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• Capítulo 7.1 ~ DIVINA, ENIGMÁTICA E INDESVENDÁVEL
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O sol daquela quarta-feira invadia meu quarto sem pedir licença, iluminando o ambiente enquanto João espalhava sua melancolia através da linha. Sua voz trêmula e pesada anunciava algo grave. Se na noite anterior havia uma fagulha de esperança acesa, ao ouvir João, tudo em mim voltou a nublar-se.
— O pior dos sentimentos me acomete, Ícaro... o sentimento de perda! — ele continuou após um longo suspiro.
"Sentimento de perda?", pensei, surpreso.
— Perdão, João... não faço ideia do que você está falando — repliquei, ansioso por saber mais.
Ouvi-o respirar fundo, como quem busca a própria calma para continuar.
— Eu os vi... você e Dayana, abraçados, à sombra da noite no ponto de ônibus... — agora sua voz soava estranhamente suave, o que me provocou um desespero inexplicável, levando-me a interrompê-lo sem nem perceber.
— João... você deve estar magoado, eu entendo... Errei ao não te contar que já conhecia a Dayana naquele domingo que você... — minhas palavras atropelavam-se, até que ele me cortou também.
— Acalme-se, Ícaro. Eu ainda não terminei. — sua voz, doce e calma, fazia ecoar um estranho desconforto.
— Desculpe.
— Não há o que desculpar. Não estou aqui para cobrar explicações ou criar confusão. Quero apenas que compreenda a angústia que me permeia. Então, querido Ícaro...— ele fez uma pausa, emitindo o estalar dos lábios, como quem retoma o controle de uma narrativa — Eu os vi. Aquela despedida de olhares e toques me feriu. Senti-me ameaçado, como se houvesse algo mais profundo ali, algo mais que um desejo carnal. Especialmente de sua parte... — uma nova pausa surgiu, logo quebrada por ele outra vez — Dayana já me confessou seus sentimentos, mas eu preciso saber o que você sente por ela. Ícaro... você a ama?
O mundo pareceu paralisar por um instante. Meu coração disparou, e minha mente buscava freneticamente uma resposta. Como João podia fazer uma pergunta dessas, assim, sem aviso? O ar ficou rarefeito. Era como se as paredes estivessem se fechando ao meu redor. Eu nunca havia realmente contemplado amar Dayana, sempre achei que ela amasse mais sua liberdade do que qualquer outra coisa ou alguém, mas naquela pergunta simples, João havia acendido algo que eu nem sabia que existia. Eu estava perdido, sem saber o que dizer.
— Por que me perguntas isso tão de repente, João? — retruquei, nervoso.
— Perdi-me em ciúmes e, tomado pelo álcool, tratei-a como nunca deveria... — ouvi novamente sua respiração pesada — Estou perdendo-a, Ícaro! — sua voz elevou-se, marcada pela tristeza — E, se você realmente a ama, eu estarei perdendo-a para você!
Um choque percorreu meu corpo. "Dayana me ama?", pensei. João acabara de insinuar algo que parecia saído de um sonho. Fiquei atordoado. Estaria eu já tão enredado nos meus sentimentos por ela? E, se fosse verdade... será que ela também se perderia em mim? No entanto, havia algo ali que ainda não se encaixava completamente.
— Como você está a perdê-la se, naquela mesma noite, recebi uma mensagem dela dizendo que vocês estavam noivos? — questionei, em meio à confusão.
João soltou um riso amargo.
— Ah, como pude esquecer?! Não foi ela que te mandou, fui eu.
— Você?! Mas por quê? — perguntei, perplexo.
— Assim que ela te enviou a primeira mensagem, fui inundado pela raiva, e, em cólera, peguei seu celular e continuei a discutir com ela. Parti na moto, tomado pelos meus pensamentos, e só quando estava longe percebi que ainda estava com o aparelho de Dayana.
— Então aquela mensagem era uma espécie de vingança? — indaguei, cortando-o intencionalmente.
— Vingança não, Ícaro... desespero — respondeu firme. — Por isso queria conversar com você pessoalmente... além do mais, precisava que devolvesses o celular dela; não pude encará-la de novo naquela noite.
— Podemos nos encontrar, sem problemas — respondi.
— Não será mais necessário. Ontem à noite tomei coragem, fui até ela, pedi desculpas e devolvi o celular. E... acho que já disse tudo que precisava para você. Apenas te devo uma última desculpa.
— Você já se desculpou ao me contar a verdade — devolvi.
— Ótimo! Então, só falta responder a pergunta que te fiz minutos atrás... Você ama a Dayana, Ícaro?
A voz de João era firme.
— Eu... eu acho que sim! — finalmente respondi.
— Então, não perca tempo. Ela te espera, tenho certeza. Ontem prometi a ela que, se seu amor fosse recíproco, eu lhe daria liberdade.
Meu coração pulsava em euforia. Como eu havia prendido o coração de Dayana com tanto fervor? O que tinha eu, para fazer com que ela desejasse ficar ao meu lado, quando sempre escolhia sua liberdade? Ainda havia muitas dúvidas, mas eu sabia que só ela poderia dissipá-las. Eu precisava vê-la. Quando? "Hoje mesmo", pensei.
— Irei vê-la depois da aula. Obrigado por toda a verdade, João — disse, tentando esconder o turbilhão que habitava em mim.
— Por nada. Apenas aproveite! — e, sem mais, ele encerrou a chamada.
A ligação terminou, e ali eu fiquei, paralisado, o celular ainda em mãos. Afundado em um mar de mistérios e alegrias. Ao retornar à realidade, vi que havia uma outra chamada, perdida durante a madrugada. "Como eu não ouvi?", me perguntei. Logo percebi também uma mensagem do mesmo horário. Era Dayana.
[Dayana] Quarta-feira, 02:40h: Oi, Ícaro. Acabo de recuperar meu celular. Tenho algo importante para conversar contigo. Tentei te ligar, mas achei inconveniente te acordar a essa hora. Quando puder, responda-me.
Ao ler a mensagem, a imagem dela à janela veio à minha mente, com seu cigarro e xícara de café. Naquele momento, ela gesticulou que queria falar comigo. Era verdade, ela ainda estava sem celular naquela hora.
Comecei a escrever uma resposta, perguntando se ela estaria em casa à noite. Por um instante, cogitei mencionar minha conversa com João, mas decidi deixar essa parte para resolver pessoalmente. Pareceu o mais sensato.
Ainda antes de eu sair, outra mensagem de Dayana chegou. Ela dizia que estaria em casa o dia todo. Aproveitei para criar uma pequena mentira para meus pais, dizendo que estudaria com amigos e talvez não voltasse para casa naquela noite. Meu pai nada disse, mas minha mãe, como sempre, encheu-me de perguntas e pediu que eu ligasse se não fosse voltar. Arrumei uma roupa extra na bolsa e saí.
* * *
O relógio parecia mover-se mais devagar, como se o tempo estivesse dançando em círculos, zombando da minha pressa. Cada minuto que passava arrastava uma sensação de ansiedade maior em meu âmago. Meus olhos iam e voltavam para a janela da sala de aula, enquanto, em pensamento, eu já havia partido para o encontro de Dayana. Girava a caneta entre meus dedos, impaciente, cada rabisco no caderno parecia vazio, desprovido de sentido. Ao lado, Marina, que sempre percebia até minhas menores mudanças de comportamento, franziu a testa.
— Você parece meio agitado hoje, Ícaro... Tá esperando alguma coisa? — perguntou, fingindo casualidade.
Sorri, tentando esconder o tumulto de emoções que me ferviam por dentro.
— Ah, nada demais, Nina. Só um pouco de ansiedade... — respondi, desviando o olhar e dando de ombros.
Marina olhou para mim com desconfiança, mas não me perguntou mais nada. Em seu silêncio, observava-me com um olhar de derrota, como se soubesse que meu coração já estava em outro lugar.
Minutos mais tarde, desejei que o último sinal soasse logo, para que eu pudesse, enfim, trazer para a realidade o que meu coração distraído ornava em sonhos com Dayana.
* * *
Sentados no batente de sempre, o ponto de ônibus parecia um cenário familiar e, ao mesmo tempo, estranhamente diferente naquela noite. O vento soprava devagar, trazendo com ele o odor úmido da cidade, misturado com o escape de algum ônibus distante. Eu e Marina, que tantas vezes dividimos abraços naquele mesmo lugar, agora estávamos mais afastados, havia uma barreira invisível entre nós. Marina, que sempre encontrava um jeito de estreitar nossa distância, dessa vez mantinha seus braços cruzados, como se quisesse se proteger de algo. Eu, mesmo sem querer admitir, sabia o motivo. Enquanto isso, um silêncio que dizia mais do que qualquer palavra pairava entre nós.
Perdi-me no vazio por um momento, tentava refletir sobre tudo. Quando levantei o olhar casualmente para o prédio rústico do outro lado da rua, lá estava a janela de onde Dayana o havia me fixado com seus inesquecíveis olhos negros. A imagem de sua silhueta surgiu involuntariamente em minha mente, como se aquele vidro embaçado ainda guardasse o eco da presença dela. Senti o coração apertar no peito. Tudo aquilo me envolvia mais do que eu queria admitir.
Um suspiro de Marina quebrou o fluxo de seus pensamentos. Virei-me, percebendo o silêncio pesado entre nós.
— Então, Nina... como foi a aula de hoje? Muito chata, né? — tentei provocá-la com um típico sorriso descontraído.
Marina olhou para mim e sorriu, mas seu sorriso carregava um peso resignado, tão suave quanto a tristeza que não queria expor. Sua voz veio calma, sincera, com uma espécie de aceitação dolorosa.
— Ícaro... não precisa fingir pra mim. Eu te conheço. Somos melhores amigos, lembra? — ela fez uma pausa, olhando para longe, como quem observa algo mais complicado do que a cena à frente — Sei que você ama a garota da janela, não eu. E está tudo bem, eu me dou por satisfeita mantendo nossa amizade, isso é mais importante para mim por agora — concluiu com um sorriso opaco.
Um leve arrepio percorreu o meu corpo. Por mais que eu ainda tentasse camuflar meus sentimentos, Marina parecia me conhecer melhor do que eu mesmo, tipo o Fernando. Não havia mais o que dizer, então preferi ser honesto.
— Eu... eu vou encontrar Dayana hoje. Vamos conversar.
Marina assentiu, sem surpresa, mas com compreensão. Havia em seus olhos um brilho que misturava conhecimento e despedida. O ruído do motor do ônibus 1312 se aproximando trouxe um fim súbito àquele momento. Ela se levantou devagar, pegando a mochila com calma, como se quisesse prolongar a despedida.
— Boa sorte com ela — disse, antes de me dar um pequeno abraço, breve, sem as demoras de outros tempos. Eu devolvi o abraço com carinho e nós nos separamos.
— Obrigado, Marina. Cuide-se, ok? — retruquei com sinceridade.
Ela acenou ao subir no ônibus, e, enquanto partia, Marina olhou pela janela, acenando uma última vez. Retribuí o gesto até que o coletivo desapareceu no corredor estreito da avenida. Agora, era só eu, o asfalto e a espera pelo ônibus 512.
Quando o ônibus que eu esperava finalmente surgia ao longe, um misto de euforia e dúvida tomou conta de mim. Eu mal conseguia respirar direito. Aquele ônibus me levaria para algo desconhecido, mas talvez também para algo que eu sempre quis e não sabia até então. Os faróis do veículo romperam a escuridão tímida da rua e iluminaram o ponto, como se anunciassem uma inevitabilidade. Subi e, enquanto o ônibus atravessava os limites da cidade em direção ao litoral, meu coração batia mais rápido a cada quilômetro deixado para trás.
A noite negra, densa e invocadora, fundia-se ao meu estado de espírito. No céu, as estrelas pareciam ser esparsas, como breves faíscas de luz resistindo à vastidão do vazio. A lua, que mal viajava pelo horizonte, era como um guardiã solitária, cinza como as minhas incertezas. E Dayana... Dayana era como aquela estrela distante, brilhando mais forte do que todas as outras, mas sempre misteriosa, envolta nas sombras das dúvidas e de sua própria liberdade.
Apesar da dúvida que ainda corroía parte do meu peito, agarrei-me à esperança de que, naquela noite, algo se consolidaria. Haveria um momento de revelação, talvez um beijo fervoroso depois de uma confissão amorosa de Dayana, ou qualquer outra coisa que mudaria tudo. Talvez aquele encontro noturno, sob o som do vento cortante do litoral e pelas estrelas cautelosas, promovesse finalmente a união que eu tanto almejava, um laço construído não apenas pela presença física, mas pelo encontro de nossas almas libertinas.
O ônibus seguia por avenidas que lentamente se transformavam em estradas estreitas, enquanto as luzes da cidade enfraqueciam, cedendo espaço ao som distante do mar, há poucos quilômetros daquela pequena e linda casa cor de sangue que aguardava minha chegada.
Havia algo místico naquela travessia, como se eu estivesse entrando em outro mundo, um mundo onde o vazio metálico da cidade encontrava a melancolia excitante do oceano. A paisagem sombria, pontuada pelo vento frio e pelas árvores retorcidas que passavam pela janela, parecia pintar o caminho em traços desbotados e misteriosos, como uma premonição de desejos insondáveis.
Apertei minhas mãos sentindo o suor frio na pele, as batidas de meu coração tornavam-se ecos de ansiedade. Não sabia ao certo o que me aguardava do outro lado. Talvez Dayana me envolvesse de vez em seu mundo de mistérios e liberdades profanas, e juntos, poderíamos caminhar sob as sombras da noite, em busca de um amor que persistia além das estrelas e do mar.
E assim, eu seguia embalado pela escuridão e pelo desejo incontido, sem saber que aquela noite apenas começava a revelar seus segredos.
Ao descer do ônibus, a noite parecia me acolher com braços feitos de trevas e silêncio. O vento marítimo carregava um toque frio, que se misturava com o calor da minha pressa. Cada passo que eu dava pelas ruas escuras me aproximava de Dayana, com minha mente mergulhada em um turbilhão de expectativas. Quando eu caminhava pelo trecho final até a casa, tudo ao meu redor parecia calmo e vazio, como se o mundo tivesse parado para assistir àquele momento crucial. A recepção que, naquela primeira visita, fora revestido por cores vibrantes de flores quase irreais, agora estava envolto em uma penumbra misteriosa. O jardim colorido, em frente a casa, que havia me tomado a atenção da outra vez, agora era um campo de tons profundos e indefinidos, onde a escuridão dançava entre as folhas, e as flores pareciam segredos prontos para florescerem apenas sob a luz da lua.
Aquela natureza que antes refletia vida, agora parecia guardar segredos, como se o jardim noturno, fosse uma metáfora da própria Dayana — divina, enigmática e indesvendável. Minhas mãos tremeram levemente quando alcançou a porta. Silenciosamente, respirei fundo e levei os dedos ao batente, chamando pelo nome dela.
O silêncio que seguiu foi breve, mas carregado de um suspense agridoce, até que a silhueta dela começou a se formar atrás do vidro da pequena janela da porta. O meu coração falhou uma batida, minha respiração foi suspensa por um instante. A figura de Dayana, leve e etérea, avançava em minha direção, como um sonho que escapava das muralhas da noite.
Quando a porta finalmente se abriu, ouvi a voz que havia ecoado tantas vezes em meus pensamentos.
— Oi, Ícaro… você veio mesmo.
Aquela saudação, tão simples, mas tão cheia de promessas, fez-me perceber que, mais do que nunca, eu estava à beira de algo que poderia modificar para sempre os laços que me ataram à Dayana.
(Continua...)
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