Uma das mais famosas frases de Shakespeare é de Hamlet que, se dirigindo a Horácio, fala: “Há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe sua vã filosofia”. Algumas pessoas acreditam em vida fora da terra, outras, acreditam em reencarnação, mas ninguém sabe ao certo o que realmente existe ou não.
A luz suave da cabine lançava sombras difusas nos rostos de Pedro e Luiz, enquanto a conversa entre eles parecia se aprofundar, ganhando camadas que iam além do que os olhos podiam ver. O avião seguia seu curso firme sobre as nuvens, mas ali, na classe executiva, o tempo parecia ter desacelerado.
Luiz ainda tinha uma expressão de leve desconforto. As perguntas de Pedro, apesar de diretas, tocavam em algo que ele não sabia exatamente como lidar. Ele era o tipo de pessoa que evitava pensar em fragilidades, preferindo se apoiar em lógicas e probabilidades. No entanto, Pedro parecia disposto a abrir caminho por entre as defesas de Luiz.
— Você tem mesmo essa visão? — questionou Pedro, mantendo o olhar firme, quase desafiador. — Que a vida é previsível, uma fórmula que a gente só precisa resolver?
Luiz deu de ombros, olhando pela pequena janela do avião como se buscasse algo para se apoiar.
— Acho que sim. Se entendermos as variáveis certas, dá pra prever boa parte do que acontece. — Ele virou o rosto de volta para Pedro, tentando parecer convincente. — Não é medo. É só... controle.
Pedro franziu a testa, percebendo que Luiz estava desconfortável, mas não insistiu de imediato. Em vez disso, respirou fundo e deixou escapar um pequeno sorriso.
— Controle é uma palavra interessante. — Pedro inclinou-se um pouco, apoiando o braço na poltrona. — Mas me diz, Luiz, o que você faz quando a vida te surpreende? Quando algo que você não pode controlar acontece?
Luiz hesitou. As palavras de Pedro pareciam tocar em um ponto vulnerável, mas ele preferiu desviar.
— E você, Pedro? Do que tem medo?
Pedro, que até então mantinha um tom descontraído, mudou de expressão. O sorriso que antes dominava seu rosto foi substituído por algo mais sério, quase melancólico. Ele segurou o olhar de Luiz por alguns segundos antes de responder.
— Tenho medo de ficar sozinho.
A frase pairou no ar, como se fosse um peso que ambos precisavam carregar. Luiz, que até então estava mais retraído, sentiu a intensidade das palavras de Pedro. Ele se remexeu na poltrona, tentando encontrar algo para dizer, mas o silêncio de Pedro parecia contar uma história que ele ainda não conhecia.
— Por que você tem esse medo? — Luiz perguntou, baixando o tom de voz, agora mais suave.
Pedro desviou o olhar, olhando para a fileira de poltronas à frente como se procurasse as palavras certas.
— Eu morava só com minha mãe — começou ele, a voz levemente trêmula. — Ela era tudo pra mim. Depois que meu pai foi embora, ela se virou sozinha pra me criar. Sempre foi a gente contra o mundo.
Luiz não disse nada, apenas inclinou-se levemente em direção a Pedro, indicando que estava ouvindo.
— Ela lutou contra um câncer por anos — continuou Pedro, a voz ficando mais baixa. — E, no fim, eu não pude fazer nada pra ajudá-la. Quando ela se foi... — Ele parou, engolindo em seco. — Quando ela se foi, o silêncio em casa parecia insuportável. Desde então, eu tenho medo de que isso aconteça de novo. Que eu acabe sozinho de novo.
Luiz sentiu um aperto no peito. Ele queria dizer algo, mas as palavras pareciam presas na garganta. Em vez disso, estendeu a mão e a pousou sobre a de Pedro, em um gesto simples, mas carregado de significado.
— Pedro, sinto muito. Eu não fazia ideia...
Pedro sorriu levemente, mas era um sorriso triste, quase resignado.
— Tá tudo bem. Já faz tempo, mas... às vezes a memória ainda dói.
O silêncio que se seguiu foi interrompido pelo anúncio da tripulação sobre a aproximação de uma área de turbulência leve. Pedro pareceu aproveitar o momento para mudar de assunto, desviando o olhar para a janela.
— E você, Luiz? Você nunca parece confortável quando falo dessas coisas. O que te incomoda tanto?
Luiz abriu a boca para responder, mas fechou-a novamente. Ele parecia lutar consigo mesmo, como se houvesse algo que ele não estava pronto para compartilhar.
— É complicado, Pedro. Tem coisas que... que a gente prefere guardar pra si.
Pedro franziu a testa, mas não pressionou. Em vez disso, ele se levantou, claramente precisando de um momento para si mesmo.
— Vou ao banheiro. Volto já.
Luiz observou enquanto Pedro se afastava, a postura rígida e os passos ligeiramente apressados. Ele sabia que havia algo mais profundo ali, algo que Pedro ainda não estava pronto para compartilhar totalmente.
Os minutos passaram e Pedro não voltou. Luiz olhou para o relógio, inquieto. Algo dentro dele o empurrou para se levantar e ir atrás do amigo. Quando chegou próximo ao banheiro, viu Pedro saindo com os olhos ligeiramente vermelhos, como se tivesse lutado contra as lágrimas.
— Pedro... — Luiz começou, mas antes que pudesse dizer mais alguma coisa, Pedro o encarou.
Houve um momento de silêncio entre eles, como se todo o barulho do avião tivesse desaparecido. Pedro deu um passo à frente, e Luiz, instintivamente, fez o mesmo.
E então aconteceu.
O primeiro beijo foi suave, hesitante no início, mas logo cheio de emoção e intensidade. Não havia palavras suficientes para descrever o que aquele gesto significava para ambos. Era como se todas as barreiras entre eles tivessem sido quebradas em um instante, deixando apenas a conexão pura e verdadeira.
Quando finalmente se afastaram, Pedro olhou nos olhos de Luiz e deixou escapar um pequeno sorriso.
— Acho que isso é o que Shakespeare chamaria de algo entre o céu e a terra.
Luiz, ainda surpreso, sorriu de volta, sentindo o coração disparar.
— Talvez ele estivesse certo, afinal.
Pedro, ainda com as mãos levemente trêmulas, segurou o pulso de Luiz, puxando-o delicadamente em direção à cabine apertada do banheiro. Os dois mal se olharam enquanto cruzavam a curta distância até a porta, mas a eletricidade no ar entre eles era inegável, como se o mundo ao redor tivesse desaparecido completamente.
Assim que entraram, Pedro fechou a porta rapidamente e girou o pequeno trinco. O espaço era minúsculo, mal cabendo ambos ali dentro, mas parecia que o universo havia se encolhido apenas para eles. Pedro encostou Luiz contra a parede fria, e antes que qualquer palavra fosse dita, seus lábios voltaram a se encontrar.
O beijo começou lento, explorador, mas em segundos ganhou intensidade, como se ambos estivessem consumidos pela necessidade de sentir um ao outro. Pedro segurou o rosto de Luiz com as mãos, os dedos deslizando para seus cabelos, enquanto Luiz, hesitante no início, relaxava aos poucos, permitindo-se ceder à paixão que crescia dentro dele.
As mãos de Pedro desceram para os ombros de Luiz, e ele o puxou para mais perto, ignorando o aperto desconfortável do ambiente. Era feroz, urgente, como se o tempo ali dentro fosse limitado e eles precisassem aproveitar cada segundo. Seus corpos colidiam de forma desajeitada contra as paredes, mas nenhum dos dois parecia se importar.
Luiz tentou afastar o rosto por um momento, talvez para recuperar o fôlego, mas Pedro não deixou. Seus olhos se encontraram por um instante, e havia algo de vulnerável e intenso no olhar de Pedro, como se ele estivesse colocando tudo de si naquele momento.
— Não foge de mim agora — murmurou Pedro, a voz baixa, quase rouca.
Luiz, incapaz de responder com palavras, apenas o puxou de volta, dessa vez deixando seus próprios instintos tomarem conta. Seus braços envolveram o corpo de Pedro, trazendo-o ainda mais para perto, como se quisesse gravar aquele momento em sua memória para sempre.
O calor entre eles era palpável, mesmo no espaço gelado e impessoal do banheiro do avião. O som abafado do motor ao fundo parecia uma trilha sonora distante para a tempestade que se desenrolava ali dentro. Pedro pressionou a testa contra a de Luiz por um breve segundo, ambos respirando com dificuldade, os lábios ainda próximos, como se não quisessem se separar nem por um milímetro.
Mas então, o inevitável aconteceu.
Uma batida firme na porta os fez congelar instantaneamente.
— Senhores, tudo bem aí dentro? — Era a voz da aeromoça, calma, mas com um tom que indicava que ela sabia exatamente o que estava acontecendo.
Pedro e Luiz se separaram às pressas, suas respirações ofegantes ecoando no pequeno espaço. Luiz olhou para Pedro, os olhos arregalados em choque e vergonha. Pedro, por sua vez, soltou uma risada curta, mais nervosa do que divertida.
— Acho que a gente foi descoberto.
— Isso não é engraçado, Pedro! — Luiz sussurrou, embora sua expressão traísse o embaraço e a adrenalina que ainda o consumiam.
Pedro abriu a porta devagar, revelando a aeromoça do lado de fora com uma sobrancelha levantada e um leve sorriso no canto dos lábios.
— Espero que tenham terminado o que estavam fazendo — disse ela, com profissionalismo, mas também uma pitada de humor.
Luiz passou por ela com o rosto corado, evitando olhar diretamente para qualquer pessoa no corredor. Pedro saiu logo atrás, com um sorriso travesso no rosto, como se não estivesse nem um pouco arrependido.
Quando finalmente voltaram para os assentos, Luiz afundou na poltrona, cruzando os braços como se quisesse desaparecer.
— Isso foi... um desastre.
Pedro, ainda tentando conter o riso, inclinou-se em direção a ele.
— Não foi um desastre. Foi... espontâneo. E, pra ser honesto, eu gostei.
Luiz virou o rosto para ele, lançando um olhar que misturava incredulidade e uma ponta de diversão.
— Você é impossível.
— E você adora isso. — Pedro piscou para ele, apoiando o queixo na mão como se fosse o homem mais relaxado do mundo.
Apesar do embaraço inicial, Luiz sentiu um sorriso tímido se formar em seus lábios. Mesmo em meio à vergonha e ao constrangimento, havia algo reconfortante na leveza de Pedro, algo que fazia tudo parecer menos terrível e mais... certo.
Pedro ainda exibia um sorriso de canto enquanto olhava para Luiz, que estava visivelmente constrangido, mas começava a relaxar novamente. O clima entre eles, antes tão carregado de tensão e desejo, agora se tornava mais leve, como uma calmaria que vem depois de uma tempestade.
— Então, o que achou do nosso... pequeno incidente no banheiro? — Pedro perguntou, o tom brincalhão enquanto se inclinava na poltrona.
Luiz lançou um olhar de reprovação, mas o canto de sua boca ameaçou se curvar em um sorriso.
— Achei que foi imprudente, idiota e... absolutamente algo que você faria.
— E algo que você gostou — retrucou Pedro, com aquele mesmo sorriso travesso que fazia Luiz desviar o olhar.
Aos poucos, eles retomaram conversas despretensiosas. Discutiram o cardápio do voo, os fones de ouvido da classe executiva e até mesmo os passageiros ao redor, rindo baixinho de algumas peculiaridades que notavam. Pedro parecia sempre encontrar algo para comentar, uma observação sagaz ou engraçada, enquanto Luiz se limitava a responder com comentários curtos ou risadas contidas.
O ambiente parecia estar mais aconchegante para eles. O som abafado do motor do avião criava um fundo quase meditativo, enquanto a luz da cabine estava diminuída, preparando os passageiros para a chegada da noite. As janelas, embora fechadas, sugeriam que o sol já começava a se esconder no horizonte.
Pedro, no entanto, percebeu que Luiz estava mais silencioso, os olhos começando a piscar lentamente, como se o cansaço finalmente estivesse vencendo. Ele observou o rosto de Luiz por alguns instantes, notando os traços relaxados, o ritmo mais lento de sua respiração.
— Está pegando no sono? — perguntou Pedro suavemente, sua voz quase um sussurro.
— Talvez... — Luiz respondeu, sem abrir os olhos. — É que você não cala a boca.
Pedro riu baixo, inclinando-se ligeiramente na direção dele.
— Tudo bem, eu paro. Mas só porque você precisa descansar pra estar bonito quando pousarmos.
Luiz soltou uma risada breve, mas não respondeu. Seus dedos, que estavam repousados no apoio de braço entre eles, tocaram os de Pedro de forma involuntária. Pedro, por impulso, deixou sua mão escorregar para segurar a de Luiz. Foi um gesto tímido, quase inocente, mas que carregava uma profundidade que nenhum dos dois se atreveu a comentar.
Pedro se acomodou melhor em seu assento, ainda segurando a mão de Luiz. Ele fechou os olhos, tentando aproveitar aquele momento de paz, mas sua mente, como sempre, estava inquieta.
Enquanto o avião avançava pelo céu, Pedro começou a se perguntar o que aconteceria quando eles aterrissassem. O que seria deles dois fora daquele avião? Ele sabia que aquela conexão não era algo que surgisse todos os dias, mas a vida tinha o hábito cruel de ser prática, de seguir em frente sem se importar com os momentos únicos que ela proporcionava.
“Será que isso termina aqui?”, ele pensou, apertando levemente a mão de Luiz, como se quisesse agarrar a possibilidade de algo mais. Pedro sabia que não queria deixar aquele momento acabar, mas também sabia que o mundo fora dali era um lugar muito mais complicado.
Ele abriu os olhos e olhou para Luiz, que já parecia adormecido, a cabeça levemente inclinada para o lado. Um sorriso suave se formou nos lábios de Pedro.
“Talvez o amor seja exatamente isso”, pensou ele. “Não uma certeza, mas uma aposta que você faz, mesmo sem garantia de que vai dar certo.”
Pedro fechou os olhos novamente, o som constante do avião embalando seus pensamentos. Os dois, de mãos dadas, pareciam imunes ao passar do tempo, aproveitando as últimas duas horas de voo como se o mundo lá fora pudesse esperar.