Tivemos uma semana bem difícil. Eu evoluí bem na terapia e espaçamos as sessões. Por outro lado, Júlia não estava tendo o mesmo êxito. Ela ficava triste quase o tempo inteiro, sem querer sair e se alimentando super mal, de um jeito que nem minha sogra conseguia solucionar. A psicóloga dela mudou a forma de terapia, precisavam tentar algo novo. Se antes estava difícil mantê-la quieta, agora o desafio era fazê-la levantar da cama.
Sabrine passou a fazer visitas constantes à nossa casa e conhecemos a sua história. Ela tinha um relacionamento homoafetivo e, após diversas tentativas, conseguiram, por duas vezes, a tão sonhada gravidez. Infelizmente, em uma delas, ela sofreu um aborto com seis semanas, mas, na tentativa seguinte, conseguiram trazer ao mundo uma menininha linda. Ela agora estava casada com um homem, mas os três mantinham uma boa relação. Foi bom ter a companhia dela ali, não só pela experiência inicial similar, mas por ser uma verdadeira amiga.
Um dia marcante foi quando cheguei em casa e Juh estava no quarto que seria de Maya. Ele estava pintado de amarelo clarinho e tinha um berço de madeira bem antigo e uma poltrona de amamentação. Não tínhamos ainda muitas coisas porque íamos esperar até as 26 semanas. O berço pertenceu à minha mulher, meu sogro reformou e pintou, e a poltrona, no mesmo tom de marrom, ganhamos dos meus irmãos.
Ela estava de costas, apoiada no berço e chorando. Dentro estavam todos os ultrassons. A abracei por trás, mas ela virou-se e me agarrou forte, e seu choro se intensificou. Sentei com ela no meu colo e ficamos um bom tempo ali.
— Eu não queria ficar assim. Às vezes, eu sinto que nem tenho mais lágrimas, mas a angústia toma conta do meu peito de uma forma que, quando percebo, já estou nesse estado... — falou, ao se acalmar.
— Se a gente não sentir, quem vai sentir por nós? A gente precisa viver essa perda, esse luto, para que não vire algo esmagador depois... Eu só não quero que você deixe essa dor te consumir. É normal que as emoções surjam e nós temos que processá-las, mas não pode tomar conta de você. É difícil, porém a gente precisa tentar todos os dias. E nós temos muita sorte por ter tanta gente legal ao nosso lado. Esse apoio e como eles transformam o nosso ambiente é muito importante, mas se a gente não lutar junto... Não adianta... — falei, enquanto fazia carinho no seu cabelo.
Ela me olhava atentamente a cada palavra e fazia carinho no meu rosto.
— Eu sei... Você tem toda razão... — disse-me.
— Posso pedir para desmontarem o berço? — perguntei.
— Pode, depois a gente leva para meu pai doar a alguém... — disse, pensativa.
Os olhinhos dela encheram-se de lágrimas novamente e ela enfiou o rosto no meu peito. Ficamos um bom tempo grudadinhas até ela se acalmar. Ela sentou mais ereta no meu colo e me beijou.
— Eu te amo muito, ainda bem que tenho você — disse-me.
— Eu também te amo, amor... Ai de mim se não fosse você! — falei, voltando a beijá-la.
Comecei a rir e ela me perguntou o que era.
— A gente, numa cadeira de amamentação, e você enfia a cara nos meus peitos... Achei que estava querendo... — brinquei.
— Amooooor — disse, rindo, e eu segurei sua boquinha para encher de selinhos.
Passado mais alguns dias, as coisas foram melhorando e, apesar de não estarmos muito animadas, tínhamos as peças das crianças para assistir. Uma era no sábado, a outra no domingo. A primeira seria a de palhaços e a segunda seria A Bela Adormecida. Milena conseguiu o papel da protagonista, mas rejeitou por ter poucas falas. Segundo ela, não queria ficar dormindo em cima do palco, então pegou o papel da vilã e Kaique foi o príncipe.
Já sentadas aguardando, começaram as apresentações dos atores e seus personagens, depois de muito atraso. Notamos que nenhum dos dois foi chamado. Os pais ao redor disseram que era normal, pois às vezes as crianças ficam com vergonha, mas a gente conhece muito bem os dois filhos que temos... Com certeza não era timidez, eles são o contrário da introversão, bem amostradinhos, eu diria. Algo estava errado!
Conversamos com mais pessoas e disseram que era bom a gente entrar para conversar com eles e que, se fosse vergonha, ver se conseguíamos convencê-los a apresentar pelo menos a segunda peça, porque a primeira o professor conseguiria dar um jeito.
Chegando lá, já vi a pintura facial dele toda borrada de choro. Ele estava visivelmente com raiva, tirando o figurino de qualquer jeito, e Milena tentando ajudar a acalmá-lo e também a tirar a roupinha de palhaço. Ele agia como se estivesse com nojo, sujo ou algo do tipo.
— Ei, o que houve? — perguntei, indo até ele, que me abraçou com força, pedindo para ir embora.
Juh estava preocupada e tentava ver com Mih, mas ela também só pedia para ir para casa e olhava para as cortinas onde o professor estava, como se estivesse chateada. Imaginei que fosse por querer muito apresentar.
Pedi desculpas ao professor, que estava meio sem graça, mas ele disse que estava tudo bem. Fomos o caminho inteiro tentando entender, mas sem sucesso.
Em casa, ele correu para o quarto e Milena entrou junto. Quando fomos entrar, ele estava com a cabeça no colo dela, ainda chorando, só que de forma mais contida. Ela fez sinal em negação para não entrarmos e respeitamos. Com ele mais calmo, ela saiu.
— Kaká precisa de uma psicóloga — falou para nós.
— Por quê? O que aconteceu lá? — perguntei, mas ela fez silêncio.
— Filha, se você sabe de algo, tem que nos contar para que a gente resolva — disse Júlia.
— Não posso, ele quem tem que contar, e quando ele quiser — disse baixinho.
— Mas, amor... como a gente vai ajudar sem saber o que aconteceu? — perguntei.
— Quando as senhoras me pedem segredo, eu guardo. É injusto contar algo assim do meu irmão... Mas ele vai contar, só precisa de um tempo... Ele precisa conversar com uma médica também... — disse, retornando. Dessa vez, fomos juntas.
— Oi, amor, como você está? — perguntou Juh, se aproximando, e ele já grudou nela com os braços.
— Quero tomar um banho — pediu, baixinho.
— Vai lá, a gente separa sua roupa — falei, e ele foi.
Ficamos ali em silêncio esperando por bastante tempo, até que ele voltou e sentou no meu colo, pronto para conversar.
— Ele disse que ia me ajudar a me vestir, mas colocou a mão por dentro da minha cueca e começou a apertar. Eu juro que não estou mentindo, Mih viu tudo — disse, com medo.
— Se meu filho está dizendo, eu acredito — falei. — Quem fez isso com você, filho? Um colega?
— O tio! — me respondeu.
— Meu Deus! — exclamamos, sem acreditar.
Se fosse um colega, já seria errado, mas um adulto era muito pior. Subiu um queimor no corpo e, por mim, eu voltaria naquele teatro para quebrar a cara daquele desgraçado, mas Júlia não permitiu.
Só aí Milena se sentiu à vontade para contar o que aconteceu e tudo o que viu de longe. Depois do ocorrido, ela empurrou o professor e foi então que Kaká conseguiu reagir com toda aquela raiva que presenciamos.
Kaká estava muito fragilizado, embora a gente já tivesse conversado com eles sobre o quão íntimo é o corpo de cada indivíduo, quem pode ter acesso e como deveriam agir caso algum dia ocorresse... Ele disse que ficou travado, inseguro, com medo, nervoso e com vergonha.
Perguntei se ele queria dormir conosco e ele disse que não, mas Mih pediu para dormir com ele e ele aceitou. Falamos que, qualquer coisa, eles podiam nos chamar.
Juh e eu conversamos sobre como prosseguir e decidimos ir, no outro dia, conversar com os responsáveis da instituição. Lembramos que tínhamos números de alguns pais e começamos a mandar mensagens contando o que houve. Eles assustaram-se, por nunca terem ouvido falar algo do tipo sobre o professor, e aconselhei todos a conversarem com seus filhos e a contar com o restante que nós não possuíamos contato. Assim surgiram mais dois relatos. Pessoas que a gente ainda não conhecia entraram em contato com Juh. A diferença foi que os meninos, por inocência, acharam a situação normal. Os convidei para se juntarem a mim no dia seguinte e aceitaram.
Já tinha se passado 1h desde que deixamos os guris na cama e tivemos uma ideia. Não dava para levar o nosso colchão para o quarto deles, mas nada nos impedia de levar um de um dos quartos de hóspedes.
— Oi, a gente não está conseguindo dormir... — disse Juh, pondo a cabeça na porta.
— Podemos tentar com vocês? — perguntei, pondo a minha também. Pude ver os sorrisinhos deles dois. Kaká estava com a cabeça em cima do abdômen de Mih, que fazia cafuné em seu cabelo.
Juh deu um beijinho neles e disse que tudo ia ficar bem.
— Se eu quiser um pouco de carinho, posso correr para a cama de vocês? — perguntei, me jogando em cima deles, que gargalhavam enquanto eu fazia cócegas.
— Nem a pau que eles vão dormir agora, amor — disse minha mulher.
— GUERRA DE TRAVESSEIRO! — anunciou Milena e, em instantes, o quarto tinha se transformado.
Nós brincamos madrugada adentro. Pela manhã, Kaká aparentava estar super bem, mas Mih veio conversar novamente sobre ele precisar de terapia. Eu informei que já tinha marcado com a psicóloga dela.
— Tem mais coisas que eu não sei? — perguntei e ela ficou em silêncio.
— Filha... Assim não tem como a gente tomar as medidas corretas... — disse Júlia.
— Esse professor fez mais alguma coisa? — perguntei.
— Ou não foi a primeira vez? — perguntou Juh.
— Não, não... Não tem a ver com o professor... — disse Mih.
Acho que imediatamente, Juh e eu pensamos na mesma coisa: o abrigo!
Os deixei em casa e me dirigi ao teatro. Lá, conversei com os pais e depois fomos falar com o responsável. Ele ficou assustado quando começamos a falar em depoimentos, processos e fazer justiça. Disse que estava do nosso lado e afastaria o professor, mas eu queria mais do que isso. Pedi que ele organizasse um evento com todos os pais para fazer uma conscientização. Eu conseguiria os palestrantes e também pedi que, se os responsáveis concordassem, todos os casos fossem expostos para que entendessem a gravidade. Ele não gostou muito da exposição, porém, com a pressão, aceitou. Só pediu que o evento fosse fechado, somente com os pais dos alunos já matriculados, e não fosse divulgado publicamente. Não foi o que eu idealizei, mas nós deixamos certo dessa maneira.
Contei tudo ao chegar em casa e todos ficaram satisfeitos, mas, infelizmente, Kaká não quis mais saber de teatro, nem nessa instituição, nem em outras. Mimi disse que só volta com o irmão.
Quando chegou o dia da sessão dele, conversamos antes com a psi sobre toda a importunação e também falamos sobre a conversa com Milena e que achávamos que poderia ter acontecido no abrigo. Ela entendeu e o chamou. De início, ele não gostou de reviver o passado, mas nós o conscientizamos de que aquilo era muito importante.
A gente, obviamente, não ficou sabendo sobre o que era conversado, mas ao longo das semanas, recebíamos feedback de que ele estava progredindo. Quando perguntei se ele estava se abrindo sobre acontecimentos passados, a resposta foi positiva. Isso foi um alívio, pelo menos não estava mais guardando aquilo sozinho.
Três coisas muito difíceis aconteceram quase ao mesmo tempo no seio da nossa família, e nós arrancamos forças de onde não tínhamos para lidar da melhor maneira possível. Um mês depois de Maya ter nos deixado, embora fosse recente, ainda doía, mas já sentíamos de forma mais saudável. O apoio incondicional e nossas tentativas de incluir brincadeiras em família ajudaram bastante.
OBS1: Só ficamos sabendo realmente o que aconteceu no abrigo este ano. E tudo bem, foi no tempo que Kaique se sentiu confortável para dizer para nós. Milena soube no dia da peça, quando ficaram conversando.
OBS2: As palestras se estenderam para o jiu-jitsu e o futebol também. O apoio do pai de Milena foi importante para conseguirmos isso.
OBS: O p3d0f1l0 desapareceu de Salvador antes mesmo da peça do domingo a noite.