Narrado por: Giovanna
Tudo começou naquele dia. Naquele maldito dia.
A discussão com meu pai ainda ecoava na minha cabeça, como uma ferida que se recusava a cicatrizar.
— Acabou mesada. Acabou o dinheiro. Se querem bancar suas drogas e festas, façam o próprio dinheiro. - meu pai gritava enquanto batia na mesa
— Eu vou te mostrar que não preciso do seu dinheiro para nada - eu disse
Aquelas palavras eocavam em minha cabeça, naquela noite, eu precisava de liberdade. Precisava me sentir viva, e foi assim que fui parar naquela festa.
Meus pés me levaram para o centro da cidade, onde as luzes piscantes da boate Nebulosa prometiam uma noite de esquecimento. O som ensurdecedor das batidas de música eletrônica vibrava no meu peito, e eu me joguei no caos.
Foi ali que a vi pela primeira vez.
Medusa.
Ela era o tipo de mulher que fazia o ambiente inteiro se curvar à sua presença. Alta, com curvas acentuadas, pele morena reluzente sob as luzes de neon. Vestia um vestido justo de couro preto, que brilhava como petróleo sob os flashes coloridos da boate. Seus cabelos, longos e cacheados, caíam sobre os ombros como uma cascata selvagem. Os olhos delineados em preto profundo eram tão penetrantes que pareciam despir sua alma com um único olhar.
Ela me observava do bar, um sorriso enigmático curvando os lábios vermelhos.
Eu não sabia na época, mas aquele encontro mudaria minha vida.
Ela se aproximou lentamente, cada passo meticulosamente calculado.
— Primeira vez aqui? — perguntou, a voz baixa, quase como um sussurro.
Assenti, sentindo o coração acelerar.
— Meu nome é Medusa — continuou, estendendo a mão com unhas longas e pintadas de preto. — E o seu?
— Giovanna.
— Prazer, Giovanna. — Ela inclinou a cabeça, analisando-me como um predador que acabara de encontrar sua presa. — Você tem potencial.
Eu franzi o cenho.
— Potencial pra quê?
Ela sorriu de novo, um sorriso que prometia mundos desconhecidos.
— Pra ganhar dinheiro. Muito dinheiro.
Medusa me explicou que trabalhava naquela boate, mas que havia maneiras alternativas de fazer uma grana rápida. No início, parecia algo inocente.
— Não se preocupe — disse ela, com um tom tranquilizador. — É só servir mesas, conversar com os clientes. Nada demais.
Foi assim que comecei. Dois dias, para ser exata. Eu servia bebidas, sorria para os frequentadores, fingia que aquele ambiente tóxico era um palco onde eu desempenhava meu papel.
Mas, logo, Medusa fez uma nova proposta.
— Giovanna, você é inteligente. Por que perder tanto tempo servindo mesas, quando pode ganhar o triplo em uma única noite?
Olhei para ela, confusa.
— Do que você tá falando?
— Programas, querida. Você é linda, jovem. Os clientes pagariam uma fortuna por algumas horas com você.
Minha primeira reação foi recusar. Eu queria dinheiro, mas não desse jeito. Ainda assim, naquela noite, algo em mim cedeu. Eu pensei: É só uma vez.
Meu primeiro cliente era um homem de meia-idade, educado e gentil, o que tornou a experiência menos desconfortável do que eu imaginava. Quando ele colocou aquele maço de dinheiro em minhas mãos, senti uma adrenalina inexplicável.
A sensação de poder.
Aceitei outro cliente. E outro. Cada vez era mais fácil.
Mas foi aí que as drogas entraram na jogada.
Uma das garotas da boate, Letícia, me ofereceu cocaína pela primeira vez.
— Vai te ajudar a relaxar — garantiu, enquanto enrolava uma nota de cinquenta e cheirava uma fileira branca sobre o balcão.
Eu hesitei, mas a curiosidade e o cansaço venceram. O efeito foi instantâneo. Tudo parecia mais leve, mais distante. Eu me sentia invencível.
Agora, aqui estava eu, equilibrando dois mundos: o de uma garota comum e o de alguém presa em um ciclo de dinheiro fácil e escapismo químico.
Mas eu ainda acreditava que tinha tudo sob controle.
No início, era só pelo dinheiro. Cada nota que passava pelas minhas mãos era uma pequena vitória, uma prova de que eu não precisava do meu pai para nada. Eu era independente, forte. Gostava de olhar para o maço de dinheiro no final da noite e pensar: Isso é meu. Eu consegui sozinha.
Mas o dinheiro não era suficiente.
A verdade é que o dinheiro não preenchia o vazio que crescia dentro de mim. Não apagava a sensação de que algo estava fora do lugar. Foi aí que as drogas se tornaram mais do que um passatempo, mais do que uma fuga momentânea. Elas passaram a ser uma necessidade.
No começo, eu gostava do controle que a cocaína me dava. Com ela, eu me sentia invencível. As noites passavam voando, e o mundo parecia mais fácil de encarar. Era como se eu pudesse carregar o peso do universo nas costas sem me quebrar.
O único problema era quando eu não usava.
Nos dias em que não tinha acesso à droga, o nervosismo tomava conta de mim. Minhas mãos tremiam, a irritação subia rápido, e qualquer coisa, por menor que fosse, me tirava do sério. Eu me tornava uma bomba prestes a explodir.
Foi numa dessas fases ruins que o Yago apareceu na boate.
Eu não sabia o que ele estava fazendo lá, mas a simples visão dele me deixou apavorada.
Ele não pode me ver aqui. Ele não pode descobrir.
Apertei os olhos e tentei passar despercebida, mas, claro, Yago tinha aquele maldito radar. Ele me viu do outro lado do salão e começou a vir na minha direção. Meu coração disparou.
Corri antes que ele pudesse me alcançar. Saí pelos fundos da boate, esbaforida, o som da música ainda pulsando nos meus ouvidos.
Aquela noite foi a gota d’água. Eu não aguentava mais Yago.
Ele sempre estava ali, como uma sombra, querendo saber o que estava acontecendo comigo. Perguntava se eu estava bem, insistia em se meter na minha vida.
— Você tá bem, Giovana?
— Aconteceu alguma coisa?
— Pode confiar em mim.
Era sufocante. Irritante.
Na minha cabeça, Yago era o típico garoto que queria ser o herói de todos. Sempre achando que tinha a solução para tudo. Sempre metendo o nariz onde não era chamado. Ele não entendia que eu não precisava de ajuda, que eu não queria ajuda.
Ele me julgava com aqueles olhos preocupados, mas nunca dizia nada. A pena dele era pior do que qualquer sermão.
Eu odiava como ele achava que podia me salvar, como se eu fosse uma boneca quebrada esperando para ser consertada.
Eu não sou fraca. Não preciso de você, Yago.
A única coisa que realmente me acalmava era o pó. Só ele conseguia silenciar as vozes, diminuir o caos dentro de mim.
Mas eu sabia que o tempo estava se esgotando.
Yago não ia desistir. E, no fundo, eu sabia que ele estava começando a juntar as peças. Cada vez que ele me via, eu podia sentir a desconfiança crescendo. Ele podia não saber exatamente o que estava acontecendo, mas estava perto demais de descobrir.
E isso... isso me aterrorizava.
Chegou o dia que eu sempre temia.
Na escola, Yago parecia mais determinado do que nunca. Eu sentia o olhar dele queimando nas minhas costas durante as aulas, e no intervalo ele finalmente me confrontou.
— Giovana, a gente precisa conversar.
Eu tentei ignorá-lo, passar direto, mas ele segurou meu braço, insistindo.
— Me solta, Yago! — rebati, tentando parecer firme, mas minha voz já tremia.
Ele não desistiu.
— Você tá estranha há semanas. Eu sei que tem alguma coisa acontecendo.
Eu revirei os olhos, tentando bancar a desinteressada.
— Eu tô ótima, Yago. Só me deixa em paz.
Mas ele não ia largar. Quando tentei puxar minha mochila para ir embora, ele segurou firme. Foi tudo muito rápido. O peso desajeitado fez com que o zíper se abrisse parcialmente, e um pequeno saco plástico com cocaína caiu no chão.
Meu coração quase parou.
O tempo pareceu desacelerar enquanto Yago olhava para o pacote, a expressão dele mudando de surpresa para uma mistura de choque e decepção.
— Giovana... o que é isso?
Minhas mãos tremiam enquanto eu me abaixava rapidamente para pegar o saco. Guardei de volta na mochila, olhando ao redor para garantir que ninguém mais tinha visto.
— Não é nada, Yago. Esquece isso.
Mas era tarde demais. Ele me encarava com aqueles olhos inquisidores, cheios de preocupação e julgamento.
— Você tá usando? Desde quando?
Eu sentia um nó se formar na garganta, mas não podia fraquejar. Meu corpo inteiro estava em alerta, pronto para fugir, mas Yago estava lá, bloqueando minha saída com aquele olhar de irmão mais velho insuportável.
— Yago, por favor... — minha voz saiu baixa, quase implorando. — Não diz nada pra ninguém.
Ele franziu o cenho, claramente dividido entre querer me ajudar e não saber o que fazer.
— Giovana, isso é sério. Você não pode continuar assim.
Eu dei um passo para trás, tentando criar distância.
— Você não entende. Eu tô bem. Eu tô no controle.
Ele balançou a cabeça, descrente.
— Isso não parece controle pra mim.
Minha cabeça latejava. Cada palavra dele era como uma martelada.
— Por favor, Yago, só... só fica quieto. Ninguém pode saber disso, você me ouviu? — Minha voz vacilou, mas eu mantive o olhar fixo nele. — Promete que não vai contar?
Ele suspirou, claramente relutante.
— A gente precisa conversar, Giovana. Isso não vai ficar assim.
Eu sabia que ele não ia me deixar em paz, mas, naquele momento, tudo que eu queria era que ele prometesse. Que ele me desse tempo, que ele me deixasse respirar.
— Só promete, Yago.
Ele finalmente assentiu, mas o olhar dele deixava claro que isso era só o começo.