coisas de um outro ângulo, me fez questionar se eu estava vendo a situação de forma justa. Mas, sinceramente, eu ainda não estava pronto para lidar com tudo aquilo. Pelo menos, não naquele final de semana.
Eu amava o Bernardo. Sim, eu disse isso claramente para mim mesmo: eu o amava. Ele me fazia bem, foi amor à primeira vista, e foi a melhor coisa que me aconteceu em tempos. Depois das palavras dele, tive ainda mais certeza disso. Finalmente, senti que era o meu momento de falar:
— Obrigado pelas palavras. Saiba que eu gosto muito de você, Bernardo, e concordo com tudo o que você disse. E bom, sobre o Luís Ricardo... queria esclarecer algumas coisas, mas acredito que agora não seja o melhor momento...
Antes que eu pudesse terminar, Bernardo me interrompeu gentilmente:
— Não precisa esclarecer nada. Eu tive tempo pra pensar, e na sua mensagem você foi claro: a gente não tinha um compromisso oficial, certo? — Ele fez uma pausa, respirando fundo. — Mas entenda, naquele dia, mesmo sem um "rótulo", estávamos juntos. Você era meu, e eu era seu. Pelo menos, era assim que eu sentia. Mas, como eu disse, não guardo raiva e estou disposto a dar uma segunda chance para nós. Gosto muito de você, Rafael, de verdade. Não sei até onde isso vai dar, principalmente agora que... — Ele hesitou por um momento, procurando as palavras certas. — Agora que descobrimos que somos primos.
Sorri levemente, tentando aliviar a tensão:
— Por mim, isso não é um problema. Acho que seria pior se fôssemos irmãos, né?
Bernardo riu, concordando.
— Também penso assim. Nada muda pra mim.
Ele me puxou para outro beijo, calmo e reconfortante, seguido por um abraço apertado. Quando nossos lábios se separaram, ele sussurrou:
— Fica bem, ok?
Seguimos o resto do caminho para minha casa conversando sobre coisas leves, tentando aliviar o peso de tudo o que havíamos discutido antes. Ao chegarmos, ele me abraçou mais uma vez e perguntou:
— Você vai pra casa mais tarde?
Hesitei. A ideia de encontrar Silas de novo me deixava tenso, e minha primeira vontade era evitar aquela situação a todo custo. Mas era como diz aquela música: fugir agora não resolve nada. E tinha o aniversário do Alysson. Ele era importante para mim de várias formas, e eu sabia o quanto ele fazia questão da minha presença. Suspirei, resolvendo a dúvida dentro de mim, e respondi com firmeza:
— Bom, eu não ia, sabe? Mas você acalmou meu coração. E o Alysson é importante pra mim... sei que ele quer que eu esteja lá.
Bernardo sorriu, visivelmente aliviado, e me puxou para um último beijo antes de ir embora.
— Fico feliz em saber que te faço bem — ele disse suavemente. — E saiba que eu sinto o mesmo por você.
Enquanto ele se afastava, senti que, por mais complicada que a situação estivesse, havia encontrado um porto seguro ao lado de Bernardo. Eu sabia que, independentemente do que viesse a seguir, ele estaria ali, pronto para enfrentar tudo comigo.
Trocamos um beijo rápido e suave, e então Bernardo me perguntou:
— Bom, acabei vindo no carro que você usa. Como você quer fazer? Quer que eu deixe o carro com você e volte de mototáxi, ou prefere que eu venha te buscar mais tarde?
Cocei a cabeça, percebendo que não havia pensado nisso.
— Sabe que nem sei? Na real, acho que vou entrar, tomar um banho rápido e já volto com você. O que acha?
— Você quem manda — ele respondeu com um sorriso.
Entramos em casa e minha mãe estava assistindo TV. Quando viu Bernardo, o cumprimentou com um aceno de cabeça. Decidi que não era o momento certo para contar a ela sobre a conversa com Silas. Não queria reviver aqueles sentimentos, não ali, não agora. Então, expliquei rapidamente:
— Vou me arrumar rapidinho pra voltar pra fazenda. Vou ficar por lá para o aniversário do Alysson e, provavelmente, vou dormir por lá também.
Ela me olhou com uma expressão de leve preocupação e perguntou:
— Está tudo bem, filho?
Sorri para tranquilizá-la.
— Sim, mãe. Amanhã a gente conversa com calma.
Ela sorriu de volta, satisfeita com a resposta, e eu segui para o quarto. Fui tomar um banho enquanto Bernardo ficou na sala, conversando com minha mãe. Enquanto a água escorria pelo meu corpo, me peguei pensando em como tudo parecia estar se encaixando, mesmo em meio a tanta confusão. Bernardo estava ao meu lado, me apoiando, e isso já fazia uma enorme diferença.
Coloquei uma das roupas que Bernardo havia comprado comigo, e, ao me olhar no espelho, vi que estava realmente bem. Meu semblante parecia mais leve, a expressão no rosto mais tranquila. Minha mente, de alguma forma, já estava mais em paz. Quando apareci na sala, minha mãe me olhou de cima a baixo e não perdeu a oportunidade de me elogiar.
— Nossa, filho, você está um gato!
Sorri, um pouco sem graça, e retruquei:
— Elogio de mãe não conta, né?
Ela riu e eu acrescentei, apontando para Bernardo:
— Foi o Bernardo que me ajudou a escolher essas roupas quando estávamos na capital.
Minha mãe olhou para Bernardo, com um sorriso de aprovação.
— Ah, então o Bernardo tem um ótimo gosto — disse ela.
Rimos juntos, trocamos algumas conversas leves e despretensiosas sobre coisas do dia a dia, bobeirinhas que ajudaram a aliviar o clima. Depois de alguns minutos, seguimos em direção à fazenda novamente. Eu já me sentia um pouco mais preparado para encarar o que viesse pela frente, sabendo que, aos poucos, estava colocando as coisas no lugar.
Durante o caminho, o silêncio confortável entre nós foi quebrado por Bernardo, que me olhou de canto e disse, com aquele sorriso travesso:
— Sabe, você está um gato mesmo… Mas o que eu quero está por debaixo dessas roupas.
Demorou um segundo para eu perceber a malícia nas palavras dele. Olhei para Bernardo e soltei uma risada baixa, provocando de volta:
— Dizem que o sexo de reconciliação é o melhor, né?
Ele riu, com aquele brilho nos olhos, enquanto continuava dirigindo. O clima entre nós ficou mais leve, mas também carregado de uma tensão boa, daquela que promete uma noite cheia de cumplicidade e momentos intensos e agora estávamos prontos para viver o que viesse, juntos.